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Noivo neurótico, noiva nervosa

Por Filipe Chamy

Noivo neurótico, noiva nervosa
Direção: Woody Allen
Annie Hall, EUA, 1977.

Que Woody Allen é um frasista genial, seus detratores encontrarão poucos argumentos para negar. Que é um exímio comediante, também. Mas que é um hábil diretor, isso ainda encontra resistência por parte da maior parte de seu público, que o considera apenas um roteirista engraçado e perspicaz. Isso já não é pouco, de fato, mas seus talentos vão muito além de fazer rir e divertir por alguns minutos os espectadores de seus filmes. Annie Hall, seu filme mais maduro, mostra que, com inteligência e sensibilidade, é possível fazer algo simples e perene, tocante na mesma medida que memorável.

O próprio Woody interpreta Alvy Singer, que, a despeito do nome, não é cantor, mas humorista. E como todas as pessoas que verdadeiramente dominam a arte do humor, vive de caçoar da própria desgraça, sublimar seus problemas em forma de chistes e tiradas sarcásticas e ágeis (— não é à toa que Woody Allen venera Groucho Marx). Vive com suas neuroses e seus distúrbios, até que um dia se depara com a graciosa jovem que atende pelo nome de Annie Hall (Diane Keaton, em sua mais luminosa aparição). O romance tímido engata e leva a vida dos dois a novas perspectivas.

O que poderia ser um romance bobo e meloso nas mãos de um cineasta incompetente torna-se um relacionamento caloroso e honesto nas rédeas do diretor-ator, que imprime no casal protagonista a marca das grandes parcerias, em todos os aspectos, do sentimental ao sexual. Enfiar o dedo nas próprias feridas e fazer disso um motivo para seguir vivendo só é permitido aos sábios, pois eles enxergam suas imperfeições e conseguem viver apesar delas (— não é à toa que Woody Allen venera Ingmar Bergman).

De toda a brisa que sopra de Nova Iorque, ao som do jazz, as caminhadas pelas ruas e as partidas de tênis, depreende-se uma sintonia com o que a vida traz de mais belo, ainda que não seja fácil ver beleza nos momentos de angústia ou depressão. Mas no cinema isso é viabilizado com belos planos que resgatam a harmonia da vida conjunta, as pequenas guerras conjugais e as irritações que qualquer habitante de cidade grande sempre acaba atraindo para si, como agüentar os habituais idiotas das filas de espetáculos, desfilando sua monstruosamente cretina pseudo-erudição.

Às qualidades técnico-literárias do filme some-se a naturalidade com que os sentimentos são retratados, fazendo desta comédia um dos grandes dramas amorosos de todos os tempos. Quando Annie Hall, envergonhada, atrapalha-se ao falar com Alvy, essa afobação conquista o espectador, e esse é um truque muito sagaz de Woody Allen, agarrar seu público pelo coração e mantê-lo pelo cérebro, como se a identificação fosse não só cabível mas esperada.

Annie Hall não é uma comédia tradicional, e em muitos casos chega a merecer o incômodo subgênero da comédia romântica a que algumas vezes é relegado. Mas as emoções profundas, em suas cores e tons até tenebrosos, são essencialmente inclassificáveis. Alguém pode rir do filme, compadecer-se da sina de Alvy (o eterno cínico, que esconde carências debaixo de ironias), torcer por Annie Hall ou mesmo desejar a separação do casal, tão simpático e tão problemático, tão diferente e tão gêmeo. Mas não há que se negar a força das situações, eventos e personagens retratados, como verdadeiro triunfo da moda simples de se fazer cinema, sem nada de barroco, artificial ou computadorizado.

É por tudo isso, e por mais tantos pequenos e grandes fatores, que o filme resiste como um exemplo, uma rocha de sustentação e inspiração. Annie Hall é, no filme e fora dele, apaixonante.



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