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Dossiê José Mojica Marins

José Mojica Marins e a lógica do desajuste

Por Filipe Chamy

Ao se ouvir o nome de José Mojica Marins, é preciso uma certa iniciação no seu cinema para compreender a dimensão dessas palavras, ou mesmo seu significado — pessoas indagadas na rua sinceramente dirão desconhecer quem é esse homem. Mas quem é José Mojica Marins? E no que ele difere tanto de sua criação mais famosa, Zé do Caixão? São duas dimensões de um mesmo ser? É possível, mas então por que os passantes desconhecem o criador e conhecem a criatura?

Primeiramente, é preciso dizer que, por razões diversas, o nome de Mojica é menos forte que o de Zé do Caixão. Ao longo das últimas décadas, inúmeras pessoas se acostumaram a ver o coveiro satânico em programas de televisão e outras mídias, mesmo sequer sabendo que por trás daquela fantasia (em mais de um sentido) existe um cineasta de talento invulgar. Pois o que ocorre é que se acostuma a pensar sem contexto, isolando as coisas de seus condicionantes e de suas decorrências. Penso que tal gente acredita que de repente brotou um sujeito aparentemente ridículo na tela de sua casa, soltando pragas esdrúxulas e falando frases esquisitas.

Quando se pensa em Fellini e em Truffaut, dificilmente outra imagem é evocada que não a do cinema. São dois exemplos de homens que tiveram suas vocações descobertas e praticadas, suas capacidades reconhecidas, e suas próprias existências parecem mesmo ter sido atreladas à atividade cinematográfica. Mas quando se pensa em um José Mojica Marins, ninguém se preocupa em entendê-lo cineasta – o mesmo conhecê-lo como tal -, simplesmente vêem um terror tosco e de mau gosto. Esquecem que o acabamento não é necessariamente a única viabilização de uma idéia, e relegam Mojica ao cinema trash ou a um gênero indefinido entre o horror e a comédia involuntária. Erro grosseiro, tanto mais porque quem brada essas inverdades nem ao menos assistiu a suas obras — pensem: quantos dos detratores de Mojica viram seus filmes? A maior parte, sua quase totalidade, embarca nos velhos clichês do “não vi e não gostei”, amparados ou não por alguma linha argumentativa deficiente.

Não sabem separar as coisas. Zombam do Mojica televisivo, quando é por causa da própria ignorância desses espectadores que o cinema do diretor é restringido a ocasiões especiais, sem incentivo, e sua carreira é aniquilada à força do preço da sobrevivência. É preciso se manter, e não é entretendo um público que mastiga múmias computadorizadas que um cineasta de tamanho valor artesanal como José Mojica Marins vai conseguir seu sustento.

É lastimável encontrar o autor de pérolas como À meia-noite levarei sua alma e Ritual dos sádicos em aparições inglórias em veículos como Pânico na TV e Zorra Total. Mas se esse é o custo da ousadia!... Um cinema como o de Mojica hoje não tem lugar no Brasil, como prova a fria recepção a seu aguardado Encarnação do demônio. Ao público de cinema brasileiro, falta perspicácia e sobra cinismo. Não querem o sangue da saga fictícia de uma besta ensandecida, mas o dos crimes a que se acostumaram a ler no jornal todo dia. Porque o pesadelo já deixou de ser moral, a ordem do dia é o desespero. Some-se a isso uma incrível preguiça de tentar adequar o pensamento a uma outra realidade que não a vivida naquele instante, e aí temos um pavoroso quadro de desilusão a todos os artistas que tentam fugir das mesmices praticadas em nome de um certo e combalido “realismo” cinematográfico. Porque cada vez mais se exige verossimilhança e política, é muito mais cômodo sentar-se por duas horas frente a um espelho ideal. Enquanto o público permanecer covarde, José Mojica Marins será, dentro e fora das telas, um elemento maldito.



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