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Dossiê José Mojica Marins
Coluna CINEMA Extremo
ONDE O CINEMA PODE SER VIOLENTO...

Por Marcelo Carrard

Encarnação do Demônio
Direção: José Mojica Marins
Brasil, 2008.

Foram quatro décadas de espera pelo fechamento de uma das mais lendárias trilogias da história do horror cinematográfico. Finalmente chegou o grande momento em que a Encarnação do Demônio fecha a saga do mítico personagem: Zé do Caixão, iniciada com os clássicos absolutos À Meia-Noite Levarei sua Alma e Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver.

Dos muitos momentos positivos do filme, um dos destaques é a recriação e citação dos dois primeiros filmes, muito bem utilizadas dentro do roteiro excelente, escrito pelo próprio Mojica e pelo talentoso Dennison Ramalho, que injetou toda sua vasta cultura de cinema fantástico, aparecendo em muitas referências no decorrer do filme. A direção de fotografia criou um universo cromático raro e de grande força diegética. O universo de cores, luzes e sombras criado por José Roberto Eliezer, já se tornou antológica por sua contribuição artística. O impacto visual de Encarnação do Demônio já se apresenta na sua bela abertura, com uma animação representando a obsessão pela continuidade do sangue através da geração de um filho pela mulher superior. Para minha surpresa, a crítica brasileira foi praticamente unânime em elogios ao filme – assim como os fiéis fãs do mestre Mojica e do bom cinema de horror. A classificação da censura, porém, foi muito severa e afugentou o público jovem dos cinemas.

A saga de Zé do Caixão se concentra nessa busca. Após sair da cadeia, o coveiro sádico se depara com o universo urbano de São Paulo nos dias de hoje, mudando radicalmente a ambientação rural dos dois primeiros filmes. Em um mundo mais hostil e árido, Zé do Caixão se integra ao caos da grande metrópole e parte em sua busca, auxiliado por um grupo de bizarros seguidores. As seqüências de tortura e mutilação garantem grandes momentos para o espectador aficcionado por cinema extremo.

A composição da seqüência onde uma mulher nua fala que comeria da própria carne para gerar o filho perfeito remete a O Pasteleiro, de David Cardoso, episódio de Aqui, Tarados!, em que uma mulher tem as nádegas fatiadas. No longa de Mojica, a questão do canibalismo vai além quando a personagem come realmente da própria carne e em um enquadramento perturbador vemos seu belo rosto com os lábios ensangüentados. Muitos momentos brilhantes ainda se revelam diante de nós, como os corpos suspensos por ganchos, que me remeteram aos grandes e elaborados momentos de Takashi Miike em filmes como Ichi The Killer e toda tradição extrema das representações da tortura no cinema asiático. A cena do rato é absurda e genial, sem esquecer do escalpelamento da personagem de Cristina Aché. O momento mais marcante é a composição da seqüência em que a atriz brasileira Florinda Bolkan sai das entranhas de um porco. Surreal e impressionante, remete a dois clássicos absolutos: Viva La Muerte e Flavia the Heretic, em que, respectivamente, duas atrizes saem das carcaças de um boi e de um cavalo.

A macumba e seus desdobramentos sempre estiveram presentes na obra de Mojica. Em Encarnação do Demônio ela é o ponto de partida para a ida ao purgatório, com direito a uma citação explícita de Coração Satânico, de Alan Parker. Nela, Zé do Caixão é recebido por um ser demoníaco interpretado por Zé Celso Martinez Corrêa, após atravessar um lago de sangue. Quem disse que não existe poesia no horror? O cinema artesanal e criativo do Mojica está presente. Mesmo contando com uma produção impecável, um time de grandes profissionais, o espírito mambembe e marginal do cineasta foi preservado. Do elenco de grandes nomes se destaca o saudoso mestre Jece Valadão, que rouba todas as cenas em que aparece, principalmente quando cobre a ex-mulher de porrada. Sensacional!

José Mojica Marins tem nesse filme sua melhor atuação e seus bichinhos estão presentes, além das aranhas aparecem as baratas em uma cena aterradora... Comparando com o fechamento de outra trilogia clássica do cinema de horror, no caso a de Dario Argento, iniciada com Suspiria e encerrada ano passado com La Terza Madre, posso afirmar categoricamente que a saga de Mojica foi muito melhor concluída, com resultados mais satisfatórios.



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