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Dossiê José Mojica Marins

Mojica Marins e a estética do caos

Por André Setaro, especialmente para a Zingu!

Mais de quarenta anos depois de iniciada a sua trilogia é que o cineasta José Mojica Marins pode, agora, completá-la com Encarnação do demônio. O personagem Zé do Caixão virou lenda com repercussão internacional, sendo denominado em inglês de "Coffin Joe". Os dois primeiros filmes, À meia-noite levarei a sua alma (1964) e, logo em seguida, Esta noite encarnarei no teu cadáver (1967), revelaram em Mojica um realizador bizarro, quase primitivo, "sui generis". Contando com poucos recursos de produção, mas um grande sentido de narração, José Mojica Marins construiu, nestes filmes, um autêntico festival de deformidades. Se a técnica não lhe serviu de apoio na construção, a falta desta lhe deu, por assim dizer, uma maneira de construir uma linguagem própria e de grande impacto. O aspecto "kitsch", que porventura possa ser encontrado, está de acordo com a personalidade do artista e de seu aterrador personagem. Se, a princípio, os filmes foram desconsiderados quando dos seus lançamentos, logo diretores e críticos importantes do cinema brasileiro viram em Mojica o despertar de uma genialidade, a exemplo de Glauber Rocha, Salvyano Cavalcanti de Paiva, Luis Sérgio Person, Carlos Reichenbach, entre outros.

Mojica é original na sua concepção e na sua estapafúrdia maneira de construir seu "grand guignol", e, por isso mesmo, um diretor atípico da cinematografia nacional. Encarnação do demônio, último "opus" da trilogia, realizado décadas e décadas depois dos primeiros, conta com muito mais recursos postos à disposição do cineasta. Se os filmes iniciais eram em branco e preto, este tem fotografia planejada com engenho e arte a cargo de José Roberto Eliezer, que soube usar as cores em função da parafernália terrorífica da fábula mojiquiana.

A bem da verdade, embora se fale que Encarnação do demônio é o fecho de uma trilogia, José Mojica Marins já realizou, nos anos 70, alguns filmes toscos e mal acabados nos quais aparece o personagem Zé do Caixão - e um mais bem elaborado, ainda na segunda metade da década de 60, O estranho mundo de Zé do Caixão (1968), filme em episódios. Mojica passou por dificuldades nos anos 70 e 80, obrigado a realizar filmes de “baixo calão” para sobreviver ou, então, realizando obras sob pseudônimo. Quando conseguia algum recurso, colocava o personagem de Zé do Caixão, como em Exorcismo negro (1974), que aproveita o sucesso de O exorcista. Eis alguns títulos, à guisa de ilustração, de filmes que Mojica realizou para a sobrevivência: Dr. Frank na clínica das taras (1987), Demônios e maravilhas (1976-1987), A mulher que põe a pomba no ar (1977), Inferno carnal (1976), A 5ª dimensão do sexo (1984), Delírios de um anormal (1978), entre outros.

Em Encarnação do demônio, Zé do Caixão sai da prisão depois de 40 anos por trás das grades. De novo em liberdade, não perdeu, no entanto, a sua idéia/obsessão fixa: encontrar a mulher que possa gerar seu filho, a mulher perfeita para um descendente genial e também perfeito. Nesta busca, neste itinerário, há uma espécie de calvário às avessas. É a cidade de São Paulo o cenário para a sua grande alucinação e onde habitam seus personagens aterradores e disformes. No filme, há muito sangue, muita violência, muitas criaturas bizarras, aranhas e escorpiões em corpos humanos, enfim, o cardápio de sempre dos filmes com Zé do Caixão só que em tecnologia mais aperfeiçoada.

A estética de Mojica já foi chamada de estética do "trash". Caso raro o de um artista como ele que consegue se expressar sem recursos e, para isso, põe em prática um autêntico cinema de invenção. A "descida ao inferno" de Esta noite encarnarei no teu cadáver, uma seqüência em cores sendo o filme em preto e branco, é de uma ousadia pictórica que mistura surrealidade com expressionismo.

Encarnação do demônio, como já se disse, é uma produção que foge à regra mojiquiana, pois contou com produtores atentos, equipe técnica de alto padrão e possibilidades de divulgação, pois esta etapa leva uma boa soma para que se torne um produto viável e exequível no mercado. No elenco, além do próprio autor, Jece Valadão (que veio a falecer pouco antes de concluídas as filmagens), Milhem Cortaz, Débora Muniz, José Celso Martinez Corrêa (que está esplêndido no seu personagem), Rui Resende, entre outros.

André Setaro é crítico e professor de cinema da Universidade Federal da Bahia. Mantém o Setaro’s blog.



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