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Musas Eternas...
PORQUE O QUE É BOM, É ETERNO...

Jeanne Moreau

Por Filipe Chamy

Falar de Jeanne Moreau sem citar o amor não é possível. Sim, o amor. Por exemplo, o amor pelo cinema, que ela passa a cada papel. Sessenta irretocáveis anos dedicados à sétima arte, sempre com atuações definitivas e que se tornam instantaneamente clássicas e modelos de perfeição. Mas também o amor pela vida, a alegria, o ardor de um trabalho bem-feito, uma incansável dedicação a tudo que há de mais nobre. É talvez a atriz mais completa da história do cinema, a mais facilmente associada a grandes diretores; é impossível elaborar uma lista dos maiores cineastas de todos os tempos sem citar pelo menos algum que tenha trabalhado com Jeanne Moreau. Musa de tantas personalidades icônicas — como Bergman, que sempre se sentiu frustrado por não haver podido filmar com ela —, não fez sucesso apenas por ser bonita (há até quem não veja beleza física em Jeanne Moreau!) ou por funcionar em um certo momento. É sobretudo sua extraordinária força e a qualidade absurda de suas interpretações, sempre tão naturais como potentes, que entregam a esta francesa de oitenta bem vividas décadas o indiscutível cetro de uma das maiores figuras femininas que o cinema já conheceu.

Pessoalmente, Jeanne Moreau é conhecida não só por seu profissionalismo e competência, mas por uma simpatia grande como seu talento de atriz. Gosta de trabalhar com gente amiga, em ambientes descontraídos. Opiniões sobre seu caráter são virtualmente unânimes, e ainda hoje essa espécie de humildade impressiona, e a mulher não se dá por vencida, não se deixa acomodar pelo nome mítico que possui, sempre ousando e experimentando, fazendo filme atrás de filme. E não de maneira mecânica, automática, mas diferente e bela como se fosse a primeira vez. É uma pedra de resistência, firme como um granito. Por pior que seja um filme, se nele Jeanne Moreau sorri, ou faz qualquer gesto espontâneo (como o são todos os seus gestos), um movimento, nele há graça, e o espectador é conquistado, o filme já tem sua utilidade decretada. É vantajoso e agradável vê-la.

Jeanne começou sua carreira artística na Comédie Française (aliás, foi o membro vitalício mais jovem em seus quadros), mas quando ouvimos seu nome naturalmente pensamos em cinema. A seguir estão relacionados os principais filmes de Jeanne como atriz, e também alguns dos mais recentes e famosos:

Ascensor para o cadafalso (1958) — O filme que projetou Jeanne Moreau para o mundo. Permanece não só um divisor de águas na carreira da atriz mas um dos melhores filmes do grande Louis Malle, que, ao som de Miles Davis, tece uma trama sórdida de amor e crime, no melhor estilo hitchcockiano. Jeanne faz, claro, uma femme fatale.

Os amantes (1958) — Filme tabu em sua época, por mostrar a sexualidade dos personagens de maneira franca e livre de esquematismos morais. A indecisão entre o conservadorismo e a liberdade culpada (ou atacada), num retrato um tanto cínico da relação amorosa, que Jeanne Moreau retrata com precisão e impacto.

Os incompreendidos (1959)
— Jeanne faz uma aparição especial neste primeiro longa de François Truffaut, em que sai às ruas procurando seu cachorro perdido. Jean-Pierre Léaud tenta ajudá-la e Jean-Claude Brialy se encarrega de cumprir a missão, a contragosto de Antoine Doinel. O filme agradece a Mademoiselle Jeanne Moreau.

A noite (1961) — A segunda parte da trilogia da incomunicabilidade assinada por Michelangelo Antonioni é um de seus grandes trabalhos dramáticos, numa presença atormentada e que co-estrela ao lado de Marcello Mastroianni um conflito interno de proporções desconhecidas e que não pode ser exteriorizado.

Uma mulher é uma mulher (1961) — Na única vez em que trabalhou sob a batuta de Jean-Luc Godard, Jeanne Moreau apenas faz uma ponta, uma divertida brincadeira metalingüística sobre sua participação em Jules e Jim. Jean-Paul Belmondo a aborda num bar, querendo saber do filme, e vemos o então espírito de amizade da nouvelle vague.

Jules e Jim – Uma mulher para dois (1962)
— Um dos filmes mais famosos de Truffaut e também o primeiro filme de Jeanne como sua protagonista.. Sua Catherine é mais confiante que a Kathe do livro de Henri-Pierre Roché, e tão explosiva e intensa quanto. Um papel de uma vida, num filme ainda hoje muito delicado e ousado.

O processo (1962) — A brilhante adaptação de Orson Welles para a capital obra do genial Franz Kafka é a primeira parceria do gorducho americano com a atriz francesa. Jeanne faz o pequeno mas importante papel da srta. Bürstner, outra peça enigmática no caminho de Josef K.

Trinta anos esta noite (1963) — Novamente Jeanne faz apenas uma pequena personagem, em meio a um dos filmes mais pessoais de Louis Malle, no qual um homem (Maurice Ronet, seu amante de crime em Ascensor para o cadafalso) vê-se a todo instante pendendo para um dos lados de uma corda bamba de desespero e sufocação.

Diário de uma camareira (1964) — Subestimadíssimo trabalho de Luis Buñuel, a refilmagem do clássico de Jean Renoir apresenta uma Jeanne Moreau luminosa e instigante, numa história cheia de perversões íntimas e segredos ocultos por grotescamente bizarras máscaras sociais.

Viva Maria! (1965) — Um de seus filmes mais conhecidos fora da França, com o amparo da comédia, Brigitte Bardot e, mais uma vez, Malle, entregando a Jeanne um papel mais arejado e cômico. Um de seus momentos mais sensuais, é também um belo registro do cinema popular francês que se praticava no período. BAFTA de melhor atriz estrangeira.

Falstaff – O toque da meia noite (1965) — Numa das obras mais audaciosas de Orson Welles (que a considerava a melhor atriz do mundo), Jeanne faz uma mulher cuja existência no filme depende do próprio personagem-título, vivido pelo monstruosamente obeso diretor, que literalmente domina a tela quase o tempo todo.

A noiva estava de preto (1968) — A maior homenagem de François Truffaut a seu mestre Alfred Hitchcock. Jeanne Moreau faz a personagem-título, mulher obcecada por uma missão macabra a que se propôs após ficar transtornada pela morte do amado: eliminar seus algozes, um a um, pelas mais diferentes e cruéis maneiras.

Querelle (1982) — Um de seus papéis (e filmes) mais controversos. Sob direção de Rainer Werner Fassbinder, Jeanne faz o papel de uma mulher depravada e ambígua, pouco confiável e traiçoeira. Obra difícil e pouco respeitada em geral, tida simploriamente como um libelo homossexual do diretor.

Além das nuvens (1995)
— Curioso trabalho feito a quatro mãos pelo legendário Michelangelo Antonioni (novamente com Jeanne após A noite) e pelo não menos famoso Wim Wenders, seu discípulo e admirador. Jeanne faz uma participação especial contracenando com Marcello Mastroianni (novamente com Jeanne após A noite).

O tempo que resta (2005) — Nesta dolorosa obra de François Ozon, Jeanne Moreau faz a avó do protagonista, um rapaz que está morrendo de câncer. Envelhecida, ela carrega em cada ruga do rosto uma parte do cinema francês (e por que não dizer “mundial”?). Lembra uma despedida, apesar de ela ainda continuar trabalhando ativamente.

Cada um com seu cinema (2007) — A última vez que o público brasileiro pôde ver Jeanne Moreau em um filme inédito nos cinemas (pelo menos até agora) apresenta um curta de Theodoros Angelopoulos, de nome Três minutos, sobre o “reencontro” da quase octogenária francesa com, vejam só, Mastroianni, mais de uma década após sua morte!

Como se não bastasse, Jeanne Moreau não fez apenas esses trabalhos. Entre suas outras dezenas, destacam-se, também por ordem cronológica: Grisbi, ouro maldito, noir francês em que contracena com ninguém menos que Jean Gabin; A rainha Margot, talvez seu primeiro passo rumo ao estrelato, a primeira versão famosa do romance de Dumas (que depois foi refilmado com Isabelle Adjani); Moderato cantabile, filme que lhe valeu a prestigiosa estatueta de melhor atriz no Festival de Cannes (do qual seria a única mulher duas vezes presidente do júri); Mata-Hari, versão roteirizada por Truffaut e dirigida por seu ex-marido Jean-Louis Richard, pai de seu único filho, Jérôme; O trem, filme de ação e guerra estrelado por Burt Lancaster; O Rolls-Royce amarelo, em que faz parte do agrupamento de estrelas, ao lado de nomes como Ingrid Bergman e Alain Delon; História imortal, mais uma parceria com Welles — a última conhecida, já que The deep está oficialmente perdido —; Nathalie Granger, dirigido pela escritora Marguerite Duras, com Gérard Depardieu; Joanna francesa, do brasileiro Carlos Diegues, que inspirou a famosa música de Chico Buarque (e Jeanne faria mais para frente uma participação em um disco de Maria Bethânia!); O último magnata, assinado pelo célebre Elia Kazan, com astros de renome; Nikita, conhecida cria do medíocre Luc Besson; La vieille qui marchait dans la mer, o devido César de melhor atriz; O amante, narrando a adaptação de Duras; Balzac, minissérie feita para a TV da França; Aquele amor, em que interpreta a própria Marguerite Duras; Château en Suède, para a televisão, sua última atuação até o momento.

Além de atriz, Jeanne é diretora. Dirigiu três filmes: Lumière, L’adolescente e um documentário sobre Lillian Gish, entitulado com o nome da biografada. A trinca é muito elogiada, e não se conhecem os motivos que a fizeram parar a atividade. Talvez tenha acreditado (não sem certa razão) que seu lugar é mesmo na frente das câmeras, iluminando as películas e encantando o público.

Mas à parte sua carreira cinematográfica, uma de suas grandes paixões, e que por merecimento lhe trouxe muitos louros, é a música. Jeanne Moreau é também cantora, há mais de quarenta anos emociona a sensibilidade de seus ouvintes. São altamente recomendáveis discos como Jeanne chante Jeanne e Jeanne chante Bassiak.

Outras curiosidades interessantes: Jeanne foi a primeira atriz não-ianque que apareceu na capa da revista Time; entrou na lista das 100 personalidades mais sexies do cinema, elaborada pela Empire em 1996; ganhou honorários Palma de Ouro, Urso de Ouro, Leão de Ouro e César (dois); foi casada com William Friedkin, o diretor de O exorcista e Operação França; rejeitou atuar em filmes importantes como A primeira noite de um homem e A professora de piano por razões pessoais; ganhou prêmios no teatro; tinha grande amizade com intelectuais influentes, como Henry Miller e Jean Genet; é a primeira mulher a entrar na Academia de Belas-Artes francesa.

Este texto usou, diversas vezes, impropriamente o vocábulo carreira, pois a própria Jeanne afirmou recentemente que "eu não faço carreira. Ser atriz, para mim, é uma vocação, uma ética, uma moral, uma maneira de viver. Eu lutei para ser atriz". Não há melhor maneira para encerrar que sorvendo a lucidez e a honestidade que essas palavras traduzem. Talvez só reste agradecer. Obrigado por tudo, Jeanne Moreau.




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