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Dossiê José Mojica Marins

Os dois Zés

Por Carlos Thomaz Albornoz, especialmente para a Zingu!

“Quem sou eu? Não interessa... como também não interessa quem é você (...) Não aceita o terror porque o terror é VOCÊ!!!”
Assim começa (e termina) o sensacional monólogo de Zé do Caixão em O Estranho Mundo de Zé do Caixão (1968), em minha modesta opinião, o melhor filme do personagem. Esse mesmo monólogo, mais de uma geração depois, foi musicado pelo Sepultura, fazendo parte do disco Against, de 1998. Mas quem raios é esse Zé do Caixão?

Na verdade existem dois personagens chamados Zé do Caixão, que coexistem em nosso mundo. Em ordem de criação, o primeiro é a persona pública do coveiro Josefel Zanatas, que busca o filho perfeito e não mede esforços para isso. O segundo, primeiro a estrear, é a persona pública do cineasta que o criou, José Mojica Marins, e infelizmente se confunde com o primeiro, fazendo o público se confundir.

O personagem cinematográfico é um espanto. Surgido de um país sem nenhuma tradição (seja cinematográfica ou literária) no horror, o coveiro interiorano teve sua saga representada na grande trilogia do cinema fantástico nacional: À Meia-Noite levarei sua alma (1964), Esta Noite encarnarei no teu cadáver (1966) a Encarnação do Demônio (2008), além de fazer aparições não-canônicas (fora de sua história principal) em mais quatro obras: O Estranho Mundo de Zé do Caixão (1968, aonde ele apresenta as histórias e é o personagem principal da última delas – ou será que o nome Oaxiac Odez engana alguém?), Ritual de Sádicos (1969, que versa sobre o impacto do personagem nas pessoas), Exorcismo Negro (1974, sobre a criatura e o criador Zé do Caixão) e Delírios de um Anormal (1978, sobre os pesadelos que o personagem provoca). Acrescento a isso as aparições na TV como apresentador das séries Além, muito além do Além e O Estranho Mundo de Zé do Caixão (que infelizmente não foram preservadas para a posteridade).

Sobre essa sua encarnação, não há nenhum reparo a ser feito. Qual mérito devo destacar primeiro? Tem uma origem comum a vários personagens clássicos da arte fantástica, um pesadelo de seu criador, assim como nasceram Drácula, Frankenstein, mr. Hyde e tantos outros. Ao contrário dos personagens criados até então, ele é totalmente brasileiro, em ambientação, caráter e raciocínios, não parece um conde europeu perdido por aqui. Segundo o cineasta (e cinéfilo) Carlos Reichenbach, trata-se de um dos dois grandes personagens trágicos do cinema brasileiro (o outro sendo Antônio das Mortes). É um dos únicos personagens brasileiros discutidos a sério (e sem exotismo) pela crítica cinematográfica estrangeira, pelo menos a voltada ao cinema fantástico. Também é personagem de gibis, livros, capas de disco (como a do segundo LP de Zé Ramalho, de 1980) e músicas (só do Sepultura são duas: Rathamatta e a já citada Prelúdio).

Uma boa maneira de mesurar o impacto do personagem é acompanhar a repercussão do lançamento dos filmes, primeiro em VHS depois em DVD, no primeiro mundo. Após anos só conhecendo o personagem através de fotos e resenhas esparsas (como na Aurum Encyclopedia, de Phil Hardy, aonde Mojica já era personagem nos anos 70), mais ou menos como aconteceu com cineastas como Jean Rollin, Amando de Ossorio, Paul Naschy e Jesus Franco, o público gringo não economizou elogios (vide em quantas revistas as coleções estiveram nos ‘10 mais’ do ano e da década), quando lhe foi concedida a chance de conhecer o “Coffin Joe” em sua forma original. Por sinal, antes que o público brasileiro tivesse essa oportunidade, pois isso só ocorreu no Brasil já no século XXI, primeiro nas fitas da Continental Vídeo, depois nos DVDs da Cinemagia. Antes disso, quem quisesse conhecer o personagem no Brasil, que se contentasse com as mostras de cinema, que tivesse alguma gravação de TV, ou que encontrasse os lançamentos quase clandestinos que chegaram a ocorrer.

Infelizmente o personagem público Zé do Caixão acaba se sobrepondo a esta outra criação, a até mesmo à pessoa do diretor. Nascido durante uma entrevista de Mojica no programa Clube do Lar, de Walter Forster, ainda durante a rodagem do primeiro filme, já fazendo as famosas maldições. Como o personagem cinematográfico, não perde tempo com maldições e já parte para a ação - aliás ele não crê em maldições e sempre acaba sendo vítima das forças que não acredita. Partimos do princípio que o personagem público, de inúmeras aparições, seja no jornal - brigando com o Diabo de Vila Velha -, seja na TV - como convidado em programas de entrevista, jurado -, não é o mesmo do cinema. Tão notório é - por exemplo, quando foi repórter de um programa popular no Grande Prêmio de Fórmula 1 teve que se retirar do evento, pois estava chamando mais atenção que os pilotos e carros -, que acaba se sobrepondo ao personagem cinematográfico (vide o número de pessoas que conhecem o personagem e nunca viram nenhum filme), e até mesmo ao seu criador, afinal mesmo quando aparece fora do personagem (sem cartola e capa), José Mojica Marins é apontado como Zé do Caixão. Como os fãs de sua encarnação cinematográfica têm um imenso carinho pela pessoa do diretor, eles acabam se acostumando (ou se resignando) à exuberância desta persona pública, que dá palpite sobre todos os temas possíveis e aparece em todos os canais de tevê que se dispõe a chamá-lo. O crítico Daniel Caetano “culpa” este personagem folclórico, entre outros fatores, pelo fracasso de público de Encarnação do Demônio, já que o público ‘normal’ (não cinéfilo) acaba relacionando Zé do Caixão com o personagem midiático, não com nosso maior personagem cinematográfico.

Para encerrar o artigo, vou lembrar uma conversa que tive com o argentino Pablo Sepere, curador do Festival de Cinema Fantástico de Buenos Aires, o Rojo Sangre. Em determinado momento eu estava falando sobre o imenso ciúme que tenho da produção de horror argentina no Século XXI (quarenta filmes, a sua maioria rodada em inglês e exportada para os Estados Unidos e Europa). Ele meio que deu uma suspirada e me respondeu: pois é, mas a Argentina não tem nenhum personagem como Zé do Caixão...

Carlos Thomaz Albornoz é jornalista formado pela PUCRS, fã de cinema, especialista em cinema de horror europeu e asiático. Entre outros lugares, já escreveu para Cine Monstro, Contracampo, Carcasse.com e Teorema.



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