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VITROLA NACIONAL
Por Laís Clemente

CANDEIA - RAIZ (FILOSOFIA DO SAMBA)

Candeia, um filósofo do samba

Em uma revista cujo mote é o cinema popular brasileiro, na qual se prega a valorização do também cinema marginal, nada mais natural que se leia sobre Ozualdo Candeias, cineasta que batizou o movimento com seu filme A margem.

Contudo, eu não “comi” um “s” no título desta matéria. O artista sobre quem proponho uma discussão no decorrer desse texto, estréia da coluna de música brasileira na Zingu!, é Antonio CandeiA Filho, no singular mesmo.

Tendo isso bem esclarecido, vamos aos fatos: Candeia nasceu em 1935. Seu pai era flautista e assíduo freqüentador das rodas de samba de Oswaldo Cruz. Tratou de inserir seu filho nesse universo logo cedo, mais precisamente aos seis anos. Aos 13, já arriscava suas primeiras composições. Em 57 ou 61 (cada historiador diz uma data), se deu conta de que viver de música era um luxo para poucos, e entrou para a polícia civil. Truculento, dizem que prendia muitos malandros e prostitutas, e que chegou até mesmo a pedir os documentos de um certo (e ainda não famoso) Paulinho da Viola. Foi justamente esse comportamento autoritário que provocou o acidente que o impossibilitaria de voltar ao trabalho: ao bater o carro que dirigia em um caminhão, ele foi tirar satisfações com o motorista. Para sua surpresa, encontrou alguém armado e de sangue ainda mais quente que o seu que, o pegando desprevenido, acertou-lhe cinco tiros.

Ele sobreviveu – claro! -, senão essa história não teria a menor graça. Entretanto, a partir do crime que o tornou paraplégico, Candeia já não era mais o mesmo. Seus contemporâneos como Monarco e Valdir 59 contam que ele se tornou inconstante, alternando entre alegria contagiante e desejo de solidão. Mesmo mudado, ele continuou no samba, só que agora em tempo integral. E a instabilidade acabou por se refletir em suas obras. “Raiz (1971)”, o segundo álbum do músico após o acidente, reflete bem isso. Nesse disco, que foi relançado em 2000 com o nome de Filosofia do samba, ele canta a sobrevivência ao afirmar que “De qualquer maneira, eu canto”. A música (intitulada De qualquer maneira) fala justamente dessa persistência que move Candeia seja “com os olhos rasos d’água ou com sorriso na boca”.

O motivo da resistência está em canções como Saudação a toco preto e o partido alto Vai pro lado de lá. Em sua juventude, Candeia se encantou pela cultura negra, que defendeu em versos durante toda a sua vida. O candomblé, as rodas de capoeira, tudo isso era motivo de orgulho para o artista, que enfatiza nessas canções elementos como a mandinga, o patuá e o mungunzá seja ao som da batida contagiante dos terreiros ou de pandeiro e cuíca.

Ficar preso à cadeira de rodas também parece ter envelhecido o sambista que aos 36 anos já cantava as rugas em seu rosto e as desilusões pelo que sentia estar perdendo com o fim da juventude. Em canções como Saudade, parceria com Arthur Poerne, ou em Minhas madrugadas, feita juntamente com Paulinho da Viola, ele demonstra um passadismo ao homenagear aqueles que, como Paulo da Portela ou José Gonçalves (o Zé com Fome), embalavam as rodas de samba que viravam a madrugada carioca durante a juventude de Candeia.

Na canção Filosofia do samba, ele mostra que com esse envelhecimento precoce veio também uma boa dose de sabedoria. Entre as repetições do refrão desse partido alto, ele critica o individualismo, a falta de amor ao próximo e questiona a ausência de liberdade na sociedade brasileira de sua época.

Felizmente, a desilusão de Candeia em relação ao presente foi vencida por sua índole guerreira e inconformista. “Enquanto houver samba na veia empunharei meu violão” foi a filosofia na qual ele permaneceu fiel até o fim da vida, fazendo samba autêntico, por mais que não agradasse aos ouvidos de quem poderia consagrá-lo. Candeia não parecia querer a aprovação de ninguém. Queria seguir mostrando suas raízes e, através delas, falar sobre tudo aquilo em que acreditava. Doa a quem doer.

Talvez por isso ele seja hoje muito pouco lembrado. Enquanto o documentário O mistério do samba, que homenageia a velha guarda da Portela, tem destaque na mídia, Eu sou o povo, filme lançado no mês passado e que conta a história de Candeia e do grêmio recreativo criado por ele, o GRES Quilombo, tem uma tímida estréia no Rio de Janeiro. Talvez seja o desconhecimento do público sobre o artista. Ou talvez seja a falta de Marisas Monte e Zecas Pagodinho no elenco...



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