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Perigos da confiabilidade
Por Filipe Chamy

Os interessados em qualquer tipo de arte não se detêm apenas nas coisas óbvias e consagradas. Procuram e fuçam em tudo que é lugar, em busca de mais material para seu vício. Com o cinema isso ficou ainda mais evidente após a popularização da internet de alta velocidade. Cinéfilos do mundo todo estão completando rapidamente as filmografias que sempre quiseram ter. Logicamente isso acarreta vários fenômenos, e um dos mais curiosos é sem dúvida a capacidade de poder enxergar alguns filmes com visões mais “contextualizadas”, não-individuais, pensando-se em uma filmografia e não apenas em uma obra.

Não sei se me fiz claro. O que quero falar é como algumas obras dependem inexplicavelmente, em um certo sentido, de uma apreciação mais complexa, que necessita de uma bagagem maior do consumidor daquele trabalho e uma maior compreensão por parte dele das idéias do autor.

A coisa toda está muito nebulosa. Tentando clarear, um exemplo pessoal: desde criança sou admirador e entusiasta das criações de Charles Chaplin. E talvez por ver e rever tantas vezes seus filmes, assimilo melhor fitas injustiçadas como Monsieur Verdoux e Um rei em Nova Iorque. Parece-me que, de alguma maneira, a absorção dessas obras está ligada à firme convicção que possuo na inteligência e competência de Chaplin. Não as vejo como irregulares, mas como absolutamente geniais. Não sei, entretanto, qual seria o meu julgamento se nunca houvesse visto filme algum de Chaplin e de repente fosse “jogado” nesses dois trabalhos do diretor. Talvez detestasse. Ignoro se eles se sustentam por si mesmos, ou se seus méritos são condicionados à apresentação do nome do diretor nos créditos iniciais e a tudo que esse nome traz ao espectador habitual: confiamos em Chaplin, acreditamos que ele tem algo a dizer, e cremos que se a forma desses filmes é diferente da dos que o consagraram, isso quer dizer apenas que essa foi a melhor opção encontrada pelo realizador para viabilizar seus projetos. Por outro lado, não sou cego com Chaplin, e não consigo escolher palavra melhor que medíocre para definir a maior parte de seus curtas e o seu desastroso longa final. Será que esse fenômeno é apenas impressão?

Não sei.

Outro exemplo é Godard. Admirador manifesto de suas películas pelo menos até o final da década de 1960, vejo com prazer qualquer coisa dele que me caia nas mãos. Não sou apaixonado por nenhum de seus trabalhos recentes, mas talvez, se já não o admirasse por Alphaville, Acossado ou Pierrot le fou, nem tivesse paciência para agüentar acordado experiências como Je vous salue, Marie e Nouvelle vague. A chave de tudo é que de algum modo eu confio em Godard. Imagino que, se um cineasta fez filmes tão bons como os pré-68, ele sabe o que faz. Parece-me que suas opiniões sempre valem ser ouvidas, e é nisso que reside minha dúvida, se depois que alguém passa a admirar um artista é possível ter suas percepções “distorcidas” pelas boas impressões causadas em obras anteriores.

Não sei se gosto de Uma jovem tão bela como eu apenas por ser fanático por Truffaut. Se consideraria patética essa fita, se fosse o primeiro longa-metragem de um diretor desconhecido. Não sei mensurar o pensamento que não tenho. Acredito apenas que isso tudo é indicativo das manipulações que sofremos a todo instante. Quando ligamos um Capra e falamos: “vamos, enterneça-me”, confiamos no italiano. Se fosse um filme de Hitchcock, brigaríamos: “o que é isso de anjo? Esse gordo enlouqueceu?”. Não digo que um filme deva ser julgado pelo nome do seu diretor, mas esse nome é sem dúvidas uma espécie de anúncio do estilo e abordagem da obra que se seguirá.



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