Revista Zingu!

O Estranho Mundo de Zé do Caixão
Direção: José Mojica Marins
Brasil, 1968.

Por Raphael Carneiro, especialmente para a Zingu!

No fim da década de 60, o cineasta José Mojica Marins, recém saído do sucesso do clássico do horror tupiniquim À Meia-Noite Levarei Sua Alma - sucesso para os donos dos direitos da fita, vendidos por Mojica dias antes da estréia -, foi apresentado ao escritor de histórias policiais Rubens Francisco Lucchetti, que mais tarde ficaria conhecido como o maior escritor pulp brasileiro. O encontro, promovido pelo diretor da Cinemateca Brasileira, Sérgio Lima, seria o início de uma parceria extraordinária, talvez a mais importante e icônica da carreira do Mestre do Horror.

Fã de Mojica desde assistiu À Meia-Noite Levarei Sua Alma e entusiasta de cinema experimental (foi um dos criadores do Centro Experimental de Cinema de Ribeirão Preto), Lucchetti foi se encontrar com Mojica em uma elegante casa de chás em São Paulo. A conversa, no entanto, não foi produtiva, e o Mestre apenas pediu que Lucchetti aparecesse na sinagoga que servia como Estúdio de Cinema de Mojica, a lendária Cia. Cinematográfica Ibéria, um local caindo aos pedaços. Mesmo crente que não conseguiria trabalhar com Mojica, por se tratar de um modesto profissional do interior, enquanto o último já era um cineasta conhecido, ele resolveu arriscar e comparecer ao encontro marcado na sinagoga.

Chegou ao local e encontrou o mestre, que lhe mostrou os cenários onde estava filmando Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, e ainda o apresentou aos seus discípulos como sendo um colaborador especial. Disse que havia conseguido um modesto financiamento para fazer um filme, e queria que Lucchetti escrevesse o roteiro! Iria se tratar de um filme denominado O Estranho Mundo de Zé do Caixão, e que seria dividido em três episódios, de meia hora cada. E passou oralmente o argumento, para direcionar o roteiro.

O primeiro episódio seria a respeito de um velho que constrói bonecas com olhos humanos. O segundo seria sobre um rapaz pobre que se apaixona por uma menina rica, que morre. Então, o rapaz acaba “consumando sua paixão” com o cadáver dela. O terceiro episódio seria sobre um casal que ridiculariza o Zé do Caixão em um programa de TV, e são levados para a mansão dele, onde ele os tortura, de modo a provar que o instinto sempre prevalece sobre a razão.

Terminou a conversa pedindo que fosse feito um roteiro caprichado envolvendo essas idéias. Nove dias depois, o roteiro de O Estranho Mundo de Zé do Caixão estava terminado, e seria guardado por um tempo, até que Mojica tivesse dinheiro e disposição para iniciar as filmagens.

Logo após terminar a obra-prima Pesadelo Macabro – seu episódio do Trilogia do Terror -, o Mestre deu início à produção de O Estranho Mundo de Zé do Caixão, com o patrocínio do egípcio George Michel Serkeis, que vendeu um sobrado que possuía na Vila Mariana para bancar o filme. Esse, aliás, pode ser considerado um dos episódios mais interessantes da carreira de Mojica, e os motivos desta afirmação são explicados a seguir.

O sobrado era habitado por um tio idoso de George, que se recusava a sair da casa. Aproveitando um dia que o venerável ancião não se encontrava, George, Mojica e Jean Garret, um dos assistentes de Mojica, que mais tarde seria conhecido como um dos mais prolíficos cineastas da Boca do Lixo, se encaminharam ao sobrado munidos de um rolo de corda e marretas. Entrando por uma telha deslocada, destruíram as paredes da casa. Quando o tio retornou e deu de cara com a casa destruída, concluiu que devia se tratar de algum perigoso ladrão, e resolveu ir morar com o seu sobrinho, liberando a casa para venda.

Utilizando a verba de George e o fantástico roteiro de Lucchetti, Mojica rodou todos os três episódios da fita em 16 dias, na sinagoga, com cenários e elencos totalmente distintos.

O primeiro episódio é intitulado de O Fabricante de Bonecas. Trata-se da história de uma gangue que invade a casa de um velho artesão, com o objetivo de roubá-lo, e se possível, violentar as gostosas filhas do homem. O que eles nem desconfiam é que o homem tem o hábito de utilizar olhos humanos em suas bonecas. Trata-se de uma história simples, contada de maneira bem convencional e que tem como curiosidade uma participação do cineasta Luís Sérgio Person, fã assumido de Mojica. Embora seja competente, trata-se de um dos momentos mais fracos da carreira do Mestre.

Já o segundo episódio, denominado singelamente de Tara, é simplesmente fabuloso. Trata-se do meu momento preferido da carreira do Mojica, em parte pela força poética de suas imagens e história. Podemos até dizer que é a interpretação pessoal de Mojica e Lucchetti para a fábula A Bela e a Fera. Trata-se da história de um mendigo que se apaixona por uma bela mulher que morre, sendo violada por ele em seu túmulo. Impressionado com a força da história, Lucchetti escreveu o roteiro sem qualquer diálogo, sublinhando os sentimentos dos personagens com expressões e gestos dos atores. O resultado é não menos que sensacional, uma das obras mais perturbadoras, agressivas e poéticas já feitas a respeito de necrofilia, ao mesmo tempo que é de uma delicadeza ímpar. A cena do sapato sendo restituído é algo que dá nó na garganta. Vale lembrar que no roteiro original (considerado muito “fresco” pelo Mestre), o filme terminava de maneira surreal e delicada, com o mendigo abrindo o caixão de sua amada morta e sofrendo uma alucinação, onde eles dançavam um balé.

O último episódio, Ideologia, é uma das obras mais fortes, heréticas e violentas já produzidas no país, e porque não, no mundo. Traz um vilão ainda mais cruel e pérfido que Zé do Caixão, o Professor Oaxiac Odez (um anagrama, como podem perceber). O coveiro, ainda acreditava na continuidade do sangue e na raça superior, mas o Professor não acredita em absolutamente nada, a não ser em sua tese, de que o instinto sempre prevalece sobre a razão. No início do episódio, vemo-lo sendo entrevistado em um programa de televisão, em que é tomado como maluco.

Após ser ridicularizado, convida um dos participantes do programa com sua esposa para irem até sua mansão, de modo a ter provas de sua maluca teoria. Para isso, são levados a uma câmara de horrores, onde presenciam torturas dantescas, e são presos sem água e comida. O filme termina com uma das cenas mais grotescas de canibalismo já vista. Aliás, a idéia é que terminasse dessa forma, mas é obvio que a Censura, “defensora dos bons costumes” teve um surto, e obrigou que o vilão fosse punido no final do filme. O que faz com que a obra em questão tenha dois desfechos. O grotesco, logo seguido por uma explosão.

O interessante de O Estranho Mundo de Zé do Caixão é a versatilidade do filme. Ele abre com uma história simples e convencional, de horror clássico. Parte então para uma experiência ultra-poética e até estilizada, terminando com um tratado fantástico de cinema extremo e ultra-violência, cujo exagero e barbarismo até hoje choca os mais sensíveis. Trata-se talvez, da obra mais bem acabada do Mestre, e que melhor demonstra sua capacidade de extrair beleza do que em quaisquer outras mãos que não a dele seria considerado de mau-gosto.

Quase 40 anos depois de seu lançamento, O Estranho Mundo de Zé do Caixão permanece como uma obra-prima do horror, e um dos melhores filmes já feitos no Brasil. Não perdeu em absoluto seu potencial de choque. Prova máxima que os clássicos são atemporais.

Raphael Carneiro é ex-colunista da Ruído, na Zingu!, e fã confesso de José Mojica Marins.