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Dossiê José Mojica Marins

Depoimentos

Por Carlos Primati

O efeito Coffin Joe: um depoimento

Meu primeiro contato com um filme de José Mojica Marins aconteceu quando uma cópia surrada de Delírios de um Anormal chegou ao meu videocassete. Na época, eu tinha uns 20 anos e já havia decidido que minha vida profissional seria dedicada a escrever sobre cinema, preferencialmente sobre filmes de horror. Apesar de eu ser aficionado pelo gênero, o primeiro filme de Zé do Caixão só ganhou vez em minha lista como a última opção da prateleira de Terror da locadora imunda que eu freqüentava semanalmente na época. Sem mais opções, decidi levar o filme pra casa “só pra tirar um sarro”. Afinal, essa era a impressão que eu – e, ouso dizer, também grande parte da minha geração – tinha sobre Zé do Caixão: um artista patético, ridículo.

Duas horas depois (apesar da cópia desbotada e quase inassistível), minha vida estava mudada. Como antes já dissera (e, claro, à esta altura eu não sabia) o crítico-cineasta Carlos Reichenbach, “o tarado havia me violentado”. Passado o estágio de estupefação, eu havia me decidido: se queria mesmo me especializar em cinema de horror, nada mais perfeito do que me dedicar a algo que fizesse parte da cultura de meu país e que, aparentemente, era um tema inédito em termos de estudos no Brasil.

Decidi que Mojica merecia um livro e passei a procurar algum telefone de contato para conversar com ele. Tudo que eu tinha para me basear eram as freqüentes aparições de Mojica na TV, que iam desde o Matéria Prima – programa jovem capitaneado por Serginho Groissman no início das noites no SBT – até coisas bem menos edificantes. Consegui o número do telefone, falei com Mojica, marquei um encontro e fiz a proposta do livro. Isso foi na era pré-Coffin Joe. Desisti do livro quando Mojica contou que o André Barcinski já estava escrevendo um; entrei para o projeto colaborando com a ‘Mojicografia’, algo muito especial pra mim e, espero, para os demais interessados na obra do cineasta.

Resgatado pelo VHS

A era do VHS foi essencial para resgatar o cinema de Mojica. Apesar de Mojica, no auge de sua carreira, ter o apoio de parte da crítica (que enxergava algum valor de entretenimento em seus filmes) e dos intelectuais (estes, provavelmente, só queriam mesmo ser “do contra”), os filmes do diretor costumavam ser achincalhados pelos “formadores de opinião”. E eles conseguiram formar a pior opinião possível sobre Mojica. A geração que cresceu descobrindo Romero, Carpenter, Argento e outros ‘mestres do horror’ nas locadoras logo percebeu que Mojica era um deles. O respeito por seu cinema foi resgatado por pessoas que, acima de tudo, se dispuseram a ver seus filmes. A reação era de “ei… isso não é nada ruim!”. Quem desconfiaria?

Com o passar do tempo, ao conhecer mais pessoas interessadas (principalmente) em filmes de horror, espantei-me ao descobrir que tinham percorrido trajeto similar ao meu, passando do desprezo e desinteresse por Mojica (antes de conhecer seus filmes) à admiração pelos filmes e pelo cineasta. Profissionalmente, na condição de jovem jornalista, ávido por temas palpitantes e personagens fascinantes (e, acima de tudo, esquecidos e/ou menosprezados), Zé do Caixão era algo bom demais para ser verdade. Tratei de colaborar para todos os veículos que abriam espaço para eu escrever sobre os filmes de Zé do Caixão. Em algum momento dos anos 90, comentei com o próprio Mojica que a ‘última’ chance que ele teria de ser levado a sério seria através do relançamento de sua obra em home video. Ele tinha que ser conhecido (e julgado) pelos filmes que fez, e nada mais. O DVD nem existia ainda e, ironicamente, poucos anos depois, eu seria um dos responsáveis por transferir para a mídia digital a obra do cineasta, através de um premiado box com seis dos melhores filmes de nosso mestre do horror.

Esquizofrenia

O veredicto final é que os menos informados ainda confundem José Mojica Marins, o cineasta, com Zé do Caixão, o agente funerário. Criador e criatura são inseparáveis, para o bem e – principalmente – para o mal. Porém, não cabe culpar “as pessoas” por esta confusão. Mojica é o principal responsável por tornar invisível essa barreira que os separa (ou deveria separar, pelo menos). O problema é que quando Mojica tem a oportunidade de ser levado a sério – seu encontro com o presidente Fernando Henrique Cardoso ou a cerimônia do Arquivo Nacional que lhe devolveu a cópia vetada de Ritual dos Sádicos, por exemplo – ele se traveste de Zé do Caixão, kit em punho, e aperta a descarga.

Há muito de kitsch nas aparições públicas de Mojica e este é um dos fatores que fizeram grudar o rótulo de ‘trash’ em seus filmes, por melhor que seja o nível de produção. Basta ler o que a crítica mainstream escreveu sobre Encarnação do Demônio. Recentemente Mojica foi o “editor convidado” do Jornal da Tarde. Apresentou-se ao ‘trabalho’ trajado de Zé do Caixão (capa, cartola, medalhão). Melhor seria ter aparecido à paisana, se quer ser levado a sério. Zé do Caixão queremos ver nas telas de cinema, em nossa coleção de DVD. Talvez pareça tarde pra querer fazer essa mudança; Mojica é isso mesmo. Porém, a geração que hoje está beirando os 20 anos pode pensar que Zé do Caixão é só circo, não é mesmo?

Nessa era de celebridades instantâneas, as performances circenses de Mojica não se diferenciam do ‘espetáculo’ de sujeitos como INRI Cristo e Toninho do Diabo. Aí, qualquer tentativa de se explicar ao leigo o abismo que os separa acaba se resumindo ao proverbial exercício da tomada e o focinho de porco.

Carlos Primati é jornalista, curador e pesquisador de cinema de horror



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