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Fragmentos Literários

Por Stefanie Gaspar

O Segredo de Joe Gould, de Joseph Mitchell

Uma alma perdida chamada Joe Gould

*Aviso: esse texto contém spoilers

A História Oral tem sido minha corda e minha forca, minha cama e minha comida, minha esposa e minha puta, minha ferida e o sal em cima dela, meu uísque e minha aspirina, minha rocha e minha salvação. É a única coisa que tem valor para mim. O resto é lixo.

Joseph Mitchell era um escritor e jornalista que prezava a descrição minuciosa de seus personagens, desenvolvendo um estilo marcado pela leveza, pela calma – ler os escritos de Mitchell é como desacelerar, aprender a ver o mundo com mais calma e nunca definir de antemão como são as pessoas que nos cercam – e pelo prazer de escrever. O estilo de Mitchell é tão elegante e preciso que cada palavra parece ganhar um significado especial. Em O Segredo de Joe Gould, que compreende o perfil O Professor Gaivota, escrito para a New Yorker em 1942, e o complemento O Segredo de Joe Gould, escrito em 1964, Mitchell apresenta um personagem muito importante para sua trajetória profissional – o excêntrico boêmio Joe Gould.

Joe Gould era um homem de 53 anos que vivia de albergue em albergue, bebendo nos bares de Greenwich Village e angariando alguns trocados para, segundo ele, conseguir terminar sua auto intitulada “História Oral de nosso tempo” – que seria o maior livro do mundo, uma coletânea de inúmeras conversas, diálogos e histórias ouvidas por Joe Gould em suas peregrinações pelas ruas. Para conseguir dar conta desse projeto ambicioso, Gould largara seu emprego, passando a viver da caridade alheia e de doações para o “Fundo Joe Gould”, que conseguia pedindo dinheiro para amigos e conhecidos que acreditavam na realização da História Oral. Joseph Mitchell achou que Gould era um bom personagem para um perfil, e resolveu conhecê-lo melhor para escrever a matéria para a New Yorker.

Na primeira vez que se encontraram, Joe Gould já mostrou sua soberba, ao dizer a Mitchell: “Você deve estar intrigado comigo. Se assim é, o sentimento é mútuo, pois também estou intrigado comigo desde menino”. Mitchell tenta descrever a figura de Gould com o máximo de exatidão possível, mesmo percebendo desde o início que havia algo, no mínimo, curioso a respeito de Gould, e que este era muito mais uma máscara do que uma pessoa que se apresentava ao repórter tal como é. O discurso que sempre preparava a respeito da História Oral, por exemplo – tem sido minha corda e minha forca, minha cama e minha comida, minha esposa e minha puta –, era claramente algo forçado, ensaiado exaustivamente, e Mitchell tentava, simultaneamente, mostrar essa teatralidade forçada ao leitor e não satirizar ou desrespeitar Joe Gould. Na segunda parte do livro, Mitchell revela a verdade sobre a História Oral e sobre o próprio Gould, que vivia em um mundo próprio não só por excentricidade, e sim por sobrevivência. Gould dizia à Mitchell que nunca publicara a História Oral por ter sido continuamente recusado por diversos editores. Mitchell, então, apresentou-o a dois amigos seus que poderiam editar e publicar a História Oral – com o primeiro, simplesmente não foi ao encontro na hora marcada; com o segundo, inventou uma série de subterfúgios para não entregar seus cadernos com as anotações, ora dizendo que ninguém entenderia sua letra, ora dizendo que eram muitos cadernos e seria impossível publicá-los agora, já que cada um estava em um lugar diferente. Finalmente, Mitchell explodiu: “Você me disse que levou braçadas da História Oral a catorze editoras. Por que diabos teve todo esse trabalho se havia decidido no fundo de você mesmo que a História Oral seria uma obra póstuma? Estou começando a crer que a História Oral não existe”. Assim que proferiu a última frase, Mitchell tinha certeza de que estava certo. Olhou para Gould, que parecia muito constrangido, e compreendeu sua resistência em mostrar a História Oral e o motivo pelo qual ele só tinha lhe dado alguns cadernos com ensaios incompletos. A surpresa que sentiu ao fazer essa descoberta e todo o constrangimento subseqüente é descrito com precisão por Mitchell, fazendo com que o leitor sinta seu desespero em desmascarar um homem que dependia, para sua sobrevivência, da fantasia da História Oral.

Joseph Mitchell era um homem cordato, polido e extremamente gentil. Para Gould, um homem tão disposto a escutar era exatamente o que procurava – sua enorme necessidade de falar de si próprio o levou a aparecer na redação da New Yorker várias vezes por semana, conversando por horas ininterruptas com Mitchell. No segundo texto, ele desabafa e diz ao leitor como era torturante ouvir Gould por tanto tempo, e como sentia que sua gentileza e incapacidade de mandá-lo embora eram características que o incomodavam em sua personalidade. Assim, Mitchell se insere no texto, na agonia de um homem que sofria por ser educado e paciente em um mundo no qual as pessoas não querem ouvir, e sim serem ouvidas. Se todo o perfil de Gould – e mesmo seus outros escritos – traz uma melancolia subjacente que mostra uma visão de mundo marcada pela tristeza, um dos trechos é particularmente triste, por revelar quão infeliz era a relação entre Mitchell, um homem que via diante de si o desnudamento de um homem, e Gould, o simulacro de um boêmio que só sustentava a si mesmo vivendo dentro de uma mentira e acreditando nela. “Gould tinha compulsão para falar, não aceitava recusa (...) o assunto era sempre o mesmo: ele próprio. E eu ficava sentado, ouvindo e me esforçando para demonstrar algum interesse. Eu era jovem então, e muito mais gentil com os mais velhos – e com todo mundo, pensando bem – do que deveria. E ainda não sabia nada sobre o tempo; ainda tinha a ilusão de que dispunha de muito tempo – tempo para isso, tempo para aquilo, tempo para tudo, tempo para perder”.

Seria fácil cair na tentação de descrever a boêmia de Joe Gould de maneira idealizada, caracterizando-o como um homem errante e sonhador. Joseph Mitchell inicia seu perfil desviando desses clichês, mostrando não só que Joe Gould não era exatamente um bandoleiro gentil – na segunda parte, descreve-o como um homem “disparatado, arrogante, intrometido, mexeriqueiro, caçoísta, sarcástico e grosseiro” –, como descrevendo sua situação precária como sem teto. “Sua vida não é nada fácil; três flagelos o atormentam: falta de teto, fome e ressaca. Gould dorme nos bancos das estações do metrô, no chão do apartamento dos amigos e nos albergues da Bowery, onde o pernoite custa 25 centavos (...) Tem 1,62 de altura e dificilmente pesa mais que 45 quilos. Pouco tempo atrás comentou com um amigo que não faz uma refeição decente desde junho de 1936”. Não é nada romântico morar na rua e depender da caridade de estranhos para sobreviver. Mitchell especula que Gould realmente queria escrever a História Oral quando decidiu morar nas ruas e largar seu emprego, mas que logo percebeu não ter o talento e a capacidade para tal empreitada. Para continuar, ao menos, conseguindo alguns trocados de pessoas impressionadas com suas histórias e para sobreviver à tristeza e ao desespero que deve ter sentido ao descobrir sua própria incapacidade, Gould criou a versão de que a História Oral tinha aproximadamente 9 milhões de palavras, uma obra gigantesca e inédita no mundo contemporâneo. “Em boa parte do tempo provavelmente acreditava, de modo nebuloso, iludindo-se e protegendo a si mesmo, que a História Oral de fato existia”. Mitchell, talvez tentando expiar a culpa por ter “delatado” Gould, explica que, no momento seguinte à descoberta, passou a admirá-lo. “O Excêntrico Autor de um Grande Livro Misterioso e Inédito – essa era sua máscara. Escondido atrás dela, criara um personagem muito mais complexo, a meu ver, do que a maioria dos personagens criados pelos romancistas e dramaturgos de sua época”.

Joseph Mitchell estrutura a história mostrando ao leitor como ele apreende a figura de Gould – mostrando como, pelo menos no princípio, acreditou no personagem que Gould criara para sobreviver. Isso posto, existem várias problemáticas que se apresentam como essenciais: até que ponto o jornalista não “compra” a imagem que a fonte oferece pronta? E até que ponto ele também não é responsável pela criação de outra imagem, resultando que o leitor nunca tenha acesso à verdade, e sim a representações parciais e incompletas da realidade? Uma reportagem, um ensaio e um romance são apenas fragmentos, recortes de uma realidade muito mais complexa. E um mundo todo, com lógicas próprias, pode ser encontrado em cada romance, em cada artigo, em cada ensaio, em cada imagem. Joe Gould é um fragmento – do mundo, dos EUA, do próprio Joseph Mitchell.

“Ele era a criança catarrenta; era o filho que sabe que desapontou o pai; era o tampinha, o nanico, o metro-e-meio, o meio-quilo; era Joe Gould, o poeta; era Joe Gould, o historiador; era Joe Gould, o selvagem dançarino Chippewa; era Joe Gould, a maior autoridade mundial na língua das gaivotas; era o proscrito; era o exemplo perfeito do notívago solitário; era o ratinho; era o único membro do Partido Joe Gould; era o boêmio residente do Minetta Tavern; era o Professor, o Gaivota, o Professor Gaivota, o Mangusto, o Professor Mangusto, o Garoto do Bellevue”.




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