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Dossiê José Mojica Marins

SUBGÊNEROS OBSCUROS...

HORROR À BRASILEIRA

Por Laura Cánepa, especialmente para a Zingu!

Além, muito além do além do Zé do Caixão...

O coveiro psicopata criado por José Mojica Marins, em 1963, no filme À Meia-Noite Levarei Sua Alma, é, sem dúvida, o mais famoso personagem do horror cinematográfico brasileiro – e um dos mais populares da história do nosso cinema. Mas, ao contrário do que se divulga por aí, Mojica está longe de ser o único cineasta brasileiro a fazer experiências com o horror – gênero que, desde os anos 1930, quando se tornou um dos principais filões do cinema hollywoodiano, também passou a ser um dos mais populares em terras tupiniquins, quase sempre em suas versões estrangeiras, mas também, eventualmente, em suas expressões nacionais.

O que faz o cinema de horror brasileiro parecer um fenômeno tão raro é uma conjugação de fatores lamentáveis: em primeiro lugar, a histórica rejeição, por parte da cultura nacional erudita, ao gênero horror, visto como sinal de atraso por suas relações com um imaginário muitas vezes próximo das origens “selvagens” da nossa população; em segundo lugar, o registro deficiente da tradição horrorífica nacional, freqüentemente restrita à literatura oral ou a manifestações escritas tidas como de menor importância, como o cordel, a literatura pulp, o relato jornalístico sensacionalista etc; em terceiro lugar, o desprezo, disseminado entre os historiadores brasileiros, pelo cinema popular, especialmente quando este tenta emular os cânones “de gênero” consagrados por Hollywood – o que inclui a maior parte das experiências nacionais em relação ao horror.

Por esse conjunto de fatores, os registros históricos acabam escamoteando a existência do horror no cinema brasileiro. Antonio Leão da Silva Neto, por exemplo, em seu estupendo Dicionário de Filmes Brasileiros – Longa-Metragem (2002), contabiliza que, até o começo do ano de 2002, 3.415 filmes de longa-metragem já haviam sido finalizados no país e, dentre eles, apenas 20 foram classificados como sendo “de horror” ou “de terror”. O número revela, a princípio, uma presença inexpressiva. Mas, numa leitura mais aprofundada, percebe-se que o autor utilizou, em grande parte das vezes, a classificação de gênero usada pelos próprios realizadores dos filmes, e estes nem sempre identificavam suas obras de acordo com a classificação de gênero que usamos hoje. Assim, para encontrar a cinematografia brasileira de horror, não adianta ler a história superficialmente: é a partir das sinopses dos filmes e de suas notas de produção, por exemplo, que se pode começar a procurar nosso cinema de horror, inclusive no próprio dicionário de Leão, que tem sido uma das principais fontes de pesquisa dos novos historiadores do cinema nacional. Usando-se essa “metodologia”, encontram-se, entre os filmes reunidos pelo dicionarista, mais de uma centena de títulos claramente ligados ao horror que não foram identificados dessa maneira, e também nunca foram reunidos e examinados sob esta perspectiva. Da mesma forma, não adianta ir às coleções de filmes brasileiros apenas em busca de títulos óbvios: é necessário um verdadeiro trabalho de garimpo para que se percebam indícios do horror em nossos filmes, podendo estar dispersos em tramas de outros gêneros ou disfarçados por trás de termos menos precisos, como mistério, suspense ou crime.

Quando olhado por esse ângulo, o quadro do horror no cinema nacional muda significativamente, com títulos variados que nos remetem a experiências industriais e estéticas tão diferentes como o cinema dos estúdios paulistas dos anos 1950, as chanchadas dos anos 1930/1940, o cinema erótico dos anos 1960/1970, o cinema pornográfico dos anos 1980, as obras pouco conhecidas de autores consagrados ao longo dos últimos 60 anos, além de todo um universo cultural de produções independentes que nem sempre é referido nos estudos de cinema brasileiro.

Basicamente, é possível dizer que existem seis ou sete categorias nas quais se pode encaixar os filmes de horror brasileiros, que somam cerca de 150 ao longo de nossa história (número obtido através de pesquisas mais recentes relativas ao tema: a que se encontra em minha tese de doutorado, defendida na Unicamp em 2008, e também os levantamentos feitos pelos pesquisadores Carlos Primati, Lúcio Piedade e César Coffin Souza, que, cada um a seu modo, chegaram mais ou menos aos mesmos filmes).

A primeira dessas “categorias” do horror cinematográfico nacional, como não poderia deixar de ser, diz respeito ao trabalho de Mojica, único cineasta brasileiro que contribuiu autoralmente para a história do cinema de horror mundial, inaugurando tendências e dando ao gênero um tratamento deliberadamente pessoal e distintivo que será longamente abordado nesta edição da Zingu!

A categoria seguinte abrange diversos títulos, realizados por diferentes cineastas e em várias épocas, de acordo com os parâmetros tradicionais ou “clássicos” das histórias de horror, concentrados mais na criação de atmosferas ambíguas do que na exposição detalhada e explícita dos fatos horroríficos. A prática teve início nos filmes góticos femininos dos estúdios paulistas nos anos 1950 (como Caiçara, Meu Destino é Pecar, Veneno e Estranho Encontro), foi retomada de maneira autoconsciente por importantes autores do cinema brasileiro nos anos 1970 (em particular Walter Hugo Khouri e Carlos Hugo Christensen, que realizaram, respectivamente, O Anjo da Noite, As Filhas do Fogo, A Mulher do Desejo – A Casa das Sombras e Enigma para Demônios) e retornou nos anos 1980 em filmes erótico-fantásticos como Estrela Nua e Espelho de Carne. A tendência também pode ser encontrada em obras praticamente perdidas como Alameda da Saudade, 113 (1951) e Phobus – Ministro do Diabo (1965), ambas realizadas de maneira absolutamente marginal em cidades fora do eixo Rio-São Paulo (no caso, Santos e Belo Horizonte).

Outro grupo importante de filmes brasileiros ligados ao horror é o dos filmes paródicos, que usaram os clichês do gênero como fonte para brincadeiras anárquicas e metalingüísticas, num paradigma chanchadesco, ligado às comédias populares, que se desdobrou em diversos estilos e correntes, como o cinema marginal (em obras como Memórias de um Estrangulador de Loiras e Prata Palomares) e o terrir de Ivan Cardoso, estando presente também na filmografia de cineastas como Amácio Mazzaropi (em O Jeca Contra o Capeta), Flávio Migliaccio (O Caçador de Fantasma), e em algumas chanchadas menos conhecidas, como O Jovem Tataravô e Os Três Vagabundos.


O Jeca contra o Capeta

Já a categoria mais numerosa dos filmes de horror brasileiros se refere aos que aderiram a uma estética mais chocante e mesmo escandalosa, freqüentemente articulando o gênero horror ao sexploitation e ao teenexploitation. Esses filmes, ligados, em sua maioria, ao ciclo da pornochanchada, mas também presentes eventualmente nos anos 1950 e no cinema da retomada, dialogaram com uma tendência verificada em vários países do mundo voltada à realização de filmes de horror divulgados de maneira sensacionalista, com títulos sugestivos de temas polêmicos e extremamente violentos. Entre as dezenas de filmes que poderiam ser citados, podem-se destacar: O Signo do Escorpião, Amadas e Violentadas, Excitação, A Reencarnação do Sexo, O Castelo das Taras, Liliam – A Suja, A Virgem da Colina, A Cobiça do Sexo, O Estripador de Mulheres, O Matador Sexual, Aqui, Tarados! (no caso, no episódio O Pasteleiro, um raríssimo exemplo de splatter movie tupiniquim), Shock!, Olhos de Vampa, entre outros.


Amadas e Violentadas

Além dessas grandes categorias, há também outros conjuntos menores de filmes, como os baseados na literatura espírita nacional (entre os quais o impressionante Joelma – 23º Andar), os filmes de lobisomem (como Lobisomem – O Terror da Meia-Noite, Quem Tem Medo de Lobisomem? e o recente Lobisomem na Amazônia), os longas infantis que dialogaram com o universo do horror (como Pluft – O Fantasminha), e quase uma dezena de produções de horror estrangeiras realizadas no Brasil nos últimos 50 anos, entre as quais os impagáveis Curuçu – A Besta do Amazônia, Macumba Love, O Peixe Assassino, Demônios Negros e o recente Turistas.

Apenas nessa rápida descrição, já se percebe o quanto o universo do horror no cinema brasileiro é rico e tem traços próprios, seja como gênero “puro”, seja como híbrido. E, ainda que esse conjunto seja muito heterogêneo, algumas observações são possíveis. A primeira é relativa ao grande número de obras. Tal número, muito maior do se supõe ao observar-se a historiografia do cinema brasileiro, atesta a existência de um espaço estimulante para o debate sobre temas variados, como relações entre o cinema de horror e algumas tradições orais nacionais; a representação das religiões afro-brasileiras nos filmes de horror; a relação entre erotismo e horror no cinema brasileiro; o potencial sensacionalista-religioso dos filmes espíritas, entre várias outras possibilidades.

A segunda observação, que exige um olhar mais atento aos registros históricos, diz respeito à popularidade de alguns filmes brasileiros ligados ao gênero horror, na época em que foram feitos. Por exemplo, entre os filmes citados, só os que tiveram mais de 500 mil espectadores entre 1970 e 2005 (segundo dados disponíveis no site da Ancine), já trazem números nada desprezíveis em termos das bilheterias nacionais, perfazendo uma média de um milhão de espectadores por filme – e isso sem considerar-se os exemplares do horror no cinema infantil. Totalizados, os números dão conta de um público de mais de 20 milhões de espectadores para apenas 20 dos cerca de 150 filmes brasileiros relacionados ao horror – número expressivo no panorama do nosso cinema, indicando que, seja pela via direta do consumo do cinema de horror, seja pela aceitação do horror como elemento de filmes de outros gêneros (comédias, paródias, dramas eróticos etc), trata-se de um tema relativamente popular nas telas do cinema nacional.

Uma terceira consideração está voltada à relação desses filmes brasileiros com os repertórios nacional e estrangeiro de horror. Pois, de um lado, é facilmente perceptível que o vasto manancial horrorífico brasileiro de bois-tatás e mulas-sem-cabeça está ainda bem longe das telas do cinema. Mas é curioso observar que, exceto no caso dos filmes de Ivan Cardoso e de algumas comédias de horror cariocas, os filmes de horror brasileiros não se interessam pelos monstros clássicos do horror (como vampiros e múmias), preferindo uma espécie de interseção dos repertórios locais e “importados”, escolhendo representar os elementos horroríficos consagrados internacionalmente que também fazem sentido nas histórias de horror tradicionais contadas aqui: temas como a assombração, a possessão e a telecinese (representada pelos rituais de “magia negra”, traduzidos, de forma geralmente preconceituosa, em encenações de rituais específicos de religiões afro-brasileiras, como a macumba e o candomblé) mostram que nosso cinema de horror procurou, sim, explorar assuntos e figuras que fazem parte da tradição horrorífica nacional, ainda que tenha se inspirado na cinematografia estrangeira.


O Jovem Tataravô

Uma última consideração deve abordar o tratamento dado por nossa historiografia a essas produções. Jogadas na “vala comum” de seus ciclos históricos, obras como O Jovem Tataravô, Meu Destino é Pecar, Excitação, O Pasteleiro, Espelho de Carne e dezenas de outras podem não passar de pequenas curiosidades, até malsucedidas em suas pretensões como comédias musicais, melodramas rurais ou urbanos, adaptações literárias, pornochanchadas dramáticas, dramas psicológicos etc. No entanto, se observarmos essas mesmas obras sob o prisma de tentativas de se estabelecer um gênero de cinema fantástico e de horror no Brasil, elas passam a ter um valor histórico e estético diferente, marcando os caminhos trilhados pelas variadas tentativas de construção de um gênero até hoje inacabado em nosso cinema. Afinal, se nunca tivemos uma indústria de cinema suficientemente sólida para manter por longo tempo uma organização da produção por gêneros, e, por isso, nunca tivemos o que se poderia chamar de um cinema de horror brasileiro constituído como tendência industrial e comercial de longo prazo, isso não significa que filmes de horror não tenham sido feitos, ou que o horror não tenha estado presente no nosso cinema. Ao reconhecer-se sua existência, além de dar-se espaço para uma rica produção nacional, também se revelam alguns elementos importantes para a compreensão da cinematografia brasileira, sobretudo em suas manifestações mais populares, religiosas e violentas.

Agradecimentos: a Carlos Primati, Lúcio Piedade, Rodrigo Pereira e Remier Lion

Laura Cánepa é jornalista, professora da Unisinos, editora especial do Cinequanon e doutora pela Unicamp com a tese Medo de Quê? - Uma história do horror nos filmes brasileiros, que originou o blog Medo do quê?



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