html> Revista Zingu! - arquivo. Novo endereço: www.revistazingu.net
Dossiê José Mojica Marins


O Despertar da Besta (Ritual dos Sádicos)
Direção: José Mojica Marins
Brasil, 1969.

Por Gabriel Carneiro

Ritual dos Sádicos é, talvez, o principal culpado da deterioração da carreira de José Mojica Marins no cinema. O cineasta estava no auge em 1969, quando o filme foi rodado e finalizado. Além do cinema, tinha um programa de TV bem sucedido e uma revista em quadrinhos. Mas, em 1969, a censura estava mais rigorosa: o AI-5 já havia sido outorgado, e a obra-prima de Mojica Marins não foi vista com bons olhos. O longa foi vetado e proibido de ser exibido nos cinemas, não importava o quanto os envolvidos recorressem na justiça. Mais uma vez durante a carreira, a alcunha de maldito foi-lhe dada. Os produtores da Boca do Lixo não queriam investir para o filme não ser exibido, era prejuízo demais. As fitas autorais de Mojica, que demonstravam mais ousadia e violência, corriam esse risco. Anteriormente, Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver e O Estranho Mundo de Zé do Caixão já haviam sofrido com a censura, tendo cenas cortadas e finais alterados. Tanto que, depois de Ritual dos Sádicos, Mojica fez apenas 4 ou 5 filmes realmente autorais entre os mais de 15 realizados na década de 70 e 80.

Ritual dos Sádicos eventualmente estreou, em 1983, sob o título O Despertar da Besta, quando a censura e o Regime Militar já estavam enfraquecidos, e a memória do filme já estava desgastada. Em 1978, o Mojica em busca de faturar com personagem, rodou Delírios de um Anormal, em que usa muitas cenas do filme de 1969, à época, inédito.

Triste constatar que o melhor filme de José Mojica Marins, um dos grandes gênios do cinema tupiniquim, tenha sido uma das razões de ter sido relegado a produções de pouco impacto e importância. Justamente porque Ritual dos Sádicos – e tratarei o filme como Ritual dos Sádicos, porque, como bem disse o roteirista R. F. Lucchetti, “besta é quem colocou o título O Despertar da Besta” – é um dos maiores libelos contra a caretice – e contra as drogas e o pensamento da juventude do final dos anos 60.

Nos poucos mais de 90 minutos do longa, vemos um desfile de barbarismos, de taras, de um forte instinto sexual, de assombrações, cenas perturbadoras, cores, cromatismo, ceticismo, revolta, criatividade, soberba, desejos, pessoas reprimidas, de sádicos. Pois ao momento que somos tragados para dentro da vivaz história de elucubrações intelectuais confrontadas pela selvageria da carne, só nos resta participar da orgia a que somos convidados.

Ritual dos Sádicos é isso, uma orgia de cenas impactantes, de histórias impressionantes, de crias. Dentro do filme, há três núcleos narrativos: o núcleo metalingüístico, em que é mostrado o processo de criação de José Mojica Marins; o núcleo de tempo presente, em que a tese de um psiquiatra é discutida; e o núcleo do tempo passado, em que as experiências do psiquiatra são relatadas.

Um psiquiatra (Sérgio Hingst) tem uma tese sobre o de tóxicos: eles liberam os mais primitivos instintos do ser humano, em especial, os sexuais. Ao lançar o livro, é confrontado num programa de televisão por alguns reacionários (nada menos que a galera do Cinema Marginal: João Callegaro, Carlos Reichenbach, Maurice Capovilla e Jairo Ferreira). José Mojica Marins, como ele mesmo, só observa a tudo. O psiquiatra conta então da experiência que fez com quatro viciados. Ele os fez escolher o que mais lhe impactara entre um filme do Zé do Caixão, uma peça de Zé Celso e uma festa hippie. Zé do Caixão foi escolhido e neles foi injetado LSD.

O roteiro assinado por Rubens Francisco Lucchetti é um grande achado. A história flui com toda sua carga lisérgica, usando e abusando de flashbacks e desvios temporais para caracterizar a anedota do médico. Nisso, são apresentados diferentes fetiches sexuais condenados pela sociedade conservadora, tal qual escatologia, uso de objetos como forma de estímulo, estupro, voyeurismo, entre outros. Talvez a cena mais chocante entre essas seja a de escatologia, que impacta pela sugestão. Mojica precisava abrir o filme de um modo cativante e que nos prendesse a atenção. Logo após a apresentação e os créditos, vemos vários homens horrendos observando uma bela mulher que começa a se despir. Em seguida, quando a mulher já está nua, o grupo de tarados desembrulha vagarosamente um pacote. De lá, tiram um penico velho e entregam a ela, como se fosse um objeto sagrado. Ela então se senta nele. Corta. Vemos o médico, e os debatedores revoltando-se com o relato.

Mojica já sabia de sua importância e sua relevância no cenário nacional, por isso fez um filme que vai discutir as influências, os efeitos e as polêmicas por trás de seu nome e de sua cria, Zé do Caixão. Para isso, vale-se da gama multimediática que carregavam algo de si, à época de realização da película. Já no início do filme, paira uma dúvida. O começo é o mesmo do filme O Estranho Mundo de Zé do Caixão. Em seguida, podemos provar um pouco da arte gráfica de Nico Rosso, que permeia os créditos iniciais, com os quadrinhos O Estranho Mundo de Zé do Caixão. No decorrer, quando a experiência é revelada, a causa surge à tona. A personagem de Hingst assistira ao programa televisivo Quem tem Medo da Verdade, da TV Record, com Mojica. Nele, Mojica sai vitorioso e absolvido. Em seguida, há uma overdose de Zé do Caixão: quadrinhos na banca, pôsteres dos filmes O Estranho Mundo de Zé do Caixão e de Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver, além de trechos do último filme.

Em 1969, Mojica já sofria com a dualidade de seu mito. Aos olhos do público, era Zé do Caixão. Não à toa, contrasta esse enorme merchandising com a frase “Zé do Caixão ficou no cemitério, você fala com José Mojica Marins”, quando um dos reacionários se dirige a ele e o chama de Zé do Caixão. Até os dias de hoje, vemos o mesmo, vide a repercussão de Encarnação do Demônio.

Ao passo em que LSD é injetado nos quatro viciados (entre eles, o cineasta Ozualdo Candeias e o parceiro Mário Lima), quatro diferentes realidades ilusórias são compostas. O mundo de Candeias é monocromático, alaranjado, e Zé do Caixão representa a ordem. Ele domina as mulheres como seres subservientes, a base de chicotadas. Mário Lima entra num cenário fantasmagórico, repleto de anomalias, pessoas fantasiadas, e caras de bundas (literalmente!). A jovem observa e sofre torturas. Enquanto para a senhora, ele é “o protetor dos infortunados”, que sempre a defende, e que julga a mulher como ser superior.

A única seqüência colorida do filme não poderia não remeter ao inferno de Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver. O efeito do ácido em Ritual dos Sádicos é muito similar, lembra de fato o inferno tal como visto por Mojica, repleto de cores quentes e imagens assustadoras e bestiais, condensando o lúdico, ao horripilante. Ao som de gritos e gemidos, constrói-se uma atmosfera viciante, onde a barbárie humana é liberada pela tortura, pela violência física, pelo sangue jorrado, e pelas identidades macabras. Como um pesadelo dantesco, uma cena perturbadora e veemente, o terror mostrado de fato é o psicológico, visto que tudo é uma forma de compreensão das mentes drogadas. Cada rito, cada viagem, é exultante em ver como o ser humano se comporta diante de diferentes situações, e uma forma de soltar os demônios interiores. Não há melhor exemplo disso do que o segmento vivido por Lima.

O filme termina com uma breve discussão entre Hingst e Mojica. Ele pergunta ao cineasta de onde ele tira as idéias para seus filmes. Mojica pega as anotações dele e mostra: Sádicos. Num processo metalingüístico, das redes da criação, vemo-lo então caminhando, observando cenas iguais as que foram descritas pelo médico. A câmera excepcional de Giorgio Attili para a sua frente, e Mojica ri para/de nós, a classe média paulistana. As subversões temáticas e formais são então explicitadas na construção fílmica. O que vimos foi a mais pura realidade dentro da ficção, em que Mojica e Zé do Caixão são e não são a mesma pessoa. Sem didatismos, cria-se um dos maiores filmes do cinema nacional. Mojica sacrificou sua carreira, pelo menos o fez por algo que realmente valeu a pena em termos artísticos.

Do prólogo, nasce o fim: o nosso mundo é estranho, tanto quanto o de Zé do Caixão.



<< Capa