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Dossiê José Mojica Marins

Depoimentos

Por Cid Nader

Curioso falar de uma das figuras que mais me apavoraram a infância. Quando era criança, Mojica tinha um programa na TV Bandeirantes às sextas-feiras. Sei lá a razão, mas meus pais e tios jogavam baralho em casa e faziam questão de dar uma paradinha na hora em que o Zé assaltava a tela. Era assustador. Não entendia qual era a deles, ao mesmo tempo em que fui criando um pânico interiorizado dos mais danados de filmes de terror - que imaginei jamais seria superado (aliás, nunca nem pensei em fazer força para isso). Sonhava de verdade com aquela figura grotesca, de unhas enormes e sujas de sangue e terra - o “suja de sangue e terra” ficavam por conta de minha imaginação, adotadas dos filmes e transpostas, na minha imaginação apavorada, para o cenário televisivo -, que berrava e rogava pragas, cuspia perdigotos (será?) e fuzilava as lentes com o olhar. Fui criando, ainda por cima, uma raiva tremenda da figura que abortava minhas possibilidades de assistir até um pouco mais tarde os programas, já que durante a semana o esquema era um tanto mais rígido quanto às minhas liberdades de lazer.

Cresci com medo da figura e, mesmo já um pouquinho mais adulto, jamais imaginei dar novas chances para ele no meu intelecto. Era personagem sepultado quase desde o seu nascedouro - para mim, um quase nati-morto. Durante uma Mostra Internacional de Cinema de São Paulo - isso no final dos anos 80 -, uma certa noite, não lembro por qual razão, Mojica travestido de Zé do Caixão recebeu uma homenagem no Cinesesc. Eu de pé, lá atrás, vejo, de repente, de soslaio, com o rabo do olho, a figura negra invadindo a sala, parando um pouco atrás e me dando dois tapinhas carinhosos nas costas, para em seguida apertar minha mão - não lembro quem estava comigo, mas foi a figura que chamou atenção da "besta", amigo seu, atraindo-o para nosso cantinho. Bem, não morri e nem sequer tremi. Ao contrário: para minha surpresa total, meu cérebro regojizou diante dos olhares invejosos que fulminaram de todo ao ambiente, e percebi que meu inconsciente deve ter trabalhado bem - sem a minha aprovação, logicamente - a questão durante toda a minha fase de crescimento. Estava diante de um ídolo dos que estavam lá, e me senti o máximo pela "velha amizade" nascida com os tapinhas nas costas.

Percebi que minha formação cinéfila já havia adotado carinho pela figura que me apavorara anteriormente. Percebi que o cinéfilo interessado havia superado a pessoa amedrontada. Eram momentos em que a admiração pelo Zé havia tomado de assalto um núcleo de aficcionados pelo gênero nos EUA. Lá o haviam renomeado de Coffin Joe - aliás, invenção arrogada por um amigo aqui de São Paulo, o Hirao, que trabalhava na Cinemateca na década de 80, e assim o teria denominado por conta da visita ao país do produtor de filmes B, Michael Weldon -, admirados pelo seu autoralismo, pelo seu humor, pelo seu terror sem dó nem piedade. Perceberam lá - talvez antes, ou talvez menos preconceituosamente - a importância de um autor de gênero, num país que não tinha nem uma tradição no setor, e que fazia seus filmes sem concessão, batendo em mulheres, arrancando olhos, espirrando sangue e zombando de cruzes. Acho que o Zé do Caixão não tinha tanta admiração cinéfila culta antes de sua descoberta nos "States": e passou a haver uma certa correria na tentativa de se tirar um atraso imperdoável, na expectativa de que os deuses ou demônios não punissem os próprios patrícios da figura, que até então - com raras exceções - não o veneravam como talvez ele merecesse.

Os jornais passaram a falar de sua trajetória, e sua obra passou a ser analisada. A figura que sempre teve forte apelo popular - ter programa televisivo no final dos 60, início dos 70, era sinal desse reconhecimento mais ampliado -, passou a ser "estudada" por quem não lhe dava muito valor além do pitoresco. Entrei no bote geral cinefílico para essa (re)tomada da obra de José Mojica, e a partir de então passou-se a compreender que tínhamos mais um autor - e de gênero! Passou-se a perceber que havia uma obra em formação - linear na eterna busca do personagem da mulher ideal que poderia gestar o filho prosseguidor de sua jornada diferenciada pela Terra -, que havia um diretor, batalhador, pertinaz, sempre em busca de recursos financeiros para a confecção de um cinema que não agradava muito os possíveis investidores. Passou-se a perceber que o Zé do Caixão do José Mojica, berrava ou sussurrava - sempre de modo assustador - falas de um dos maiores dialoguistas de nosso cinema: que também era genial nos seus momentos bem humorados - a mistura de horror e humor que ele sempre imprimiu em momentos de seus filmes são raras em similaridade, muito particulares, "autorais".

Quem vê Mojica falando pessoalmente percebe uma pessoa divertida, ligada, bastante jovial - apesar de seus mais de setenta anos -, que entende de cinema, cujos olhos ainda brilham diante da novidade, diante do reconhecimento. Inteligente, passa isso - mesmo para quem nunca conversou com ele - nas suas películas: na imaginação vasta de algumas cenas, nos diálogos - como já citei -, nas soluções técnicas encontradas. Não sei se meu medo diante da figura de seu personagem ícone está sepultado definitivamente - seus filmes aterrorizam mesmo. Sua obra é uma coisa à parte do seu cotidiano, apesar de ter gente que confunda ou queira confundir, a ponto de uma certa estranheza estar ganhando força. Há hoje em dia haja uma espécie de cruzada reacionária por parte de algumas pessoas contra o cinema do Mojica. Há um "excesso puritano" conclamando à razão, como que a querer fazer com que todas as obras tenham valor social, recato, "bom gosto" - e isso, justamente no momento em que Encarnação do Demônio sai da mesa de edição, após décadas de correria atrás de financiamento para sua conclusão. Esse "excesso puritano", tenta agir como regedor de idéias, e com seu apelo "politicamemente correto", provavelmente, tentaria impossibilitar - como citei inclusive na crítica ao filme que fiz no Cinequanon - um Nega do Cabelo Duro (somente de David Nasser e Rubens Soares), ou Cabeleira do Zezé (João Roberto Kelly), esquecendo-se de que a arte tem que ser entendida como a manifestação humana que pode (deve) nascer da maneira mais distante da razoabilidade normal e chata do cotidiano. A obra dele é imprescindível para nossa cinematografia: mesmo que não fosse boa - e o é demais -; mesmo que somente por ser única - com certeza -; principalmente porque transgride - e como.

Cid Nader é crítico de cinema e editor da revista eletrônica Cinequanon




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