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Dossiê José Mojica Marins

Exorcismo negro
Direção: José Mojica Marins
Brasil, 1974.

Por Filipe Chamy

No início de Exorcismo negro, somos apresentados a um calmo e bem sucedido José Mojica Marins, reconhecido como um diretor criativo e um artista de respeito. Infelizmente, isso é apenas um artifício metalingüístico, pois Mojica nunca logrou tanta receptividade em sua carreira, apesar dos méritos e dos elogios, como os vindos da França — segundo consta, até os cahiers gostavam do cinema praticado pelo criador do Zé do Caixão.

Exorcismo Negro é um dos casos em que Mojica assume a identidade do autor por trás da obra, e comenta, como em, por exemplo, Delírios de um anormal, sobre seu personagem e suas características e alcance. Chega a lamentar em um certo momento a subestimação que sofre ante sua cria - e mais lamentável é que provavelmente os destinatários da crítica não conseguiram entender a ironia.

Como quer aparentar uma classe que evidentemente não possui, Mojica, inteligente e humildemente, cede mais uma vez seu corpo a outra voz. De uma estranha maneira, ele faz o que explica no próprio filme, dá-se ao personagem. Porque é sua aparência, afinal.

É certo que o filme aproveita a popularidade de O exorcista para fazer uma espécie de paralelo. Em dado instante há uma referência explícita, com uma maquiagem que não nega sua origem. Esse caráter de oportunismo não tira o aspecto original do filme, nem enfraquece sua narrativa, até porque exorcismos são coisas bem comuns em certas esferas do território brasileiro.

O diretor não evita o fascínio pelo gore que marca sua produção mais famosa, e também descarta moralismos na história ao mostrar-se um homem com dúvidas, dividido entre o prazer do horror e o medo do incontrolável. Os personagens de Exorcismo negro têm segredos e vidas inconfessas, partes mesmo do imensurável horror de existências amaldiçoadas. No momento mais genial da obra, o cineasta descobre-se impotente quando vê sua criação seguir sua nefasta jornada sem seu amparo ou qualquer intervenção.

Não faltará aqui a tradicional representação do inferno, abundante de cores e terrores, nem as situações que parecem surgir espontaneamente de uma dimensão desconhecida (pois não são decorrentes de condicionantes lógicos, e simplesmente despontam por força dramática), e esses elementos fazem a força e a identidade do cinema de José Mojica Marins.

Não são as unhas, as cartolas ou a barba que configuram a presença de Zé do Caixão. Pelo menos não se entendidos isoladamente. Como Mojica fala (e dá provas), sua vida é dissociada da do coveiro; apesar de o exterior ser igual, a perversidade está dentro. E é isso que o personagem-autor enxerga, pasmado: que as rédeas da imaginação não dão conta de segurar a verdadeira crueldade, nem mesmo se ela tiver saído de nossas próprias mentes.

Exorcismo negro
não pode ser assistido passivamente, pois se corre o risco de a alegoria passar por realidade e o material se tornar didático. Porém, não há problema em se apreciar a competência de Mojica como organizador de criativos e bem compostos planos, tão eficazes quanto pobres de orçamento. Não se exige para a apreciação deste trabalho a total capacidade de perceber a sutil transição entre as metades do filme, tampouco o talento de usar as pragas rebuscadas de Zé do Caixão. A única coisa que se pede é que a obra seja analisada como suporte bastante em si, crítico à religião, ao cinema de gênero e aos costumes de uma sociedade corrompida, ao mesmo tempo em que é uma apologia a tudo isso e, antes de mais nada, uma bela fita.



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