html> Revista Zingu! - arquivo. Novo endereço: www.revistazingu.net
Dossiê José Mojica Marins

À Meia-Noite Levarei sua Alma
Direção: José Mojica Marins
Brasil, 1964.

Por Sérgio Alpendre, especialmente para a Zingu!

"O que é a vida? É o princípio da morte. O que é a morte? É o fim da vida. O que é a existência? É a continuidade do sangue. E o que é o sangue? É a razão da existência."
Assim é apresentado ao mundo cinematográfico um dos personagens mais emblemáticos de um certo cinema de invenção. Zé do Caixão dá as caras ao público. Fala diretamente para ele, ameaçadoramente, olhando para a câmera. Logo após os créditos, uma bruxa de olhar ainda mais ameaçador dá o aviso, também se dirigindo diretamente a nós, espectadores, para que não assistamos ao filme que ainda está em seu início.

É uma apresentação curiosa a de Mojica. Ele vem ao mundo do cinema debaixo de alertas, frases ameaçadoras, uma atmosfera que já prepara o espectador para algo diferente, pulsante, inesquecível. Surge, então, seu nome, encerrando de vez os créditos e preâmbulos e passando para o início da história, a procura do personagem angustiado pela continuidade de seu sangue.

A aparição do coveiro Zé do Caixão se dará logo mais, durante um funeral. Ele é o encarregado de trazer a noite no meio do dia, por entre choros e lamentos dos familiares de um falecido.

É curioso rever este primeiro filme de Mojica, assim como sua superior continuação de 1966, Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, após a estréia do último exemplar da trilogia, o excelente Encarnação do Demônio. As frases de efeito já existiam lá no longínquo 1964, assim como as idéias criativas, as afrontas à religião (ou - por que não dizer? - às religiões) e à mediocridade humana, e os dribles dados na idéia de bom gosto vigente desde sempre no cinema nacional. A maneira de pontuar também pode ser conferida no filme de estréia. Cortes suavizados por algum efeito, a imagem se distorcendo para dar lugar à outra, cortinas rápidas eliminando a imagem antiga para que outra possa aparecer. A sucessão das cenas se equivale à freqüente continuação do sangue.

Logo no início, pouco depois de sua primeira aparição, aparece comendo carne bem à frente de sua janela, visível para os que estão na procissão da quinta-feira santa, enquanto sua mulher o observa alisando um objeto fálico. Trata-se de uma bela declaração de princípios. Zé do Caixão, antes de ser um personagem de terror, é um feroz questionador de dogmas, um subversivo, um inventor de formas e maneiras de confrontar o espectador, fazendo-o questionar seus próprios preconceitos e limitações.

Providencial falar em sangue, justamente porque o cinema de Mojica é um jorro de idéias, como se fossem sangue. Uma lubrificação contínua de pulsão que nem podemos classificar. Falam muito em ingenuidade, primitivismo, mas o certo seria falar em enfrentamento, energia, violência canalizada e brutalizada em fotogramas de um preto e branco impressionante.

O jovem Mojica ainda cai em certo esquematismo, como, por exemplo, na confirmação dos maus agouros da bruxa no longo caminho de volta pelo bosque. A seqüência, mesmo sendo de um didatismo simplório, impressiona, pela dilatação do tempo e do suspense, pela perfeita utilização do espaço cênico - sempre perceptível no bom cinema, a não ser que insistam no erro de clamar unicamente por bons roteiros -, e pelo inevitável crescendo que levará ao final. As falas da bruxa ecoam na mente do coveiro revelando insegurança no passar de informações para o público, mas conseguem impressionar mesmo assim, o que prova a habilidade do diretor em nos amarrar em sua teia da condenação inevitável. É a alma do Zé do Caixão que está condenada, que será levada à meia noite, para depois ressurgir com mais força nos filmes seguintes da trilogia.

À Meia-Noite Levarei Sua Alma tem ainda uma particularidade inexistente nos filmes seguintes (ou, se a memória estiver falhando, ao menos no recente Encarnação do Demônio). Antes de cometer seus atos de crueldade e humilhação, podemos ver a transformação de Zé do Caixão. Suas sobrancelhas se unem, seus olhos parecem se estilhaçar. Sua feição é a de um autêntico demônio personalizado. No entanto, esse demônio zela pelas crianças - porque são a continuidade do sangue - e admira as pessoas de personalidade forte, numa demonstração de um código moral bem explícito e coerente. Talvez resida aí a fascinação que o personagem exerce, ainda, bem como a rejeição que ainda provoca em certos grupos. Ao dotá-lo de uma incrível força de espírito, geralmente utilizada para fazer o mal, Mojica criou um dos personagens mais fortes do cinema brasileiro, e esse personagem tem pacto com os infernos, por isso permanece restrito a um séquito de fiéis, enquanto sua faceta pop/MTV, que revela apenas sua superfície, cai no gosto do povo.

Sérgio Alpendre é crítico de cinema e editor da Paisà.



<< Capa