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Dossiê José Mojica Marins

Visionário ou copiador?

Por Felipe M. Guerra, especialmente para a Zingu!

Uma das coisas mais assustadoras de Encarnação do Demônio, o novo filme de horror dirigido por José Mojica Marins, é a quantidade de abobrinhas escritas sobre a produção - inclusive, pasmem, por alguns renomados e “esclarecidos” jornalistas e críticos de cinema.

Além da inevitável pecha de “trash” injustamente atribuída à obra (sendo que o sentido da expressão varia conforme o gosto do freguês, mas sempre longe do seu significado original), alguns desavisados escreveram/falaram que Mojica teria se inspirado no moderno cinema de horror vindo dos Estados Unidos e do Oriente ao dirigir o filme. Em palavras menos delicadas, é um copiador!

Não sei se Mojica viu filmes como O Albergue (Jogos Mortais, pelo menos, ele disse que assistiu), mas não vejo como pode um cineasta que praticamente iniciou a onda de violência explícita no cinema de horror ter se inspirado no chamado “torture porn” - termo pejorativo que designa estas produções atuais focadas no excesso de violência, uma grande bobagem, pois filmes assim sempre existiram. Mas é exatamente isso que tais críticos desavisados andam cacarejando: Mojica vendeu-se à "torture porn" para buscar uma bilheteria maior.


O Albergue

Ora, pelo menos 40 anos antes de Eli Roth despedaçar seus jovens bobões em O Albergue e muito antes de Jigsaw torturar “pecadores” com suas armadilhas criativas da série Jogos Mortais - que, por sinal, também tem paralelo anterior no dr. Phibes, interpretado por Vincent Price; ou seja, nem é novidade -, Mojica já filmava pessoas sendo torturadas e despedaçadas nos dois filmes iniciais da trilogia agora fechada com Encarnação do Demônio: À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964) e Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1966).

Peguemos apenas À Meia-Noite Levarei Sua Alma. Num filme de 1964, duas décadas antes de Jason e Freddy transformarem o esquartejamento de pessoas em esporte, Mojica já estava filmando Zé do Caixão decepando os dedos de um homem, furando os olhos de outro, mutilando o rosto de um terceiro, e por aí vai. Tudo mostrado em closes, por mais baratos que fossem os efeitos de maquiagem.

Isso, lembrando, no longínquo ano de 1964. Quantos filmes do mesmo ano, ou da mesma década, tinham violência explícita? Hoje, Mojica é considerado um dos precursores do “gore” (termo que designa sangue e tripas em filmes). O primeiro filme gore "oficial" seria o japonês Jigoku (Inferno), de Nobuo Nakagawa. E o norte-americano Banquete de Sangue, de Herschell Gordon Lewis, outro que usa e abusa de mutilações explícitas, foi feito apenas um ano antes de À Meia-Noite Levarei Sua Alma, em 1963.


Banquete de Sangue

Quer dizer que Mojica viu estes filmes e se inspirou para colocar violência explícita no seu? Negativo. Se hoje o cara pode baixar um filme na internet no dia seguinte ao seu lançamento, é preciso lembrar que, nos anos 60, uma produção demorava pelo menos um ano para chegar ao Brasil - isso quando chegava. Duvido que Mojica sequer tivesse ouvido falar de Jigoku ou de Banquete de Sangue ao resolver decepar dedos e furar olhos. Detalhe: filmou essas barbaridades quatro anos antes de A Noite dos Mortos-vivos (1968), um dos cânones do cinema violento da década.

Ainda dentro deste raciocínio, e indo um pouco mais além na obra de Mojica, chegamos a uma obra-prima chamada O Estranho Mundo do Zé do Caixão, que é de 1968. Não perca as contas: isso é pelo menos 35 anos antes de Jogos Mortais, O Albergue, O Cativeiro e outros “torture porn” (argh, como eu odeio este termo!).

Pois neste longa-metragem dividido em três episódios, o último, Ideologia, é um festival de tortura, sadismo e perversão que ensinaria umas boas lições ao Jigsaw e sua turma. Décadas antes da “torture porn”, Mojica já mostrava torturas escabrosas (envolvendo ácido, canibalismo e até agulhas reais atravessadas na pele) e outras elaboradas (como a mulher deixada tão sedenta ao ponto de beber o sangue do marido para sobreviver). Novamente, tudo em detalhes: a garganta é furada em close, os pratos com mãos, pés e cabeças decepadas devorados pelos canibais são filmados em close, e por aí vai... Outro detalhe: canibalismo no cinema anos antes do clássico ciclo italiano de filmes de canibais, eternamente marcado pelo clássico Cannibal Holocaust (1980), de Ruggero Deodato.

Só estes argumentos já jogam por terra a hipótese de Mojica ter “copiado” elementos da “torture porn” ianque em Encarnação do Demônio, mas infelizmente os lunáticos que defendem esta teoria insistem, batendo pé que a cena em que um policial é suspenso por ganchos cravados nas costas (de verdade, diga-se passagem) é puro Jogos Mortais. Primeiro: nunca vi suspensão em Jogos Mortais. Segundo: o western Um Homem Chamado Cavalo (1970) é anterior a Jogos Mortais e já mostrava o Richard Harris suspenso por ganchos. Será que também é “torture porn”?

Ah, e a tal cena do rato entrando na vagina de uma mulher, que muitos também consideram “torture porn”, já estava no primeiro roteiro escrito por Mojica para Encarnação do Demônio, em 1966, sabia? Se não sabia, não se sinta mal: muitos críticos e jornalistas desavisados também não sabiam. Mas, mesmo que não estivesse naquela primeira versão do roteiro, tal cena de tortura animal não teria nada a ver com tendências contemporâneas, considerando que o escritor norte-americano Brett Easton Ellis já havia descrito cena semelhante em seu chocante best-seller American Psycho, que é do começo dos anos 90.

Mas vamos adiante: os mesmos críticos/jornalistas que viram “torture porn” em Encarnação do Demônio alegam que o filme teria sido bastante influenciado pelo cinema oriental de horror. Motivo: as aparições dos fantasmas, em preto-e-branco, das vítimas dos outros filmes (um toque genial da produção, diga-se de passagem). Teoricamente, seria uma “citação” aos fantasminhas cabeludos dos filmes orientais.

Enquanto me recupero do meu ataque de riso, peço para que o leitor puxe da memória À Meia-Noite Levarei Sua Alma e Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (sim, aqueles filmes do Mojica feitos nos anos 60, bem antes da popularização dos fantasminhas orientais em meados da década de 90...).

Pois em ambos, pelo menos 30 anos antes de Ringu, Ju-On e outros filmes orientais com fantasmas amargurados, o pobre Zé do Caixão já era assombrado por entidades do outro mundo. No final de À Meia-Noite Levarei Sua Alma, principalmente, Mojica teve o maior trabalho para colar purpurina nos frames da película para criar a “aura fantasmagórica” ao redor do ator Nivaldo Lima, uma das vítimas que voltava do além para assombrar o Zé do Caixão. Já Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver tem uma aparição tão apavorante de um espectro magérrimo (interpretado por um figurante apropriadamente batizado de “Graveto”) que faria Sadako, Kayako e outras fantasminhas orientais correrem para se esconder debaixo da cama!

Isso quer dizer que o brasileiro José Mojica Marins, por ter feito tudo isso antes que os outros, teria inspirado os realizadores que vieram depois? Ora, quem sabe? Existe até uma lenda que diz que a luva de navalhas do Freddy Krueger em A Hora do Pesadelo (1984) teria sido inspirada nas longas unhas do Zé do Caixão. Duvido que isso seja verdade (será que Wes Craven conhece o Zé?), mas seria no mínimo um motivo de orgulho o fato de um vilão tupiniquim ter inspirado um dos ícones do horror oitentista.

Também acho que Mojica dificilmente inspirou Eli Roth, os caras da série Jogos Mortais ou outros cineastas contemporâneos, embora Rob Zombie, fã declarado do diretor brasileiro - foi visitá-lo em São Paulo durante uma turnê da sua ex-banda, White Zombie -, possa ter tirado das cenas do inferno de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver algumas idéias para filmar o final do seu A Casa dos Mil Corpos (2003).


Jogos Mortais 3

Não dá para saber onde estão as influências do brasileiro no cinema de horror internacional, ainda mais considerando que seus filmes chegaram tardiamente aos Estados Unidos (somente nos anos 90, através do selo Something Weird, logo se tornando “cult” por lá). Mas é fato que o homem é mais respeitado fora do Brasil, tendo inclusive participado com grande destaque de festivais de cinema fantástico na Europa no auge de sua carreira (anos 70).

Por aqui, Zé do Caixão inspirou inúmeros cineastas, "profissionais" ou de fundo de quintal. Nos anos 60-70, por exemplo, virou queridinho da turma do Cinema Marginal (Rogério Sganzerla foi um de seus fãs confessos) e do Cinema Novo (era amigão de Glauber Rocha). Outro fã, Ivan Cardoso, levou a paixão pelo trabalho de Mojica às telas ao assinar um documentário sobre o mestre (O Universo de José Mojica Marins, de 1978); depois, em seu longa-metragem de estréia (o já clássico O Segredo da Múmia), escalou o lendário Zé do Caixão para uma participação especial como um arqueólogo moribundo.

Mas é fora do cinemão comercial que se percebe a marca indelével do personagem. Pelo menos dois assassinos sádicos de filmes amadores são baseados no agente funerário criado por Mojica, inclusive na forma de se vestir: Toninho do Diabo, interpretado pelo paulista Antônio Aparecido Firmino em filmes como Caçador de Almas, e Boni Coveiro, criado pelo catarinense Fabiano Boni em produções como O Mensageiro das Trevas. Este último, por sinal, surgiu para participar de um concurso nacional promovido pelo próprio Mojica para escolher o substituto de Zé do Caixão, em meio aos anos 90 - e que seria uma farsa para que o (então) decadente cineasta faturasse uns trocados.

O que se sabe com certeza é que Mojica é um diretor visionário, muitos anos a frente do seu tempo. Seja no uso da violência explícita, das torturas, do canibalismo ou mesmo do uso de elementos religiosos para incomodar o espectador. Imagine você ter coragem de mostrar um personagem comendo carne na sexta-feira Santa em plenos anos 60, quando os padres praticamente mandavam nas pequenas cidades, ainda mais no maior país católico do mundo (Mojica fez isso, em À Meia-Noite Levarei Sua Alma). Tem que ter coragem também para mostrar um sujeito tendo o rosto mutilado com a coroa de espinhos de uma imagem de Jesus Cristo, para colocar um personagem ateu que blasfema contra Deus, tudo isso antes de filmes gringos, como O Exorcista (1973), enveredarem pelo mesmo tema espinhoso.

Enfim, nosso José Mojica Marins, este gênio injustamente visto como piada pela maior parte da nação, é tão visionário e a frente do seu tempo que seu novo filme, completando uma trilogia iniciada há 40 anos, é visto por muitos como uma resposta ao “terror moderno”, quando na verdade está repleto dos mesmos elementos que o cineasta utiliza desde os anos 60. Quer dizer: lá atrás ele já estava lançando a moda, e agora seus conterrâneos dizem que o copiador é ele!

É como eu disse: Encarnação do Demônio pode até ter seus momentos, mas assustador mesmo é a falta de cultura desse povo (e dessa imprensa).

Felipe M. Guerra é cineasta, diretor dos longas Canibais & Solidão e Entrei em Pânico ao saber o que vocês fizeram na Sexta-Feira 13 do Verão passado, e articulista e crítico do portal especializado em cinema de horror Boca do Inferno.



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