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Dossiê José Mojica Marins

“Eu sigo os caminhos de Deus, mas minha verdadeira religião é o cinema”
Coletiva de imprensa de Encarnação do Demônio


Milhem Cortaz, José Mojica Marins, Paulo Sacramento,
Caio e Fabiano Gullane

Por Stefanie Gaspar
Fotos: Gabriel Carneiro

No dia 28 de julho, às 10h, jornalistas e críticos de cinema puderam conferir o novo filme do cineasta José Mojica Marins, Encarnação do Demônio, última parte da trilogia do personagem Zé do Caixão, em sua busca pela mulher perfeita que deverá gerar seu filho e herdeiro. O filme, ganhador do prêmio principal do I Festival Paulínia de Cinema e inscrito na 65º edição do Festival de Veneza, foi produzido por Paulo Sacramento, da produtora Olhos de Cão, e por Caio e Fabiano Gullane, da Gullane Filmes, e distribuído pela Fox Film do Brasil. Após a sessão, houve a coletiva do filme, com a presença dos produtores Paulo Sacramento, Caio e Fabiano Gullane, o ator Milhem Cortaz, o representante da FOX Tito Liberato e o diretor José Mojica Marins.

José Mojica Marins começou a gostar de cinema ao assistir filmes e seriados cinematográficos – como Flash Gordon, seu favorito ­­- nas matinês do Santo Estevão, cinema administrado por seu pai. Ao ganhar, aos 12 anos, uma câmera como presente de aniversário, Mojica começou a fazer pequenas experiências caseiras com os amigos, que ele batizava como se fossem produções finalizadas – caso do curta O Juízo Final, de 1949, e do filme infantil Os Três Leões. Após criar uma escola de cinema improvisada para levantar fundos, Mojica fez seu primeiro longa-metragem, o faroeste A Sina do Aventureiro, de 1958 (Sentença de Deus, de 1956, e o projeto No Auge do Desespero, nunca foram finalizados). Com o fracasso de Meu Destino em Tuas Mãos, de 1963, Mojica, que o havia feito pensando unicamente no sucesso, decidiu que nunca mais faria um filme para agradar aos outros. E, numa noite, na época em que já filmava em seu próximo longa, o policial Geração Maldita, teve um pesadelo aterrorizante: estava deitado no chão, ao relento, quando viu uma figura de capuz. Percebeu então que o vulto tinha o seu rosto, e que o terreno no qual estava deitado era, na verdade, um cemitério. A figura começou a arrastar Mojica até uma lápide, na qual lia: “José Mojica Marins – 1936...” Para não ler a data de sua morte, Mojica fechou os olhos e, quando foi jogado na cova aberta, acordou em desespero. Após o choque, entretanto, o que ficou para ele foi a lembrança da impressionante dramaticidade da cena e pensou que, se fosse possível reproduzir tal intensidade, seria capaz de fazer um filme genial – de fato, a cena seria recriada pelo cineasta em Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver. Assim surgiu o personagem Josefel Zanatas, o Zé do Caixão, um coveiro sádico que almeja encontrar a mulher perfeita capaz de perpertuar sua linhagem por meio de um filho. O primeiro filme da trilogia de Zé do Caixão, À Meia-Noite Levarei sua Alma, de 1964, é considerado o primeiro filme de terror brasileiro, seguido pela continuação Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, de 1967. Entretanto, a última parte da trilogia, Encarnação do Demônio, só foi finalizada agora em 2008, depois de Mojica ter desistido três vezes do filme.

Para Mojica, “é difícil conseguir expressar quase meio século de trabalho”. Quando o roteiro foi escrito pela primeira vez, Mojica estava fazendo sessões especiais de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver para amigos, como Glauber Rocha, Luis Sérgio Person, Rogério Sganzerla e Jairo Ferreira. Nessas sessões, o produtor do filme, Augusto de Cervantes – que já havia produzido Meu Destino em Tuas Mãos e A Sina de Aventureiro –, disse a Mojica para fazer a continuação imediatamente. “Ele disse que, se tudo desse certo, no próximo ano [o do lançamento oficial, 1967] Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver seria lançado e começaria a produção de Encarnação do Demônio. Por isso o roteiro foi feito tão antes”. Em 1967, a censura obrigou Mojica a modificar o fim do Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver – na cena em questão, Zé do Caixão, morrendo, recusa-se a se arrepender de seus pecados, gritando ao padre “eu não creio”. Foi obrigado a dublar a cena novamente, substituindo a fala por: “padre, eu acredito! A cruz! A cruz!”. “Eu fiquei em uma posição complicada, porque depois a censura também queria que eu colocasse uma música sacra, além de umas palavras da bíblia, o que não tinha nada a ver”. Com isso, a produção foi lançada, mas Mojica lamentou os cortes, já que o público considerou que o personagem havia ficado incoerente, renegando toda a sua filosofia. “Só os amigos sabiam o porquê disso. Mesmo assim, o público foi fantástico, e eu queria fazer o Encarnação de Demônio logo. Mas, quando os censores perceberam que não ia ter jeito de converter o Zé, a notícia que vazou foi que se eu tentasse fazer o novo filme, já pelo título não passaria. E se eu insistisse e mudasse o título, queimariam os negativos”. Com isso, Mojica resolveu se aproximar dos militares: “a gente ia naqueles bailes dos generais, e ficava procurando quem era filho de militar e quem era filha, daí eu dizia que tal garota servia perfeitamente para o cinema. Assim, eu achava que daria para melhorar a situação. Houve até batida no estúdio que não deu em nada porque tinha militares nos ensaios”. Mesmo assim, ainda era arriscado fazer o filme, e Mojica decidiu filmar O Estranho Mundo de Zé do Caixão (1968), composto por três episódios: “Fábrica de Bonecas”, “Taras” e “Ideologia” – este último considerado um filme de violência incomparável, com cenas de canibalismo, blasfêmias e torturas horrendas. “’Não tente mais esse seu terror’, foi a resposta que recebi da censura. Mas insisti. Fiz Ritual dos Sádicos (1969), e depois surgiu um americano, que tinha assistido Perversão, Delírios de um Anormal, À Meia Noite Levarei Sua Alma e Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, e ele leu o roteiro de Encarnação e decidiu dar o dinheiro”. Entretanto, mesmo com o início da produção e um novo roteiro (até a versão atual, de Dennison Ramalho, foram seis versões), não deu certo. “O homem teve câncer na garganta, e como ele não tinha esposa, sócio ou filhos, percebi que cairiam por terra meus planos de filmar o Encarnação”. Com a desilusão, Mojica começou a trabalhar em outros projetos, chegando inclusive a ter que dirigir filmes de sexo explícito para sobreviver. “Quando a coisa ficou bárbara, o Augusto de Cervantes veio falar comigo de novo e disse que agora ele ia pegar o dinheiro e fazer a fita. Fiquei feliz da vida e adaptamos o roteiro para o final dos anos 1980. Só que daí ele começou a ter problemas de coração, e também não tinha esposa, nem filhos, nem sócio... e eu já pensei: estou perdido”. No final de 1998, quando Mojica já não tinha mais nenhuma esperança de filmar Encarnação do Demônio, foi procurado por Ivan Novais, que produziu Cidade Oculta, de Chico Botelho. Ao ver que ele tinha dinheiro suficiente, Mojica se animou com a perspectiva, e começou a trabalhar no filme. “Quando soube que ele também não era casado nem tinha sócios, já me deu um medo. Mas fomos em frente”. Ivan Novais disse a Mojica que queria promover um coquetel para anunciar o filme e um almoço à tarde. Na véspera, ligou para confirmar com Mojica, e garantiu que toda a equipe receberia um adiantamento. “Resolvi estrear um terno de linho que eu tinha comprado. Aí, quando eu estava pronto para sair para o almoço, toca o telefone. Era a Ítala Nandi. Eu disse para ela: estou indo já. Ela perguntou: mas você não está sabendo de nada? E eu disse que não, que só sabia que logo logo começava o almoço. Ela me disse então para eu não me entusiasmar, porque não seria um almoço, e sim um velório. O Ivan morreu de emoção”. Em meio a risos da platéia, Mojica brincou com a história tragicômica de Encarnação do Demônio: “pois é, e daí tivemos que devolver todo o dinheiro da captação de recursos. Essa grana demora para chegar, mas vai embora rapidinho”.

Depois desses três acontecimentos, Mojica desistiu do filme, e começou a fazer trabalhos esparsos para sobreviver. Quando Dennison Ramalho e Paulo Sacramento o procuraram para discutir um projeto, a intenção inicial não era retomar Encarnação do Demônio. “Eu mesmo resolvi falar do filme, porque ele é o meu sonho, e eles gostaram da idéia”. Sobre o roteiro, totalmente adaptado para os dias de hoje, Paulo Sacramento afirma que “é um filme diferente do que o Mojica teria feito 40 anos atrás. É um feliz encontro de gerações”. Para Fabiano Gullane, é admirável que, mesma com todas as dificuldades, Mojica tenha conseguido terminar Encarnação do Demônio e muitos outros projetos. “Não houve crise que tenha impedido o Mojica de fazer seus filmes”. “Encarnação do Demônio é um daqueles casos em que a embalagem, muito boa, tem um conteúdo melhor ainda”, termina Mojica, orgulhoso do resultado do final de sua trilogia. Mojica teve certeza da viabilidade do projeto quando foi informado de que haveria uma reunião com Geraldo Alckmin, governador de São Paulo na época. “Quando soube que a verba tinha saído, eu renasci. Voltei aos meus 23, 24 anos. Pela primeira vez tive carta branca mesmo, para escolher os atores que eu queria. O tamanho da equipe me assustou, porque eram umas 70 pessoas, e eu já achava que 12 era muito”.

Encarnação do Demônio é o último filme de Jece Valadão (que morreu durante as filmagens), que interpreta o truculento coronel Pontes, cuja obsessão é matar Zé do Caixão, que cegou um de seus olhos anos atrás. “Jece já falou em uma coletiva: ‘se me acontecer alguma coisa não é maldição do Zé, porque eu já estou doente’. Ele estava com uma diabete muito forte, e deu tudo que tinha no papel. Ele gostou do personagem porque queria provar que uma pessoa não pode adorar uma imagem, e que por causa da devoção que seu personagem tinha à imagem de Santo Expedito, ele acaba morrendo na fita. Jece queria deixar uma mensagem aos evangélicos”. Encarnação do Demônio conta com a participação de outros atores importantes do cinema brasileiro, como Helena Ignez (no papel de uma das tias cegas, Lucrecia), Cristina Aché, Débora Muniz, José Celso Martinez, Luís Melo e Milhem Cortaz. Para Milhem, “este é o filme mais importante da minha trajetória, porque é o que mais se aproxima do que eu gosto mesmo de fazer, teatro. Ele está em uma linha muito tênue entre o caricato e o realista”. Para ele, é importante salientar a questão do riso, já que Mojica e o Zé do Caixão não se levam a sério e sabem zombar de si mesmos e reinventar as próprias fórmulas. “Quando eu fazia teatro com o Antunes Filho, ele me dizia: ‘antes de entrar em cena, olha no espelho. Se não se achar ridículo, nem entra’.”

Questionado sobre o suposto “caráter trash” de seus filmes, Mojica deixou claro que esse não é seu estilo de filmar. “Olha, se você falar isso nos Estados Unidos, corre o risco até de apanhar. Eram fitas de baixo orçamento – porque eu não tinha dinheiro, só a colaboração da equipe –, e não filmes trash”. Já em seu novo filme, Mojica, com mais recursos, considera que atingiu o ápice: “no Encarnação do Demônio eu tive uma ótimo fotografia, uma montagem fantástica, uma direção de arte fora de série e uma trilha ótima, do Abujamra, que combina com o clima do filme. Considero o filme a bíblia do terror da América Latina”.

Segundo Mojica, como o personagem envelheceu, era importante que o filme fosse mais violento. “Coloquei mais violência, mais mulher bonita. Mas o Zé continua com a mesma ideologia e a mesma filosofia, a busca interminável pela mulher superior. O filme também tem ironia, embora não tanto quanto nos outros filmes da trilogia”. Para Mojica, o filme ficou com uma intensidade perfeita. As cenas de tortura explícita são muito fortes, como a de um homem suspenso por ganchos presos nas costas, uma mulher tendo o rosto mergulhado em um balde de baratas e a retirada, a faca, do couro cabeludo de uma mulher, além de uma cena de canibalismo. Mojica brincou que Glauber Rocha um dia lhe perguntou por que ele, que fazia cenas com cobras e aranhas, nunca havia feito uma com baratas. “E sobrou para Encarnação do Demônio realizar isso”.

Para filmar À Meia Noite Levarei sua Alma, Mojica, que não tinha dinheiro algum, precisou vender tudo que tinha para conseguir financiar o projeto. Roupas, mobília, o carro dos pais, tudo foi para o cinema. Considerando que o usual é que os filmes sejam rodados em uma proporção de, no mínimo, seis para um – seis minutos de negativo para cada minuto aproveitado de filme –, À Meia Noite Levarei sua Alma foi um desafio em questão de economia e criatividade, já que, sendo um longa de 80 minutos, utilizou apenas 130 minutos de negativo. Já em Encarnação do Demônio, o orçamento de produção foi de R$1.800.000, por meio do prêmio de baixo orçamento do Ministério da Cultura e do apoio do BNDES, da Sabesp, do Governo do Estado de São Paulo e da Fox do Brasil. Segundo Tito Liberato, a Fox tem interesse em uma continuação do Encarnação do Demônio, assim como de outros projetos de Mojica: “vida longa ao mestre José Mojica Marins, e que venham muitos filmes por aí”.

Por fim, Mojica agradeceu a presença dos jornalistas e adiantou seu novo projeto. “Infelizmente, eu sou um dos poucos remanescentes da famosa Boca do Lixo. Morre um, morre outro, e isso está me deixando de olhos abertos para ver se faço logo O Devorador de Olhos antes que me levem embora. Os olhos são o espelho da alma. E, nesse filme, um homem tem uma doença em que ele precisa arrancar olhos de mulheres”.

Mesmo com uma filmografia extensa e tendo influenciado cineastas como Carlos Reichenbach, Rogério Sganzerla e Glauber Rocha, Mojica provavelmente será esquecido após a repercussão de Encarnação do Demônio – já que nem sua carreira impressionante o poupou de trabalhos como participar das Noites do Terror do Playcenter, fazer propagandas com o personagem Zé do Caixão e mesmo sua incursão pelo cinema de sexo explícito. Resta saber se Encarnação do Demônio só será visto devido ao mito do personagem Zé do Caixão ou por uma real curiosidade e interesse pela carreira de José Mojica Marins.



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