Clássicos de Prestígio
Por Gabriel Carneiro
Meu Destino em Tuas Mãos
Direção José Mojica Marins
Brasil, 1963.
Coisa rara a temática de Meu Destino em Tuas Mãos na carreira de seu autor – este que é o segundo filme do cineasta José Mojica Marins, anterior ao personagem Zé do Caixão. Ele se aventura por um gênero que lhe é inóspito, e que assim fica até os dias de hoje, o melodrama – nesse caso, também muscial. A imagem de Mojica fazendo um filme de crianças – sendo que uma delas canta – não é muito positiva. A abertura, por exemplo, é uma animação com crianças, padres e sinos, entoados por uma canção com a voz do garoto Franquito. Muito estranho, afinal, o cineasta é famoso por ser visceral, por seus filmes carregarem uma grande dose de subversão temática e formal, por extrapolar na violência e no erotismo de suas personagens nas cenas mais tortuosas.
É surpreendentemente prazerosa, porém, a visita ao filme. Mojica consegue fazer uma película simples, que lembra bastante o cinema rural feito no país até meados da década de 70. Apesar das incongruências (com sua carreira, fique claro), Mojica Marins se acerta. O filme caminha fácil, embalado por conflitos comuns, Franquito e sua voz, heróis, vilãos... Nada de extraordinário que justificasse a lembrança do filme nos dias de hoje, se não fosse a análise mais profunda da carreira de um dos maiores gênios do cinema brasileiro.
Isso não relega o filme a um grau de qualidade baixa, e sim de obscurantismo, por, justamente, não ser um exemplar do gênero. O roteiro é frágil e cheio de soluções fáceis, que conduzem o espectador à segurança de um filme que respeita a palavra divina, um filme submisso às facilidades do dogmatismo talvez. Cinco garotos de diferentes idades fogem de casa por serem de alguma forma agredidos por seus genitores (ou tutores). Nessa aventura, cantam, cometem furtos de alimentos e se relacionam com pessoas que passam pelos seus caminhos. A falha está em como essa agressão é feita. Excetuando-se pela família Mojica – José, o cineasta, é o maior vilão, o pai que ameaça o filho de morte; e Antônio, pai do cineasta, que instiga o sobrinho da esposa a bancar seus problemas -, todos os outros simplesmente se cansaram com coisa à toa. Um deles, por exemplo, ouviu apenas o pai reclamar da falta de produtividade financeira do garoto, que prefere a escola ao trabalho. Isso o motiva a sair de casa, assim como o garoto que quer ser inconveniente durante o namoro da irmã, e dela recebe uma chinelada.
A única alternativa mais complexa da obra é quando a recorrente memória de um pai maldoso e violento (José Mojica) perturba constantemente um moleque mirrado, que sonha e delira com o trauma. Vencer a memória é um caminho pecaminoso e que livra o filme de um excesso de banalidades. Claro, o garoto Franquito cantando também não chega a incomodar.
Toda essa comprovação não é gratuita. A própria história do filme atesta isso. Conta-se que, querendo sucesso comercial acima de tudo, Mojica teria procurado o Padre Lopes, da Escola de Cinema São Luís, após o fracasso no interior de seu primeiro filme, A Sina do Aventureiro – a Igreja sempre foi muito influente no interior, justamente pela pequena população, que é religiosa, e segue os conselhos dos padres; por ter colocado uma cena de duas moças tomando banho no rio no western feijoada, os clérigos teriam condenado o filme e desencorajado os fiéis de verem-no. Padre Lopes teria dito a Mojica que fizesse um filme sobre crianças e redenções, em que padres e freiras fossem os heróis, e que o filme passasse uma mensagem positiva. Os padres amaram, mas o público e a crítica nem notaram a película. Destinado a um público infantil, o filme foi comprometido pela censura de 14 anos. Com o fracasso, Lopes teria dito a Mojica que cinema não era para ele.
Alguns críticos dizem que Meu Destino em Tuas Mãos seria Os Esquecidos brasileiro. Numa análise superficial, há muitos pontos de ligação entre os filmes de Mojica e de Luis Buñuel, e só. Olhando-se mais atentamente, percebe-se que Buñuel tem um olhar muito mais intimista e crítico quanto à sua realidade, fator quase nulo na obra tupiniquim – que não é necessariamente um demérito.
A tal fragilidade não chega a comprometer o resultado. A direção sóbria de Mojica garante à jornada e à cantoria um clima de liberdade e tranqüilidade. Fica a impressão de satisfação, de divertimento, e de 80 minutos bem gastos. A plenitude se encarrega de resto.