ossiê José Mojica Marins
O Estranho Mundo de Zé do Caixão
Rubens Francisco Lucchetti e Nico Rosso – 1969
Revista mensal publicada pelas editoras Prelúdio (#1-#4) e Dorkas (#5 e #6)
Por Daniel Salomão Roque, especialmente para a Zingu!
Caso fosse possível resumir em uma única expressão o enorme sucesso popular atingido por José Mojica Marins na década de 60, esta seria O Estranho Mundo de Zé do Caixão. Lembrada principalmente como título de um dos mais célebres filmes do cineasta, a alcunha batizava também um inusitado programa de teledramaturgia da TV Tupi e uma revista em quadrinhos que marcou época no mercado editorial brasileiro. Em comum com os outros dois produtos, esta última tinha a figura do coveiro, a estrutura narrativa e a assinatura do mesmo roteirista. Porém, não nos enganemos: clássico absoluto das nossas HQs, O Estranho Mundo de Zé do Caixão ia além do simples merchandising e utilizava com maestria todos os recursos que sua mídia oferecia. Na verdade, o gibi era tão autoral que hoje em dia é quase impossível falar dele sem relembrar a trajetória dos seus envolvidos.
O homem por trás dos contos publicados na revista se chama Rubens Francisco Lucchetti: dono de uma imaginação assustadoramente fértil, seus pseudônimos só são ultrapassados em número pela enorme quantidade de obras que assinou: dezenas de roteiros cinematográficos / televisivos, centenas de quadrinhos e, sem exagero, milhares de deliciosos livrinhos policiais baratos. Lucchetti é o grande nome da pulp fiction brasileira e conhece como poucos os macetes da literatura de gênero. Não à toa, foi o mais constante parceiro criativo de Mojica, tendo desenvolvido junto a ele uma infinidade de projetos que, infelizmente, nunca saíram do papel. No entanto, aqueles que chegaram a ser concluídos falam por si mesmos: é de Lucchetti o script de Ritual dos Sádicos, só para citar um exemplo.
Coincidência ou não, o início da colaboração entre essas notáveis figuras deu-se com O Estranho Mundo de Zé do Caixão - não a revista ou o programa de TV, mas o filme, lançado em 1968 e escrito anos antes. Do ponto de vista estético, o que mais chamava a atenção na película era a estilização, um quê de kitsch e a atmosfera característica dos gibis. Nada disso era novidade em relação aos trabalhos anteriores de Mojica, que por sinal é apreciador confesso de comics, mas Lucchetti acentuou ainda mais este painel ao tecer narrativas absurdas em que o personagem era um simples anfitrião. Os artistas se entenderam muito bem, a fita foi um sucesso e mais ou menos na mesma época a dupla despontou na televisão – com tamanha empatia e compartilhando de tantas preferências, não tardou para que surgisse a idéia de expandir aquele universo para as bancas de jornal.
E foi assim que, em janeiro de 1969, O Estranho Mundo de Zé do Caixão virou gibi. Logo de cara ele já chamava a atenção pelo acabamento diferenciado – papel de boa gramatura, formato maior que a média e impressão de primeira enchiam os olhos dos leitores, que por sinal pagavam mais caro nessa revista do que em qualquer outra do gênero. De periodicidade mensal, a publicação trazia, dentre outras coisas, fotonovelas reaproveitadas do filme homônimo, além de textos bizarros que saíam numa sessão denominada “Filosofia do Zé”. Contudo, o grande atrativo eram mesmo os longos quadrinhos de trinta e quatro páginas, escritos por Lucchetti e desenhados pelo ítalo-brasileiro Nico Rosso. Alguns deles eram adaptações de episódios veiculados nos shows televisivos de Mojica, o que não deixa de ser interessante do ponto de vista histórico (afinal de contas, as fitas originais dos programas foram reutilizadas pelas emissoras, não havendo nenhum registro audiovisual dos mesmos: prova cabal da estupidez sem limites dos nossos produtores). Noite Negra, por exemplo, havia sido exibida com ligeiras modificações no programa Além, Muito Além do Além e posteriormente transformada em filme no segmento dirigido por Ozualdo Candeias no longa Trilogia do Terror, com o nome O Acordo; sua versão quadrinizada saiu logo no primeiro número e abordava o cotidiano de um senhor que, visando ao prestígio e a uma boa condição financeira, faz um pacto com o capeta sem saber que isso resultará na morte brutal da própria filha.
A temática aproximava essas histórias e os filmes de Mojica na mesma medida em que os afastava. Por um lado, ambos ostentavam um senso profundamente cotidiano, abrasileirado e contemporâneo de horror, em que o absurdo, o grotesco e a crueldade apareciam não em ocasiões longínquas no tempo e no espaço, mas nas esquinas, bares, repartições públicas, cidades pequenas do interior, etc. Por outro, o ceticismo panfletário de À Meia-Noite Levarei Sua Alma e de Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver é substituído pela onipresença do sobrenatural: demônios, espíritos malignos, exus, feiticeiros e iconografia religiosa deixaram de ser simples alvos de chacota, transformando-se em elementos concretos e de influência decisiva no destino dos protagonistas. No final das contas, a sensação provocada continuava sendo a de que o terror pode ser mais palpável e concreto do que as produções anglo-saxônicas dão a entender, no que era reforçada pelas magníficas ilustrações do falecido Nico Rosso: seu estilo barroco caía como uma luva nos enredos em que folclore e crendices davam a tônica. Ao contrário do preto e branco contrastante que sempre reinou nos quadrinhos do gênero, o artista adotou uma arte que incluía incontáveis tonalidades de cinza, tornando a ação realista mesmo nos momentos mais estilizados e fantasiosos. A figura de Zé do Caixão surgia aqui e acolá, como um narrador de carne e osso cujas fotografias se mesclavam com total harmonia à prosa desenhada. Sempre ácida, a narrativa apresentava pinceladas sutis de humor negro e moralismo: em determinados momentos a desgraça alheia parecia deveras engraçada, à parte o fato de ter sido ocasionada por desvios comportamentais. De certa forma, o resultado é como se os autores parodiassem a máxima e demonstrassem na prática que “assustando se corrigem os costumes”.
Daniel Salomão Roque é fanático por quadrinhos e cinema. Colaborou fixamente com a Zingu! por 15 edições, das quais 12 com a coluna Tesouro dos Quadrinhos.