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Fragmentos Literários

Por Stefanie Gaspar

Bernard Shaw

George Bernard Shaw, dramaturgo irlandês nascido em 1856, escreveu peças com temáticas sociais e políticas, questionando o papel do homem no mundo moderno e os dilemas éticos e morais problematizados a partir de uma sociedade conformista e tradicional. Essa preocupação social está presente em peças como Major Barbara e The Doctor’s Dilemma, além de sua ambígua obra Heartbreak House, considerada um libelo anti-guerra. Resumir Shaw, entretanto, em definições como reformador social, um homem a frente de seu tempo ou um indivíduo que lutava contra as injustiças e desmascarava a hipocrisia de seu tempo é diminuir a complexidade e a inteligência de sua obra. Em toda a história da humanidade podem-se encontrar artistas descritos como homens que lutavam contra a hipocrisia, em uma generalização que diz muito pouco sobre a qualidade artística desses trabalhos. No caso de Shaw, essa definição é importante para delinear algumas das características que permeiam toda a sua obra, mas ela não abarca aspectos estilísticos e formais que tornam o texto do autor extremamente fluente e interessante, além da força de seus personagens e representações. Sua obra possui momentos de força dramática inigualáveis, além de textos difíceis de serem definidos, como Heartbreak House – que, ao mesmo tempo em que analisa a neurose de uma família atingida pela guerra, mostra que as relações humanas ali presentes são todas corrompidas pelo absurdo; por um distanciamento da realidade que define alguns dos dilemas do ser humano em qualquer época da história.

Major Barbara conta a história dos Undershaft, cujo patriarca, Andrew, é um rico magnata da indústria de armamentos. Uma de suas filhas, Barbara, renunciou à vida confortável e estável que tinha em sua casa para trabalhar com o Exército da Salvação, em busca de algo além da frivolidade da vida comum. Bárbara acredita estar trabalhando por altruísmo, para uma causa maior que sua vida, a de ajudar pessoas necessitadas “salvando” suas almas da perdição e da corrupção da vida mundana. O que ela não entende, e que só compreenderá a partir dos discursos aparentemente imorais de seu pai, é que a salvação de almas que pratica é, na essência, um negócio, uma transação (nós lhe oferecemos abrigo, alimentação e emprego ­– só o que pedimos em troca é a sua alma, que precisa ser salva), assim como a fábrica de armamentos de seu pai. Essa mercantilização é percebida por Barbara quando seu pai resolve doar uma enorme quantia para o Exército da Salvação, e uma das voluntárias recebe alegremente a doação. Para Barbara, dinheiro de tal proveniência jamais poderia ser aceito por uma associação que procurasse “dar a vida”, já que esse capital só foi adquirido por meio das mortes de diversas guerras. Ao desistir de seu trabalho no Exército da Salvação, aceitando visitar a fábrica do pai – saindo do museu das almas para entrar no dos mortos –, Bárbara perde suas convicções e começa a passar por uma transformação radical, muito bem explicitada pelo texto de Shaw. Econômico nos diálogos, o dramaturgo expõe as transformações de Barbara contrastando-a sempre com seu pai, e essa equivalência dramática é perfeita para mostrar como, no fundo, os Undershaft são parecidos em seus dogmas e discursos – e como Barbara seria um suposto equilíbrio entre o autoritarismo explícito de Lady Britomart e a retórica irresistível de Andrew Undershaft. Ao aceitar casar-se com o herdeiro de seu pai, Barbara aceita viver entre a morte – a fábrica de armas –, acreditando que não é possível lutar contra os males do mundo isolando-se deles. Com o dinheiro das armas e das guerras, Barbara pretende ensinar a paz.

The Doctor’s Dilemma, além de uma crítica feroz de Shaw à crença de que os médicos são profissionais de uma ordem superior, ou seja, de ética inquestionável, é também um trabalho que reúne momentos de extrema ironia e sarcasmo, principalmente na descrição dos métodos favoritos de alguns médicos. Cada um deles – Ridgeon, Schutzmacher, Sir Patrick, Walpole, B.B e Blenkinsop – possui métodos totalmente diferentes para curar as mesmas doenças, além de concepções de medicina opostas. É curioso o contraste que Shaw faz entre os médicos, cada qual ouvindo o outro com suposto interesse, mas acreditando firmemente que possui a verdade divina a respeito da cura dos demais seres humanos. A peça lida o tempo todo com a idéia, sustentada pelo protagonista, Ridgeon, de que a medicina é uma arte – que, para ser aperfeiçoada, muitas vezes requer sacrifícios. No início da história, quando Sir Patrick pergunta a Ridgeon se ele se recorda de uma mulher chamada Jane Marsh, ele não só alega não se lembrar do nome, como dá de ombros para as informações que Sir Patrick lhe conta em seguida – Jane Marsh foi uma antiga paciente de Ridgeon, inoculada com um vírus que ele acreditava ser benéfico e que posteriormente perdeu o braço devido a tratamento médico indevido. Shaw, no prefácio da obra, utiliza subtítulos severos a respeito do trabalho de alguns médicos ditos respeitáveis e éticos, como “A investigação científica da crueldade”, “A velha linha entre o homem e a besta”, “Um argumento que defenderia qualquer crime”, “Ilusões estatísticas” e “Modas e epidemias”. O comportamento de Ridgeon durante a peça é ambíguo – ao encontrar um paciente totalmente desprovido de caráter, embora um gênio, o médico não se sente inibido em criticar a falta de moralidade do homem, embora a sua própria seja questionável. Na trama, Ridgeon se vê em um dilema: a partir de suas pesquisas, conseguiu desenvolver uma cura para a tuberculose, mas só pode utilizá-la em um número restrito de pacientes. A dúvida é: é melhor salvar um artista genial porém sem princípios, como Louis Dubedat, ou o honesto e insípido Dr.Blenkisop? Ridgeon, mesmo acreditando que um artista genial é mais útil para a sociedade do que um homem honesto porém sem talentos como Blenkisop, decide salvar seu colega de profissão – o que só fica totalmente claro no final, entretanto, é que Ridgeon tem outro excelente motivo para salvar Blenkisop: a mulher de Dudebat, Jennifer. Ao mesmo tempo em que quer a morte de Dudebat para casar-se com a viúva, Ridgeon também inveja o talento artístico de Louis – mesmo acreditando que a profissão médica é uma arte, ainda não é o status necessário para satisfazê-lo. Além de Jennifer, Ridgeon quer o bem mais precioso de Dudebat: seu talento inquestionável. Ao acreditar que esse talento, somado a seu com caráter – no qual ele realmente acredita –, torná-lo-á um homem perfeito, Ridgeon chega ao máximo do sonho de um homem utópico. Na cena final, entretanto, em que se encontra com Jennifer e percebe que ela continua inalterada – apaixonadíssima pelo marido e totalmente ignorante a respeito de suas falcatruas –, retorna a realidade. Aquela mulher, pela qual ele assassinou o marido, jamais será sua. O talento presente nas telas de Dudebat, expostas na parede da galeria, nunca será seu. Em determinado momento, Ridgeon diz a Sir. Patrick que acredita que o mundo seria um lugar melhor se todos agissem de acordo com suas necessidades, em vez de se preocupar com o interesse dos demais. Ele, entretanto, não é capaz de agir desta forma – quando, finalmente, tentou alienar totalmente (e conscientemente) a ética de sua profissão e de sua vida ao matar Louis Dudebat, ele matou a si próprio. Sem Jennifer, sem o talento artístico que cobiçava em Dudebat e sem sua ética, quem é Ridgeon?

Pygmalion, provavelmente a peça mais famosa de Shaw e a mais adaptada para o cinema, conta a história de Eliza Doolitle, uma vendedora de flores simplória que conhece o especialista em fonética Henry Higgins, que aposta que é capaz de torná-la uma duquesa apenas corrigindo os erros de sua fala. Para isso, ele a acolhe em sua casa e começa um esquema rigoroso de reeducação, sendo que Higgins é incapaz de tratar Eliza como um ser humano igual a ele. Para Higgins, ela é apenas um objeto de diversão, que lhe permite experimentar seu talento e seus conhecimentos fonéticos. Eliza, entretanto, percebe a indiferença de Higgins, e sente-se magoada quando, ao conseguir freqüentar uma festa e ser perfeitamente aceitada na sociedade, Higgins congratula a si mesmo pelo feito, sem se lembrar do esforço de Eliza. O que o professor, nem por um segundo, pensou, é o que Eliza faria após esse período de “aprendizado” em sua casa – agora acostumada com uma vida tranqüila, ela estaria totalmente deslocada vendendo novamente flores na rua. Shaw evita o final mais tradicional e romântico que poderia ser dado à história de Eliza e Higgins – que ficou implícita na adaptação para o cinema dirigida por George Cukor, na qual Eliza e Higgins terminam em um entendimento que sugere um desenlace romântico –, mostrando que Higgins não era capaz de ver Eliza como uma pessoa dotada de sentimentos, desejos e diferentes facetas, já que sua relação com o mundo sempre foi instrumentalizada e metódica. As pessoas, em vez de indivíduos complexos e dignos de respeito, sempre foram apenas motivo de observações e chacotas, e essa maneira de encarar as pessoas não se modificou nem mesmo com Eliza, que era cara à Higgins. Ele só se mobilizou contra a “rebeldia” de Eliza quando ela ameaçou abrir uma escola de fonética para ensinar seus conhecimentos com ele adquiridos – o que feria seu ego, não seu coração. Outra característica interessante que Shaw atribuiu à Higgins foi o complexo de Édipo. Para ele, nenhuma mulher podia superar a figura de sua mãe, o que contribuiu para Eliza casar-se com outro homem, embora mantendo sua relação de amizade com Higgins e seu colega, Pickering. Higgins também é, em sua concepção, um artista – enquanto que a arte de Ridgeon, de The Doctor’s Dilemma, é a medicina, a arte de Higgins é a fonética. Ambos os homens acreditam que suas profissões são, de certa forma, “maiores que a vida”, dotadas de uma aura artística incompreensível pelas pessoas que os cercam: Eliza não consegue compreender os arroubos lingüísticos de Higgins, um entusiasta de John Milton, e Jennifer não consegue entender os dilemas enfrentados por Ridgeon em sua profissão. Ambos distantes, ambos solitários. Entretanto, em Pygmalion, quem sofre é Eliza, nunca Higgins – que permanece o mesmo homem inatingível e incapaz de se relacionar com o mundo a sua volta. O artista, que considerava ter criado uma criatura exemplar – Eliza Doolitle – perde o controle dessa criação e percebe que ela toma forma própria e continua progredindo, enquanto ele continua na mesma imobilidade. Higgins e Ridgeon não acompanham o movimento da história, e são deixados para trás, embora seus dilemas continuem.

The Heartbreak House é uma das peças mais singulares de Bernard Shaw. Ao descrever uma família totalmente caótica, em uma casa que parece funcionar dentro de regras próprias e na qual nada parece deslocado, Shaw mostra uma coleção de idiossincrasias e neuroses. Em um ambiente permeado pela guerra e pela ameaça, a família formada pelo Capitão Shotover, Hesione Hushabye, Ariadne Utterword e a recém-chegada Ellie Dunn, amiga de Hesione, parece ser uma coleção de indivíduos descontrolados e peculiares. Mesmo The Heartbreak House sendo sempre descrita como um libelo anti-guerra, é impossível dissociar a peça de seu título. O primeiro ponto dramático da história acontece exatamente quando Ellie tem uma desilusão amorosa, descobrindo que o homem que ama é, na verdade, marido de Hesione. Outros “corações partidos” começam a surgir na trama, e os conflitos vão se acirrando, mostrando um ambiente familiar repleto de tristezas, desilusões, complexos, neuroses e desespero. Capitão Shotover, em uma tentativa de ignorar a volta da filha Ariadne, finge que não a reconhece e que está louco, referindo-se como filha apenas a Hesione (embora também não a trate com carinho, desprezando seu marido, Hector). No final, entretanto, explode, perguntando em desespero porque ela fugiu de sua casa. Ellie, após entender que as desilusões continuariam por toda a sua vida (e, principalmente, por toda a sua estadia na casa), apelida a mansão de The Heartbreak House. Em um dos momentos mais intensos da peça, Hector Hushabye, aparentemente em um tom tranqüilo, diz: “nós estamos nessa casa há muito tempo. Nós não moramos nela; a assombramos”. Esse tom fantasmagórico permeia toda a peça, e é essa a principal característica de The Heartbreak House: a angústia. Não só a angústia de viver sob a sombra da guerra, e sim a angústia de viver em família, de viver em sociedade, em companhia de nossas neuroses e dilemas – se todos traem a si mesmos e a seus semelhantes na peça, assim também se comporta a humanidade. A angústia, o desespero e, ao mesmo tempo, a histeria de ansiar por mais catástrofes e acontecimentos que trarão mais ambigüidades e paradoxos, são características que tornam The Heartbreak House uma obra, além de genial, assustadora.




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