Dossiê José Mojica Marins
A Praga
Direção: José Mojica Marins
Brasil, 1980-2007.
Por Raphael Carneiro, especialmente para a Zingu!
No começo da década de 80, o cineasta José Mojica Marins se encontrava no fundo do poço, sem dinheiro, e completamente desacreditado. Porém, por maiores que fossem as adversidades, por mais que não tivesse meios para isso, jamais desistiu de filmar. Buscava dia e noite produtores na Boca do Lixo, tentando emplacar algum dos muitos projetos que tinha em mente, sempre em vão. Seus alunos, cansados de esperar, fizeram uma pequena coleta entre si, de modo a arrecadar dinheiro para bancar uma produção. Afinal, se havia uma coisa na qual o Mestre era pródigo, era a capacidade de extrair flores do lixo, de tirar muito do pouco.
A quantia levantada era irrisória, até para os padrões mojiquianos de baixo orçamento. Após fazer alguns cálculos, o Mestre chegou à conclusão que com aquela grana apenas seria possível comprar negativos de Super-8, que eram bem mais baratos que o de 35mm, utilizado em produções profissionais. Não demorou muito para que um aluno mais otimista sugerisse que o filme fosse filmado em Super-8 e depois ampliado para 35mm, serviço oferecido por uma pequena empresa. O processo da ampliação em si não era lá algo de muita qualidade, deixando as imagens escuras e com pouca definição. Mojica, no entanto, não estava preocupado com a qualidade final, apenas queria voltar a filmar o quanto antes.
O roteiro de A Praga havia sido escrito para o clássico programa Além, Muito Além do Além, por Rubens Francisco Lucchetti, e já havia sido, inclusive, adaptado para a revista em quadrinhos O Estranho Mundo de Zé do Caixão. Como o argumento criado por Mojica era muito bom, ele resolveu transformar em filme. Reuniu sua equipe em uma pequena salinha alugada, e rodou o filme inteiro. Só que após a conclusão, não tiveram dinheiro para a montagem, e o projeto acabou sendo deixado de lado. Também não ajudou na sorte do filme o fato da pequena empresa que fazia as ampliações fechar de um dia para o outro.
A Praga ficaria esquecido no depósito de Mojica até meados de 2001. O cineasta e produtor Eugênio Puppo, envolvido em uma série de entrevistas com o Mestre, acabou tendo acesso a uma cópia bruta do filme, com 60 minutos de duração, e sem som. Perturbado com o que via, recebeu de Mojica o convite para terminá-lo e lançá-lo. Para isso, ainda seria necessário rodar cenas que não haviam sido rodadas nos anos 80, dublar os diálogos, criar uma trilha sonora e finalizar o som e a imagem. Parecia cansativo, mas também não deixava de ser uma honra finalizar um dos projetos de um dos mais importante cineastas brasileiros, dado como perdido.
O projeto ficaria adormecido até 2006, quando o CCBB aprovou, em um edital, a retrospectiva de 50 anos de carreira de José Mojica Marins. O momento de finalizar A Praga finalmente chegara. Seguiram-se todas as dificuldades de um projeto desse porte. Filmaram mais cenas com o Zé do Caixão apresentando a história e fazendo comentários, além da dublagem - foi necessária uma deficiente auditiva para fazer a leitura labial, já que o roteiro estava praticamente perdido.
Em outubro de 2007, inicia-se o evento José Mojica Marins – Retrospectiva da Obra, com curadoria de Eugênio Puppo, e que trazia, além de um livro catálogo completo sobre a vida e obra de Mojica, a primeira exibição de A Praga, finalizado especialmente para ocasião. A mostra traria a exibição de praticamente todos os trabalhos de Mojica (incluindo curtas) e palestras, mas não se pode negar que a grande estrela desse trabalho hercúleo de Puppo é o filme inédito que muitos julgavam perdido. Aliás, aproveito aqui, para parabenizar Eugênio Puppo pela excelência da Retrospectiva.
A primeira exibição de A Praga se daria na abertura da Mostra, seguida por um coquetel. O Mestre estaria presente, e prometia-se até um pequeno discurso antes da exibição. No dia, o mestre chegou, falou a respeito da produção do filme, contou piadas, louvou Eugênio Puppo, e fez votos de que gostássemos do filme, lembrando humildemente que ainda se tratava de um work in progress, e que muitas coisas seriam acrescentadas, e outras retiradas, para que se atingisse um equilíbrio. Terminou fazendo uma discreta homenagem à genial Wanda Kosmo, que havia falecido pouco tempo antes, sem ver a estréia do filme.
A história é simples e magnífica. Fala sobre um casal, Juvenal e Marina, que durante um passeio, param na frente da casa de uma velha desgrenhada (interpretada de maneira brilhante por Wanda Kosmo). Juvenal começa a tirar fotos da velha, e a zombar quando ela se mostra irritada. Totalmente descontrolada, a velha se revela uma bruxa, e joga uma praga no casal. O que segue é o completo horror, quando a vida dos dois vai se esfacelando, já que no peito de Juvenal se abre uma ferida que se alimenta de carne crua. Assolado por terríveis e perturbadores pesadelos, Juvenal vai lentamente perdendo o controle, até a cena final, que é uma daquelas que fica longamente grudada na retina de quem assistiu, tamanha a beleza e bizarrice do momento.
Wanda Kosmo reina absoluta como a bruxa, com uma atuação histriônica e marcante, que cai como uma luva no filme. O encontro dela com Juvenal, em um peculiar enterro, ainda é um dos momentos mais perturbadores já criados por Mojica. O filme tem um clima onírico e atmosférico, que só denota o quão refinado era Mojica, além de ter sido brilhantemente montado pela equipe de Puppo. Em resumo, você está diante de uma obra-prima, um dos melhores filmes de José Mojica Marins.
Poucos tiveram a oportunidade de apreciar esse pequeno clássico, e após o término, nos foi prometido que o filme iria estrear comercialmente assim que estivesse pronto e arrumasse uma distribuidora interessada em lançar. Porém, com o recente fracasso comercial de Encarnação do Demônio, não precisa ser muito inteligente para deduzir que A Praga está mais uma vez abandonado à sua própria sorte, aguardando que alguma alma caridosa o lance.
Raphael Carneiro é ex-colunista da Ruído, na Zingu!, e fã confesso de José Mojica Marins.
Direção: José Mojica Marins
Brasil, 1980-2007.
Por Raphael Carneiro, especialmente para a Zingu!
No começo da década de 80, o cineasta José Mojica Marins se encontrava no fundo do poço, sem dinheiro, e completamente desacreditado. Porém, por maiores que fossem as adversidades, por mais que não tivesse meios para isso, jamais desistiu de filmar. Buscava dia e noite produtores na Boca do Lixo, tentando emplacar algum dos muitos projetos que tinha em mente, sempre em vão. Seus alunos, cansados de esperar, fizeram uma pequena coleta entre si, de modo a arrecadar dinheiro para bancar uma produção. Afinal, se havia uma coisa na qual o Mestre era pródigo, era a capacidade de extrair flores do lixo, de tirar muito do pouco.
A quantia levantada era irrisória, até para os padrões mojiquianos de baixo orçamento. Após fazer alguns cálculos, o Mestre chegou à conclusão que com aquela grana apenas seria possível comprar negativos de Super-8, que eram bem mais baratos que o de 35mm, utilizado em produções profissionais. Não demorou muito para que um aluno mais otimista sugerisse que o filme fosse filmado em Super-8 e depois ampliado para 35mm, serviço oferecido por uma pequena empresa. O processo da ampliação em si não era lá algo de muita qualidade, deixando as imagens escuras e com pouca definição. Mojica, no entanto, não estava preocupado com a qualidade final, apenas queria voltar a filmar o quanto antes.
O roteiro de A Praga havia sido escrito para o clássico programa Além, Muito Além do Além, por Rubens Francisco Lucchetti, e já havia sido, inclusive, adaptado para a revista em quadrinhos O Estranho Mundo de Zé do Caixão. Como o argumento criado por Mojica era muito bom, ele resolveu transformar em filme. Reuniu sua equipe em uma pequena salinha alugada, e rodou o filme inteiro. Só que após a conclusão, não tiveram dinheiro para a montagem, e o projeto acabou sendo deixado de lado. Também não ajudou na sorte do filme o fato da pequena empresa que fazia as ampliações fechar de um dia para o outro.
A Praga ficaria esquecido no depósito de Mojica até meados de 2001. O cineasta e produtor Eugênio Puppo, envolvido em uma série de entrevistas com o Mestre, acabou tendo acesso a uma cópia bruta do filme, com 60 minutos de duração, e sem som. Perturbado com o que via, recebeu de Mojica o convite para terminá-lo e lançá-lo. Para isso, ainda seria necessário rodar cenas que não haviam sido rodadas nos anos 80, dublar os diálogos, criar uma trilha sonora e finalizar o som e a imagem. Parecia cansativo, mas também não deixava de ser uma honra finalizar um dos projetos de um dos mais importante cineastas brasileiros, dado como perdido.
O projeto ficaria adormecido até 2006, quando o CCBB aprovou, em um edital, a retrospectiva de 50 anos de carreira de José Mojica Marins. O momento de finalizar A Praga finalmente chegara. Seguiram-se todas as dificuldades de um projeto desse porte. Filmaram mais cenas com o Zé do Caixão apresentando a história e fazendo comentários, além da dublagem - foi necessária uma deficiente auditiva para fazer a leitura labial, já que o roteiro estava praticamente perdido.
Em outubro de 2007, inicia-se o evento José Mojica Marins – Retrospectiva da Obra, com curadoria de Eugênio Puppo, e que trazia, além de um livro catálogo completo sobre a vida e obra de Mojica, a primeira exibição de A Praga, finalizado especialmente para ocasião. A mostra traria a exibição de praticamente todos os trabalhos de Mojica (incluindo curtas) e palestras, mas não se pode negar que a grande estrela desse trabalho hercúleo de Puppo é o filme inédito que muitos julgavam perdido. Aliás, aproveito aqui, para parabenizar Eugênio Puppo pela excelência da Retrospectiva.
A primeira exibição de A Praga se daria na abertura da Mostra, seguida por um coquetel. O Mestre estaria presente, e prometia-se até um pequeno discurso antes da exibição. No dia, o mestre chegou, falou a respeito da produção do filme, contou piadas, louvou Eugênio Puppo, e fez votos de que gostássemos do filme, lembrando humildemente que ainda se tratava de um work in progress, e que muitas coisas seriam acrescentadas, e outras retiradas, para que se atingisse um equilíbrio. Terminou fazendo uma discreta homenagem à genial Wanda Kosmo, que havia falecido pouco tempo antes, sem ver a estréia do filme.
A história é simples e magnífica. Fala sobre um casal, Juvenal e Marina, que durante um passeio, param na frente da casa de uma velha desgrenhada (interpretada de maneira brilhante por Wanda Kosmo). Juvenal começa a tirar fotos da velha, e a zombar quando ela se mostra irritada. Totalmente descontrolada, a velha se revela uma bruxa, e joga uma praga no casal. O que segue é o completo horror, quando a vida dos dois vai se esfacelando, já que no peito de Juvenal se abre uma ferida que se alimenta de carne crua. Assolado por terríveis e perturbadores pesadelos, Juvenal vai lentamente perdendo o controle, até a cena final, que é uma daquelas que fica longamente grudada na retina de quem assistiu, tamanha a beleza e bizarrice do momento.
Wanda Kosmo reina absoluta como a bruxa, com uma atuação histriônica e marcante, que cai como uma luva no filme. O encontro dela com Juvenal, em um peculiar enterro, ainda é um dos momentos mais perturbadores já criados por Mojica. O filme tem um clima onírico e atmosférico, que só denota o quão refinado era Mojica, além de ter sido brilhantemente montado pela equipe de Puppo. Em resumo, você está diante de uma obra-prima, um dos melhores filmes de José Mojica Marins.
Poucos tiveram a oportunidade de apreciar esse pequeno clássico, e após o término, nos foi prometido que o filme iria estrear comercialmente assim que estivesse pronto e arrumasse uma distribuidora interessada em lançar. Porém, com o recente fracasso comercial de Encarnação do Demônio, não precisa ser muito inteligente para deduzir que A Praga está mais uma vez abandonado à sua própria sorte, aguardando que alguma alma caridosa o lance.
Raphael Carneiro é ex-colunista da Ruído, na Zingu!, e fã confesso de José Mojica Marins.