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Dossiê José Mojica Marins

Prontuário 666 – Os anos de cárcere de Zé do Caixão
Samuel Casal & Adriana Brunstein - 2008
Editora Conrad, 25 reais.

Por Daniel Salomão Roque, especialmente para a Zingu!

As cento e poucas páginas de Prontuário 666 resultam num dos mais interessantes exemplares dos quadrinhos brasileiros recentes. Mesmo que desprezemos seus inegáveis méritos, ainda assim sobra uma idéia criativa, inovadora e, ao menos no nosso país, não muito usual: o entrelaçamento firme entre duas mídias distintas, HQ e cinema, tendo como eixo um ícone da cultura popular e visando não apenas a divulgação mútua de dois produtos, mas, acima de tudo, um experimento em que uma única e longa narrativa se desenrola através de fragmentos autônomos de duas linguagens diferentes. Ou seja, na pior das hipóteses o trabalho de Samuel Casal e Adriana Brunstein resultaria numa peculiar simbiose cujo valor se resumiria ao teor inusitado de sua proposta inicial, sem ir muito além disso; felizmente não é o que ocorre, sendo a complexidade do projeto correspondida quase integralmente pelo esforço e talento da dupla de artistas.

Trata-se, sem sombra de dúvidas, de uma empreitada grandiosa, e não deixa de ser irônico que muito dessa aparente megalomania se deva a fatores ocasionais externos. Como já foi dito à exaustão pelos veículos especializados, crítica e fãs em geral, o ano de 2008 marcou o apoteótico retorno de José Mojica Marins - não o ilustre convidado dos ridículos programas de auditório dos quais virou freqüentador assíduo a partir da década de 70, quando sua carreira artística entrou em franco declínio, mas do cineasta brilhante e instintivo, criador de um dos mais intrigantes personagens do horror mundial e diretor de À Meia-Noite Levarei Sua Alma e de Ritual dos Sádicos, dentre outras obras-primas da transgressão audiovisual. O vértice desse revival é o filme Encarnação do Demônio (ótimo, por sinal), precedido há quarenta e um anos pelo clássico Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver e responsável pelo encerramento de uma trilogia que permaneceu suspensa ad eternum em decorrência de problemas financeiros, perseguições da censura e até mesmo a morte de possíveis produtores. Quando, em meados da presente década, sua realização finalmente se viabilizou, Mojica já se encontrava envelhecido e a necessidade de algumas mudanças no script era algo gritante, a começar pela idade do protagonista.

Desta forma, Encarnação do Demônio tem início com um Zé do Caixão idoso sendo liberado da cadeia após o cumprimento de pena máxima, para desaguar nos sucessivos choques entre sua figura e a selvageria da metrópole paulistana contemporânea. Tal escolha, além de proporcionar um novo ponto de vista temporal e geográfico do personagem, abre um vácuo de quatro décadas em sua mitologia, sendo parte dessa lacuna a matéria-prima de Prontuário 666: não à toa, o gibi termina onde o filme começa. Em ambos os casos, o que se vê são tentativas de atualização que, intencionalmente ou não, estabelecem na memória do público uma série de elos com o passado - experiências causadoras de certo estranhamento, sim, mas muitíssimo bem-sucedidas.

Neste sentido, a história em quadrinhos é ainda mais radical que o filme. Se Encarnação do Demônio apresentava uma modernização que não destoava dos clássicos protagonizados pelo coveiro, chegando inclusive a flertar com a nostalgia ao recriar trechos das fitas antigas e fazer referência a nomes do cinema marginal (Helena Ignez, Rogério Sganzerla, Jairo Ferreira), Prontuário 666 é a exata antítese de todas as outras HQs envolvendo o anti-herói, o que nem de longe significa baixa fidelidade às suas características básicas ou qualquer coisa do tipo: ele continua sendo ateu, niilista, arrogante, grotesco, atormentado e perverso; porém, temos aqui alguns diferenciais com relação às publicações anteriores.

Afinal de contas, Zé do Caixão nunca foi personagem principal de seus gibis, exceção feita à quadrinização homônima de À Meia-Noite Levarei Sua Alma desenvolvida por Laudo Ferreira Júnior; nas lendárias parcerias entre o escritor R.F. Lucchetti e o desenhista Nico Rosso, o mesmo desempenha uma função análoga à dos célebres anfitriões da EC Comics, ou seja, não participava dos enredos em si e limitava-se a narrá-los. Estes, por sua vez, via de regra, lidavam com temas sobrenaturais (uma enorme contradição no tocante à natureza da criatura, a despeito da fantástica qualidade das narrativas). Casal e Brunstein tomaram a direção contrária e produziram uma história mundana, blasfema, dominada por paixões terrestres, na qual o homem de longas unhas é narrador, herói, vilão e epicentro de todos os acontecimentos. A atmosfera é priorizada em detrimento da ação, e a conseqüência mais óbvia disto é que o leitor torna-se prisioneiro de um pesadelo sórdido ao extremo, onde nenhum detalhe lhe é fornecido sem antes passar pelo olhar e julgamento do amargo narrador.

É sabido que o coveiro não costuma exigir muito para tecer comentários impiedosos a respeito da pessoa alheia, e o fato de estar confinado num presídio, esbarrando diariamente em verdadeiros cancros venéreos em forma de gente, é de grande contribuição para explosões de ódio e da mais pura violência. Assassinos de crianças, suicidas, viciados em drogas, satanistas, funcionários corruptos e fanáticos religiosos são alvos de deprimentes dissecações psicológicas, intercaladas pelos habituais e ambíguos desvarios do protagonista (serão meras alucinações ou espíritos que vieram dar o troco?), sendo o exagero de determinadas situações contrabalançado por detalhes que indicam um contexto muito real e palpável: gírias, códigos, cenários, hábitos e substâncias como a Maria-Louca aparecem aqui e acolá, elementos de um notável trabalho de pesquisa que passa longe do mero didatismo. Por fim, seria de uma tremenda injustiça não mencionar a magnífica arte de Samuel Casal: expressionista, suja, moderna e estilizada, em alguns momentos maravilhosamente confusos beira à incompreensão; seu traço remete à paranóia kafkiana de Peter Kuper e a disposição dos quadros por vezes lembra a Sin City de Frank Miller, mas a presença mais importante é a daquele ingrediente inexplicável chamado estilo próprio.

Daniel Salomão Roque é fanático por quadrinhos e cinema. Colaborou fixamente com a Zingu! por 15 edições, das quais 12 com a coluna Tesouro dos Quadrinhos.



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