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Dossiê José Mojica Marins

Fragmentos Literários
Por Stefanie Gaspar

Maldito, a vida e o cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão
de André Barcinski e Ivan Finotti

“Tudo se perdoa nos trópicos, menos a inteligência e a criatividade”

“José Mojica Marins é o maior artista multimídia da história do Brasil”. Com essa frase e a introdução Passaporte para o Oculto, do cineasta Rogério Sganzerla, os jornalistas André Barcinski e Ivan Finotti começam o livro Maldito, a vida e o cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, extensa biografia de José Mojica Marins. A partir de cerca de 400 entrevistas realizadas com mais de 110 pessoas, os autores desenvolveram um trabalho exaustivo e interessante sobre a vida de Mojica que, embora não esgote a análise sobre a personalidade polêmica e instigante do cineasta, dá conta de explicar e resumir 40 anos de cinema.

Com a introdução de Szangerla, que descreve o cinema de Mojica como um pólo de resistência ante ao padrão hollywoodiano e colonial – “Zé reflete bem as oscilações do homem subdesenvolvido, um ser recalcado por natureza e condição, Calígula tropical, culpado e cheio de fome e culpa, um sádico pré-histórico e inatural” –, Barcinski e Finotti iniciam a história de Mojica, caracterizado como um homem que sacrificou tudo por sua obsessão em fazer cinema. Nascido em 13 de março de 1936, Mojica foi, aos 2 anos de idade, morar nos fundos do Cine Santo Estevão, na Vila Anastácio. Nos finais de semana, assistia às matinês do cinema, que exibia seriados como Flash Gordon, seu favorito. Aos 12 anos, ganhou uma câmera de 8 mm de aniversário, e começou a fazer filmes caseiros – como os curtas A Mágica do Mágico e Sonho de Vagabundo –, passando cerca de três anos fazendo experimentos com a câmera. Seu primeiro filme foi o curta Juízo Final, de 1949, que completou quando ainda tinha 13 anos – período que coincidiu com sua desistência escolar, na 5º série. Barcinski e Finotti, ao longo do livro, vão oferecendo inúmeras situações que complementam a personalidade de Mojica que, a partir desse início totalmente autodidata, começou a fazer cinema com uma naturalidade surpreendente.

Segundo Barcinski e Finotti, Mojica, filho único, sempre foi mimado e imbuído de um espírito natural de auto importância, embora fosse essa mesma empáfia a responsável pelo seu talento em tornar-se irresistível para as mulheres que freqüentavam seu estúdio – característica herdada de seu pai, Antonio, um notório conquistador em Vila Anastácio. No dia 1º de junho de 1953, Mojica juntou amigos e conhecidos e propôs a criação de um estúdio, a “Companhia Cinematográfica Atlas”, quando tinha 17 anos. Foi nessa época que Mojica e seus colegas começaram a despertar o interesse da mídia, e é nesse momento que os autores mostram como ele criou um personagem para si próprio, muito além de Zé do Caixão. Na verdade, a personalidade criativa de Mojica, juntamente com seu senso de superioridade, resultaram em uma certa megalomania: Mojica fantasiava coisas a respeito de si mesmo e, de certa forma, acreditava que elas eram verdadeiras. Além disso, essas pitadas de fantasia que Mojica colocava em sua própria vida eram também resultado de seu talento para fazer publicidade de si próprio – sua capacidade de fazer marketing a respeito de si mesmo e de seus trabalhos só não ultrapassava sua incrível capacidade de se envolver em esquemas suspeitos. “O resultado foi que, nos anos 60, quando ficou famoso e os jornais começaram a publicar sua história, ele havia criado um passado totalmente ficcional, que incluía sete casamentos, 24 filhos e filmes rodados ainda no início dos anos 40”.

Barcinski e Finotti deixam claro, ao longo do livro, que Mojica aprendeu sozinho grande parte das técnicas cinematográficas que utilizava, de acordo com as necessidades que encontrava e as dificuldades financeiras. Entretanto, não consideram Mojica um gênio que inventou técnicas inéditas e revolucionou o cinema de terror – mesmo porque a maioria dos filmes de Mojica seguiam uma estrutura simples, com começo meio e fim, já que sua formação cinematográfica contou, principalmente, com clássicos de faroeste e suspense, além da enorme influência que teve das histórias em quadrinhos que lia quando criança, como Mandrake, Príncipe Valente e Flash Gordon. Barcinski e Finotti ressaltam que Mojica possuía inúmeras referências cinematográficas, embora as usasse de maneira inconsciente: todos os filmes que assistia no Cine Santo Estevão transformaram-se em um amálgama de cenas e referências, que se tornaram parte de sua mente e o ensinaram muitos princípios básicos de uma cinematografia eficiente, como os filmes com Bela Lugosi e Boris Karloff, que Mojica adorava. “A cultura cinematográfica de Mojica não é tão limitada quanto se supõe. Na realidade ele assistiu a milhares de filmes, porém nunca se preocupou em adquirir conhecimento teórico sobre eles”. Um dos exemplos da maneira anárquica e improvisada com que Mojica fazia seus filmes, sem se preocupar com preceitos básicos existentes em todo estúdio de cinema, é a filmagem de seu primeiro longa, A Sina do Aventureiro. O que ele chamava de roteiro eram apenas alguns rabiscos desordenados e praticamente ilegíveis, e tudo era feito na hora, sem ensaios ou idéias colocadas sistematicamente no papel. “Mojica não sabia o que era um plano americano ou um contré-plongée; plano-seqüência para ele era grego. Seus roteiros não tinham diálogos, apenas instruções sobre cada cena. Todo o resto – diálogos, posicionamento de câmera, movimentação dos atores – era improvisado na hora”.

Em todo o livro é possível perceber a fascinação que os autores têm em relação ao cinema de Mojica. Só para analisar os aspectos do primeiro filme de Mojica com o personagem Zé do Caixão, À Meia Noite Levarei Sua Alma, Barcinski e Finotti tomam 15 páginas, terminando com um entusiasmo enorme em relação à maneira que Mojica manipula a imagem fotográfica: “Mojica criou uma imagem cinematográfica sem sequer usar uma lente! Para ele, o negativo poderia servir não apenas para gravar imagens filmadas, mas também como a tela de um quadro, ou a base sobre a qual é feita uma colagem. Metalinguagem pura, coisa de gênio”. Outros filmes, como O Estranho Mundo do Zé do Caixão e Ritual dos Sádicos, foram elogiados com arroubos de admiração, em um panegírico por um cinema mais artesanal e verdadeiro. Entretanto, os autores vão longe demais ao comparar à obra de Mojica aos filmes de Luis Buñuel – que possuem estilo e intenção completamente diferentes dos de Mojica –, e aproximar a ideologia de Zé do Caixão ao conceito de super-homem de Nietzsche. Em uma simplificação do conceito do além-homem (Übermensch), Barcinski e Finotti exageram na comparação, justapondo falas de Zé do Caixão e trechos de Assim Falou Zaratustra. “Uma análise cuidadosa dos monólogos de Zé do Caixão mostra que o personagem tem vários pontos em comum com o espírito nietzscheano, especialmente o niilismo, o ceticismo, o individualismo, a realização pessoal e o ódio ao cristianismo”. Mesmo assim, os autores são honestos com o leitor, deixando claro que essa comparação é uma opinião pessoal, já que Mojica nunca ouviu falar de Nietzsche e não conhecia os preceitos de sua filosofia.

Quando Mojica, em 1963, começou a filmar Geração Maldita, percebeu que fazer um longa profissional era muito mais difícil e caro do que rodar curtas caseiros. Assim, resolveu criar uma escola de cinema – com as mensalidades dos alunos, pretendia custear seus filmes, além de economizar utilizando-os como elenco em suas produções. Essa escola deu início a um esquema de cotas, no qual os alunos arrecadavam dinheiro para os filmes e recebiam em troca um papel com o valor embolsado, que daria direito a uma determinada quantia em cima do lucro total da fita. É fácil chegar à conclusão de que esse esquema resultaria em inúmeros problemas financeiros para Mojica, que nunca soube administrar o dinheiro que ganhava. Os autores mostram Mojica como um homem totalmente dominado por sua paixão pelo cinema, capaz de sacrificar sua situação financeira, sua família e sua saúde pela produção de uma fita. Mesmo com sucessos de bilheteria, Mojica continuava mais pobre do que nunca, contraindo qualquer dívida para terminar um filme. Embora dono de um faro publicitário muito eficiente, ele perdia a cabeça e a cautela quando o assunto era viabilizar um filme.

Embora se envolvesse em inúmeros esquemas suspeitos – o das cotas, por exemplo, rendeu uma prisão (injusta) por estelionato –, Barcinski e Finotti deixam claro que Mojica era ingênuo, e não um aproveitador. “Ele assinava contratos impulsivamente, sem pensar nas conseqüências e sem consultar seus parceiros. Também nunca pensou em guardar dinheiro ou em profissionalizar suas atividades”. Os autores inclusive preocupam-se em transmitir ao leitor todo o desespero sentido por Mojica ao encontrar-se totalmente falido: “toda a fortuna gerada por Zé do Caixão fora parar em outras mãos – o dinheiro da bilheteria de seus filmes ficara com os produtores e distribuidores; a renda dos gibis e seu salário na TV foram gastos pagando banquetes para sua corriola”. Entretanto, ao falar sobre o declínio da carreira de Mojica, também sugerem um possível masoquismo do diretor em relação à sua instabilidade financeira permanente. Quando Mojica tinha em mãos o dinheiro resultante das bilheterias de Ritual dos Sádicos e Finis Hominis, parecia que finalmente conseguiria administrar sua carreira mais conscientemente. “Foi aí que entrou novamente em ação a inexplicável – e aparentemente masoquista – capacidade de Mojica em arruinar sua própria vida”. Ele havia resolvido comprar uma perua com as promissórias que recebera de Nelson Teixeira Mendes pelo filme Quando os Deuses Adormecem, e acumulou uma enorme dívida em um estacionamento. Posteriormente, ficou a zero mais uma vez – situação que se repetiria cada vez mais em suas próximas produções. Ainda sobre sua carreira financeira, Barcinski e Finotti sugerem outro viés da personalidade de Mojica, contraditória em relação ao tratamento dado anteriormente, que o considerava ingênuo. ”Mojica entrou na década de 70 à beira da miséria absoluta. Enquanto aguardava o lançamento de Ritual dos Sádicos, sobreviveu vendendo o encalhe de seus gibis. Nas horas de maior aperto, apelava para trambiques indecentes, vendendo assinaturas falsas da revista em quadrinhos”.

O livro narra a vida de Mojica em uma linguagem simples e divertida, contando muitas histórias curiosas, como a solução que Mojica encontrou para controlar a imprevisível e esnobe atriz Nádia Freitas nas filmagens de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver – convenceu o produtor, Antonio Fracari, a fingir um interesse romântico por Nádia, que acreditou que estava noiva. Após gravar sua última cena, foi dispensada aos risos do estúdio, após levar um tapa de Fracari – e a reação de Glauber Rocha, que sempre que via À Meia Noite Levarei Sua Alma levantava da primeira fileira do cinema gritando: Porra, esse cara é um gênio! Outro episódio, embora mais melancólico, é narrado de maneira a fazer o leitor entender o ridículo da situação. Quando, já na TV Tupi, Mojica apresentava o programa O Estranho Mundo do Zé do Caixão, Antonio Abujamra começou a tentar modificar o personagem, tornando-o mais agradável à platéia intelectual que prestigiava os programas da emissora. “Abujamra apelou e sugeriu botar Zé do Caixão recitando poemas de Pablo Neruda. Mojica revoltou-se: - Poesia? Isso é coisa de viado!”

Os autores também narram muitos detalhes da vida íntima de família, como seus inúmeros casos com alunas de sua companhia, o quadrilátero amoroso formado por sua esposa Rosita e suas amantes Maria, Nilce e Fátima e seus ataques de fúria devido à bebida, mostrando ao leitor um Mojica extremamente desequilibrado e infeliz, em um retrato que o próprio cineasta considera que precisa ser melhorado nas próximas edições do livro. “Eu acho que até a década de 70 está legal, mas depois disso existem algumas coisas que não têm nada a ver. Como eles fizeram 400 entrevistas, muitos inimigos meus falaram coisas erradas. O caso da minha esposa foi satirizado, não foi assim que aconteceu. Fiquei muito chateado”. Para Mojica, o retrato realmente fiel de sua vida e obra é o documentário Maldito, também de Barcinski.

A relação entre Mojica e a censura é bem explicada no livro, com pareceres de censores e explicações de como seus filmes eram cortados e interditados. Seu primeiro filme a sofrer com a interferência da censura foi Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, que foi considerado tão chocante e obsceno a ponto da censora Jacira Oliveira escrever que “se não fugisse à minha alçada, seria o caso de sugerir a prisão do produtor pelo assassinato à sétima arte, pois não foi outra coisa que ele realizou ao rodar o presente ‘filme’.” Em sua perpétua necessidade de economizar, Mojica muitas vezes acabava – involuntariamente – sendo considerado por alguns críticos de cinema como um cineasta revolucionário, que resistia e protestava contra as interdições da censura, já que em seu filme Delírios de um Anormal ele encontrou uma maneira surpreendente de economizar nas filmagens: “Mais de 90% das cenas de alucinação do filme foram tiradas de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, O Estranho Mundo de Zé do Caixão e Exorcismo Negro. A maior ousadia de Mojica, no entanto, foi incluir diversas sequências de Ritual dos Sádicos, filme que continuava interditado. Nenhum dos censores percebeu o truque”.

De acordo com Barcinski e Finotti, Mojica se envergonhava dos filmes de sexo explícito e as pornochanchadas que dirigiu para sobreviver, como 24 Horas de Sexo Explícito, 48 Horas de Sexo Alucinante e Dr. Frank na Clínica das Taras, Como Consolar Viúvas e A Virgem e o Machão – este último, o primeiro filme que Mojica dirigiu sob pseudônimo. “Mojica sabia que esses filmes de encomenda acabariam manchando sua reputação; tanto que exigiu assinar a direção com o pseudônimo de J.Avelar”. No catálogo da mostra José Mojica Marins – 50 Anos de Carreira, editado por Eugênio Puppo, existe outra versão sobre o pseudônimo, dada pelo próprio cineasta em um depoimento extenso. “Esse nome veio da Brasecan, que era considerada a maior distribuidora daqui. O pessoal não gostava do Zé do Caixão e achava que o nome J.Avelar era melhor” Para Barcinski e Finotti, Mojica assinou como J.Avelar porque tinha vergonha de fazer comédias eróticas e de baixa qualidade para conseguir se sustentar; de acordo com o depoimento conseguido por Eugênio Puppo, o pseudônimo era apenas uma maneira de agradar à produtora, que não gostava do personagem Zé do Caixão; e, para Mojica (em entrevista à Zingu!), os filmes de sexo explícito foram uma maneira de viabilizar a produção Encarnação do Demônio, lançada só em 2008. Versões diferentes da mesma história, que evidenciam como Mojica reinterpreta a si mesmo e cria fatos totalmente inéditos, por sua vontade de promover seus filmes e sua personalidade. O livro de Barcinski e Finotti, por exemplo, é um dos poucos escritos sobre Mojica que não traz a famosa história da vagina com gonorréia, que teria sido o motivo pelo qual o cineasta começou a se interessar por cinema de horror. Quase todas as entrevistas feitas com Mojica atualmente sobre o filme Encarnação do Demônio contam essa história, também presente no catálogo de Eugênio Puppo. É possível supor que, já que o livro é de 1998, Mojica ainda não tinha começado a contar essa história, possivelmente criada para promover o novo filme – considerando que, se tivesse realmente visto essa imagem quando criança, dificilmente não teria dito a seus dois biógrafos.

Barcinski e Finotti encerram o livro com uma lista completa a respeito da carreira de Mojica, feita pelo pesquisador e jornalista Carlos Primati, que compreende as produções profissionais de Mojica, os filmes com sua participação na equipe técnica, os que participou como ator, documentários sobre sua vida e obra, trabalhos amadores, televisão, teatro, quadrinhos, livros, revistas, discos, produções rodadas em vídeos e trabalhos inacabados.




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