Dossiê José Mojica Marins
Quando os Deuses Adormecem
Direção: José Mojica Marins
Brasil, 1972.
Por Marcelo Carrard
Após concluir uma de suas obras-primas, Ritual dos Sádicos, José Mojica Marins deu continuidade ao experimentalismo alegórico, em plena ditadura militar, sofrendo as mais diversas perseguições da censura. Em 1971, com roteiro de Rubens Francisco Lucchetti, lança o clássico Finis Hominis. No ano seguinte, essa parceria se repete em um dos filmes mais raros e obscuros do Mestre Mojica: Quando os Deuses Adormecem - sem dúvida, um dos títulos mais poéticos da história do cinema brasileiro. O niilismo, o devaneio e as imagens alegóricas permeiam a trama em uma mistura de influências do Cinema Marginal e até do Cinema Novo. Porém, em um momento do filme, as coisas fogem do controle e caímos em um delírio assustador e selvagem.
É muito singular a constatação de como Mojica conseguiu criar um discurso cinematográfico próprio dentro do cinema alegórico/experimental que se fazia no Brasil, em tempos de censura do Regime Militar. Totalmente autodidata e sem uma formação acadêmica e intelectual de esquerda, como outros cineastas brasileiros da época – Julio Bressane, Rogério Sganzerla, Glauber Rocha, entre outros -, Mojica conseguiu construir uma pequena filmografia em que as influências do Cinema Marginal são latentes, aliadas ao seu universo mambembe e popular de improvisação. O radicalismo de seu discurso em Ritual dos Sádicos, Finis Hominis e Quando os Deuses Adormecem tem o mesmo impacto de clássicos como O Bandido da Luz Vermelha, mas foge das recriações dos maneirismos da Nouvelle Vague, principalmente das rupturas de Godard - um dos cineastas mais copiados do Cinema Novo. A figura do Zé do Caixão é uma alegoria forte, um observador do caos em que o país se encontrava, um país abandonado por deuses adormecidos.
A distribuidora independente norte-americana Something Weird, que lançou a obra de Mojica nos EUA, chegou a editar Quando os Deuses Adormecem em uma versão totalmente em P&B, tirando um pouco do impacto de sua mais notória seqüência, a do ritual de Quimbanda. Uma rara cópia em cores revela toda a sua beleza e crueldade em um momento único e antológico do cinema extremo. Um grupo de homens inicia seu transe, ao som do batuque cada vez mais intenso, em um ritual primitivo, cujo auge é a mutilação das galinhas. Cruel, brutal, hipnótico, esse momento do filme surge como um grito primal pela liberdade, ao mesmo tempo que é um mergulho aos abismos primitivos do paganismo. A montagem da cena lembra a proposta do “êxtase eisensteiniano”, desenvolvida por Glauber Rocha no filme Barravento, em que a edição acompanha o ritmo do transe dos membros de um ritual de candomblé na beira do mar. Mojica radicaliza essa proposta de Glauber e mergulha o espectador em um pesadelo de imagens abjetas e extremas.
Essa fase “experimental” de Mojica possui grandes qualidades artísticas, embora filmes como Finis Hominis estejam datados. Ritual dos Sádicos e Quando os Deuses Adormecem ainda conseguem transgredir e se comunicar com o público sem nunca deixá-lo indiferente.
Direção: José Mojica Marins
Brasil, 1972.
Por Marcelo Carrard
Após concluir uma de suas obras-primas, Ritual dos Sádicos, José Mojica Marins deu continuidade ao experimentalismo alegórico, em plena ditadura militar, sofrendo as mais diversas perseguições da censura. Em 1971, com roteiro de Rubens Francisco Lucchetti, lança o clássico Finis Hominis. No ano seguinte, essa parceria se repete em um dos filmes mais raros e obscuros do Mestre Mojica: Quando os Deuses Adormecem - sem dúvida, um dos títulos mais poéticos da história do cinema brasileiro. O niilismo, o devaneio e as imagens alegóricas permeiam a trama em uma mistura de influências do Cinema Marginal e até do Cinema Novo. Porém, em um momento do filme, as coisas fogem do controle e caímos em um delírio assustador e selvagem.
É muito singular a constatação de como Mojica conseguiu criar um discurso cinematográfico próprio dentro do cinema alegórico/experimental que se fazia no Brasil, em tempos de censura do Regime Militar. Totalmente autodidata e sem uma formação acadêmica e intelectual de esquerda, como outros cineastas brasileiros da época – Julio Bressane, Rogério Sganzerla, Glauber Rocha, entre outros -, Mojica conseguiu construir uma pequena filmografia em que as influências do Cinema Marginal são latentes, aliadas ao seu universo mambembe e popular de improvisação. O radicalismo de seu discurso em Ritual dos Sádicos, Finis Hominis e Quando os Deuses Adormecem tem o mesmo impacto de clássicos como O Bandido da Luz Vermelha, mas foge das recriações dos maneirismos da Nouvelle Vague, principalmente das rupturas de Godard - um dos cineastas mais copiados do Cinema Novo. A figura do Zé do Caixão é uma alegoria forte, um observador do caos em que o país se encontrava, um país abandonado por deuses adormecidos.
A distribuidora independente norte-americana Something Weird, que lançou a obra de Mojica nos EUA, chegou a editar Quando os Deuses Adormecem em uma versão totalmente em P&B, tirando um pouco do impacto de sua mais notória seqüência, a do ritual de Quimbanda. Uma rara cópia em cores revela toda a sua beleza e crueldade em um momento único e antológico do cinema extremo. Um grupo de homens inicia seu transe, ao som do batuque cada vez mais intenso, em um ritual primitivo, cujo auge é a mutilação das galinhas. Cruel, brutal, hipnótico, esse momento do filme surge como um grito primal pela liberdade, ao mesmo tempo que é um mergulho aos abismos primitivos do paganismo. A montagem da cena lembra a proposta do “êxtase eisensteiniano”, desenvolvida por Glauber Rocha no filme Barravento, em que a edição acompanha o ritmo do transe dos membros de um ritual de candomblé na beira do mar. Mojica radicaliza essa proposta de Glauber e mergulha o espectador em um pesadelo de imagens abjetas e extremas.
Essa fase “experimental” de Mojica possui grandes qualidades artísticas, embora filmes como Finis Hominis estejam datados. Ritual dos Sádicos e Quando os Deuses Adormecem ainda conseguem transgredir e se comunicar com o público sem nunca deixá-lo indiferente.