Mojica, ator de muitos
Por Marcelo Miranda, especialmente para a Zingu!
Muito da impressão tida por “leigos” se deve igualmente pela força do personagem e pela exploração desmedida que Mojica e colegas diretores fizeram no decorrer dos anos. Se, mesmo após os dois primeiros filmes com o coveiro, Mojica tenha seguido usando o personagem de formas variadas (especialmente como o antagonista de si mesmo em obras-primas como Ritual dos Sádicos, de 1970, e Exorcismo Negro, de 1974), figuras como Maurice Capovilla, Rogério Sganzerla, Jairo Ferreira, Ivan Cardoso e especialmente Francisco Cavalcanti aproveitaram a popularidade da imagem do homem de capa preta, cartolas e unhas enormes – além de todos serem amigos e admiradores da obra de Mojica. Ou seja, essa “exploração” tinha total ar de homenagem e tributo.
No livro Maldito – A Vida e o Cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, de André Barcinski e Ivan Finotti, consta O Profeta da Fome (1969), de Capovilla, como o primeiro filme somente estrelado por Mojica – ou seja, sem ele na direção. Porém, na moderníssima (ainda que duvidosa) Wikipédia, registra-se que, já em 1960, Mojica teria aparecido em Éramos Irmãos, de Renato Ferreira, e, em seguida, O Diabo de Vila Velha (1965), de Armando de Miranda e Ody Fraga. Segundo informações do Portal Heco, o filme de Miranda e Fraga mostra Mojica “no papel de um perverso e corrupto prefeito”. “Este é um filme de produção atribulada, rodado no Paraná e dirigido inicialmente – e depois abandonado – por Ody Fraga. Mojica, por fim, assumiu a direção (...) e compôs a canção-tema”, diz o site. Na minha falta de contato ou maiores detalhes destes dois filmes citados acima, fiquemos mesmo em O Profeta da Fome.
O segundo longa de Maurice Capovilla (antes ele fizera Bebel Garota Propaganda) traz Mojica no papel central de um faquir, chamado Alikhan, que é a maior atração num circo em vias de ser arruinado. Ao se recusar a comer carne humana em seu número, Alikhan provoca a ira do público, que bota fogo no circo todo. Num périplo a uma pequena cidade, o faquir envolve-se numa confusão com o padre local. Já é possível perceber elementos que remetem ao mundo típico de Zé do Caixão: o sangue humano, o conflito com a religiosidade, a incompreensão das pessoas que não entendem a moral muito particular do personagem.
Ainda que Alikhan não seja propriamente uma segunda encarnação do coveiro, fica explícita a vontade de Capovilla em trazer sua imagem ao público – a começar pelo cartaz, em que aparece Mojica trajado como Zé e um letreiro imenso abaixo identificando-o com o nome “oficial” logo acima do nome mais notório. Independente disso, O Profeta da Fome é um filme de forte impacto, talvez o melhor trabalho de Mojica apenas como ator, em que discute-se a necessidade do homem em testemunhar espetáculos torpes, num uso de estética vinculada ao cinema marginal que aposta na radicalidade de linguagem para transmitir significados. Curiosidade: Mojica tem a voz dublada pelo grande Paulo César Peréio.
Admirador confesso de Mojica, Rogério Sganzerla se “apropria” de sua figura em Abismu (1978). O ator-diretor encarna o professor Pearson, e ao seu lado está Satã, o famoso escudeiro (que tem participação afetiva no recente Encarnação do Demônio, como um dos moradores da comunidade para onde se muda Zé do Caixão). Pearson é um personagem de deboche, sempre mostrado falando frases de efeito, vestido como o famoso coveiro e claramente interpretado com total desprendimento por Mojica. Outro grande fã do cineasta, Ivan Cardoso, colocou-o na introdução de O Segredo da Múmia (1978), como o arqueólogo que revela a localização do monstro do título. E o crítico e cineasta Jairo Ferreira, outro nome de peso a exaltar o talento de Mojica, colocou-o como referência explícita numa determinada cena de O Vampiro da Cinemateca (1977).
Cavalcanti contou com a colaboração de Mojica em pelo menos mais quatro produções: O Filho do Sexo Explícito (1985), A Hora do Medo (1986), Horas Fatais – Cabeças Trocadas (1986) e O Homem sem Terra (1997). No antológico Horas Fatais, Mojica interpreta o delegado corrupto que tenta dissuadir o marido de uma mulher estuprada a não entregar o juiz que a violentou. No mesmo ano, outro grande nome da Boca convocou Mojica para as suas câmeras: Ozualdo Candeias, que contou com pequena participação do diretor em As Belas da Billings.
Uma das aparições mais hilárias de Mojica parodiando a si mesmo está em O Gato de Botas Extraterrestre (1990), infelizmente não visto por este que escreve. O diretor aparece rapidamente como um rapaz que, amaldiçoado, ganhou permanentemente a aparência de ninguém menos que o Zé do Caixão em pessoa. É para ter pesadelos, de fato! Ainda nos anos 90, Ed Mort, de Alain Fresnot, mostrou Mojica brincando consigo mesmo, quando ele surge na tela como um dos vários “disfarces” do detetive quadrinhesco vivido por Paulo Betti.
Antes de ressurgir magistralmente como o verdadeiro e único Zé do Caixão em Encarnação do Demônio, Mojica se parodiou outra vez no bastante questionável Um Show de Verão (2004), dirigido por Moacyr Góes e capitaneado pelo casal Angélica e Luciano Huck. Ainda é possível ver Mojica em filmes recentes inéditos ou pouco badalados, casos de Tortura Selvagem – A Grade (2001), do saudoso cineasta-bombeiro Afonso Brazza; e A Marca do Terrir (2005), lindo documentário de Ivan Cardoso sobre os áureos tempos de filmagens em Super-8 – o filme inclui cenas do inacabado Sentença de Deus, que seria o primeiro longa-metragem de Mojica, não fossem os típicos acidentes de percurso que impediram a sua estréia em 1954. Mojica apenas surgiria de fato como diretor em 1958, com o faroeste A Sina do Aventureiro, em que já aparecia também como ator. O resto é história – e muito bem contada.
O mineiro Marcelo Miranda, fã ardoroso de José Mojica Marins, é crítico de cinema das revistas eletrônicas Filmes Polvo, Cinequanon e Paisà.