Direção: José Mojica Marins
Brasil, 1966.
Por Andréa Ormond, especialmente para a Zingu!
Uma boa análise sobre o cinema de José Mojica Marins pode começar pela constatação fácil: em uma cinematografia sempre dependente de informações externas como a brasileira, Mojica foi dos poucos realizadores originais.
Diferente de seus contemporâneos, além do alto nível de criatividade, o ator/diretor transpôs outra idiossincrasia: a de rechear os filmes com a crônica local, tornando-os escravos da complacência etnocêntrica para melhor apreço. Em Mojica, o meio é indiferente: a vila, os hábitos e a persona de Josefel Zanatas poderiam estar em diversos outros lugares do mundo, sem prejuízos para a história.
Essa originalidade e universalidade talvez se expliquem em um contexto maior: o de alguns paulistanos, principalmente dos mais atávicos como Mojica, que, em contraposição à maioria dos nacionais, guardam sua brasilidade como acidental ou circunstancial. Não à toa, foi em São Paulo que o cinema brasileiro encontrou a base de uma modesta indústria – e, onde, no final das contas, se produziu a maior parte dos filmes que ainda hoje merecem nossa atenção. Original, universal, Mojica significa parte desse contexto amplo e cosmopolita que foi a criação paulista dos anos 1960 e 70.
Quando fez Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver – seu melhor filme, melhor até do que Ritual dos Sádicos, que lhe custou parte da vida –, Mojica já era um nome famoso para os espectadores, muito por conta de aparições na imprensa sensacionalista e principalmente pelo sucesso estrondoso de À Meia-Noite Levarei Sua Alma.
Assim os produtores Augusto Pereira e Antônio Fracari não pouparam esforços para levantar fundos que viabilizassem a nova produção. Mojica nem precisava de rios de dinheiro, mas o mínimo oferecido representava o suficiente para que o diretor trabalhasse com maior liberdade, e colocasse em prática idéias impossíveis no primeiro filme da trilogia. A mais ousada foi reproduzir um inferno gelado, onde Zé do Caixão agoniza durante um pesadelo que o próprio Mojica tivera anos antes.
Outra idéia – misógina, porém fascinante – envolve a tortura das “pretendentes” de Zé do Caixão – alunas do seu curso de arte dramática, que foram submetidas a aranhas e cobras passeando por babydolls, seios e coxas em frêmito. Uma delas, a ex-miss Tânia Mendonça, quase morreu de verdade enforcada pela jibóia, enquanto rogava a praga que atormenta Zé pelo resto do filme.
A busca pela sofisticação de Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver em relação ao filme anterior incluiu até uma revisão dos diálogos, a cargo da escritora Aldenoura de Sá Porto, e a adaptação de uma sinagoga abandonada, onde 95% das cenas foram rodadas, inclusive o pântano apavorante onde Zé persegue e é perseguido. Conta a lenda que Carlos Reichenbach, Jairo Ferreira e Rogério Sganzela ficaram embasbacados ao visitarem o set e descobrirem que aquele pântano nada mais era do que uma poça d’água no quintal da sinagoga, coberta de folhas e galhos de árvores achados nas ruas do Brás.
Fosse apenas pelos desvarios técnicos, o filme não teria sobrevivido tão bem. À liberdade da mise-en-scène junta-se a força do protagonista, seu discurso gauche sobre o atraso e a crendice dos moradores do vilarejo, e sua obsessão eugenista por gerar “o filho perfeito”.
Zé do Caixão, mais uma vez, nada tem de sobrenatural: provoca ódio na população porque guarda a arrogância de se julgar intelectualmente livre, e todas as atenuantes moralistas que reduzem essa certeza – inclusive o pesadelo do inferno – apenas reiteram ao espectador que Zé mete medo por ser um revolucionário.
Levando-o ao divã, concluímos que ele não crê, e justifica sua progressiva psicopatia com a certeza de que tudo pode se não existe Deus – sem Deus, extingue-se a culpa. Os velhinhos da censura, claro, só liberaram o filme com o adendo de uma manipulação moralista, católica; desfeita agora, quarenta anos depois, com a refilmagem da cena final em Encarnação do Demônio.
Mojica pode ter esperado bastante para ver Josefel Zanatas livre, mas no meio tempo fez Ritual dos Sádicos, Perversão e uma meia-dúzia de obras-primas tão ou mais subversivas que seu personagem-símbolo. Vigiado pelo governo militar e pela mediocridade nacional, acabou instalando-se em um limbo pitoresco, chegando ao futuro como todos os verdadeiros heróis da cultura pop: eterno, mas parodiando a si mesmo para sobreviver.
Andréa Ormond é pesquisadora e ex-colaboradora da Zingu! Mantém o blog Estranho Encontro.