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Dossiê José Mojica Marins

O Profeta do Lixo

Por Gabriel Carneiro

Hoje em dia, ele só tem uma longa unha em seu polegar esquerdo, mas sua imagem se construiu com dez “putas unhas desse tamanho”, capa preta, barba espessa e cartola. José Mojica Marins, aos 72 anos, e com filme nos cinemas depois de 20 anos, não podia estar mais alegre – quer dizer, uma bilheteria maior ajudaria. Na telona, a imagem é a mesma que o marcou, o coveiro sádico Zé do Caixão.

O criador confunde-se com criatura – característica do horror, talvez: Dr. Jekyll e Mr. Hyde, Frankeinstein... -, e nisso não há dúvida. Zé do Caixão é a benção e a maldição de José Mojica Marins. Se não existisse o personagem, muito provavelmente não seria tão comentado e lembrado hoje, a ponto de ter se tornado parte do folclore urbano. Encarnação do Demônio, última parte da trilogia de Zé do Caixão, é a retomada do cineasta após 20 anos sem filmar e 30 sem fazer um projeto autoral. Aliás, foram 42 anos desde o segundo episódio da trilogia, Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver. Em compensação, é esse o nome que carrega desde que criou o personagem, em 1963, para o filme À Meia-Noite Levarei sua Alma. Infelizmente, o nome de Mojica é preterido pelo de Zé do Caixão, e a imagem auto-paródica que criou na televisão para sobreviver é motivo de riso e desrespeito.

“Confundem-me com Zé do Caixão, mas acho que as pessoas vão aprender a pôr no lugar criador e criação. Lá fora, no exterior, ao menos, no primeiro mundo, todo mundo sabe diferenciar. Aqui, hoje, uns 10% ainda não diferenciam, mas no passado era pior. Uns 90% acreditavam que Mojica e Zé eram a mesma coisa”, conta José Mojica Marins. O peso de Zé do Caixão foi tão grande para seu criador, que fez um filme – Exorcismo Negro, de 1974 -, que fala justamente disso, do confronto entre ambos, numa forma de rivalizarem e medirem forças.

A referência ao exterior se dá pela explosão de seu cinema nos EUA, principalmente, nos anos 90, quando a distribuidora independente de filmes fantásticos, Something Weird, lançou boa parte de seus longas em VHS – assim, Zé do Caixão virou Coffin Joe, e Mojica tornou-se cult. Nos anos 70 e 80, já havia participado de importante festivais internacionais na Europa, como o de Sitges, na Espanha, local que novamente o receberá em outubro de 2008 para exibição de Encarnação do Demônio.

Mojica cresceu no cinema. Literalmente. Seu pai, Antônio Marins, gerenciou o Cine Santo Estevão, na Vila Anastácio (São Paulo/SP), durante boa parte da infância, e isso ficou gravado em sua mente. Aos 12, 13 anos, já fazia seus primeiros filmes amadores em Super-8. Ele os exibia na rua em troca de alguns trocados; os atores eram os vizinhos, e o cenário um galinheiro abandonado – as galinhas foram envenenadas por Mojica e João Português, companheiro de turma. Quando o cineasta fala que sua “religião é o cinema”, não está brincando. Não é à toa que começou a rodar seu primeiro longa profissional aos 18 anos, em 1954, num país com tradição nula em cinema, que tinha as chanchadas cariocas e os filmes da Vera Cruz (à época, falindo) como expoentes comerciais. Sentença de Deus nunca foi terminado, devido à morte da atriz principal e acidentes que ocorreram no percurso. O roteiro foi adaptado pela escritora Aldenoura de Sá Porto e virou livro.

Em 1958, finalmente conseguiu quem bancasse seu filme, e rodou A Sina do Aventureiro, um dos primeiros westerns brasileiros. O filme não fez sucesso comercial. Desesperado, procurou o padre Lopes, da Escola de São Luis – os clérigos convenceram a população interiorana a não verem sua estréia no cinema. Seguindo sugestões, fez Meu Destino em Tuas Mãos, um melodrama musical - outro fracasso comercial. Desistiu de seguir sugestões alheias, e foi rodar por conta própria, um filme sobre delinqüentes juvenis.

Geração Maldita nunca foi concluído, porque na noite de 11 de outubro de 1963 Mojica teve um pesadelo que mudaria seu futuro. “Eu sentei pra jantar, cansado, daí eu vi aquela figura de preto que me arrastava por um túnel. Tinha uma lápide com o meu nome e data de nascimento e de morte. A da morte eu não quis ver. Aí eu acordei, e já tava lá o pai de santo que minha esposa chamou, e disse: ‘tirei o diabo dele’. Eu falei que ninguém tirou o diabo, eu tinha tido uma premonição. Fui tomar banho e umas cinco da manhã já estava eu, aqui na Frederico Abranche, batendo na porta da minha secretária”, narra o cineasta. Assim surgiu o outro Zé – o do Caixão -, e o argumento de seu primeiro longa de terror, À Meia-Noite Levarei Sua Alma.

Quanto à veracidade da história, não se questiona. José Mojica Marins sempre foi um habilidoso contador de histórias, e um excelente auto-promotor – o problema sempre foi se auto-promover exaustivamente e em qualquer lugar, mas sempre soube cativar. Assim como a história da origem do horror em sua vida - sua primeira sessão de cinema (e mais aterradora de todas), aos 4 anos, em que viu uma vagina com gonorréia em close (“É a coisa mais feia que eu já vi no mundo: uma vagina em pedaços, cheia de buracos, úmida, esquisita e saindo aquela gosma branca misturada com sangue”)-, que começou a ser divulgada - e sempre contada - por Mojica desde que se iniciaram os preparativos para o lançamento de Encarnação do Demônio, o cineasta-ator muito provavelmente fantasiou boa parte de suas histórias, de modo a ficarem mais grandiosas, engraçadas e chamativas. Isso já até virou filme. Pode-se pensar: mas filmes são carregados de ficção. Bem, o gênero documentário não deveria ser assim, mas quando o homem enfartou em 1976 e anunciou na mídia que aquilo era culpa da “máfia do cinema” – que existia só em sua cabeça -, ele fez questão de reencenar todo o percurso desses dias para o média-metragem documental Demônios e Maravilhas (ex-O Diabólico Reino de Zé do Caixão), que só foi finalizado em 1994, com uma narração em off porque o continuísta desapareceu com todas as falas – o primeiro filme dirigido por Marins a ter som direto foi Encarnação do Demônio.

O curioso é que enquanto fazia esse malabarismo promocional, o que lhe garantia bom público no cinema, e nenhum dinheiro no bolso – Mojica sempre foi péssimo com as finanças, arriscando maus negócios e gastando o pouco que fazia a torto e a direito –, a crítica sempre o rejeitou. Desde o início de sua carreira, quando seu cinema era chamado de primitivo e mal acabado, até meados dos anos 80, quando seu cinema estava ruim, justamente porque faltava o primitivismo de antes. A história se inverteu em 2008. Redescoberto com os VHS e com a alcunha de Coffin Joe, a crítica reavaliou seu trabalho. Encarnação do Demônio foi quase unânime quanto ao número de críticas positivas, levando sete prêmios no Festival de Paulínia, incluindo Prêmio da Crítica. O filme também foi exibido no Festival de Veneza, em mostra paralela. “Porra, nossa fita vai pra uma cidade romântica, puta que o pariu, pode fazer sucesso”, especulava o autor antes de partir. Em contrapartida, o público, com a imagem televisiva de Zé do Caixão – e do próprio Mojica - na cabeça, e a censura que elevou a idade mínima de entrada para maiores de 18 anos, fizeram com que o filme tivesse um desempenho medíocre para os R$ 500 mil gastos com publicidade e as 37 cópias.

“Não cabe culpar ‘as pessoas’ por esta confusão. Mojica é o principal responsável por tornar invisível essa barreira que os separa - ou deveria separar, pelo menos. O problema é que quando Mojica tem a oportunidade de ser levado a sério – seu encontro com o presidente Fernando Henrique Cardoso ou a cerimônia do Arquivo Nacional que lhe devolveu a cópia vetada de Ritual dos Sádicos, por exemplo – ele se traveste de Zé do Caixão, kit em punho, e aperta a descarga”, opina o pesquisador Carlos Primati.

Zé do Caixão, o personagem, tem duas facetas. O dos filmes, como protagonista, na trilogia À Meia-Noite Levarei Sua Alma, Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver e Encarnação do Demônio, ou como personagem secundário, caso de Ritual dos Sádicos, Exorcismo Negro e Delírios de um Anormal. E há o personagem televisivo, que roga pragas e se traveste de espetáculo, como em chamadas, programas humorísticos e coisas que o valha, ou como apresentador de filmes de quinta categoria no Cine Trash.

As aparições públicas vestido a caráter se tornaram a forma mais viável de sobreviver, afinal, o homem só sabe fazer cinema. Extrapolou, certamente, mas ele próprio já não se dissocia disso. Faz o que pode. Na década de 70 e 80, fez muito filme por encomenda, como ator e diretor. Alguns até assinou com um pseudônimo, J. Avelar. A necessidade financeira o levou a dirigir por encomenda, produzindo gêneros que lhe eram pouco usais, tais como comédias eróticas, vulgas pornochanchadas, filmes de aventura e de sexo explícito – sem contar as produções encomendadas de terror e faroeste.

No começo dos anos 80, o cinema foi invadido pela febre do cinema pornográfico. Muitas pessoas da área não se submeteram às pressões comerciais e saíram de mercado, outras tiveram de se adaptar e realizar a demanda. José Mojica Marins, como tantos outros, foi um deles. Nunca gostou, fez por que precisava. “Os filmes pornográficos foram feitos porque Mário Lima [cineasta, ator e produtor, parceiro de Mojica de longa data] disse que ia fazer o Encarnação se estourasse. Estourou, aí ele quis fazer outro, mais intelectual, e se fodeu. O que ganhou em uma fita, perdeu na outra. O cara é meu amigo... São 50 anos de amizade”, comenta. Mas não se arrepende de nada que fez, nem das participações especiais que fez na série Dr. Bartolomeu e a Clínica do Sexo, fitas pornográficas do começo dos anos 2000.

Mojica conta todas as histórias com muito humor. Reinventando-se a cada palavra com irreverência. A simbiose entre criador e criatura fica de lado na hora de o cineasta ser mais um pacato cidadão, um homem do cinema de folga. Dá autógrafos, posa para fotos, gesticula, conta achados, relata desejos... isso tudo faz parte da personalidade do homem que, na vida real, tem medo de baratas. É até um tanto difícil crer que aquele sujeito, com estatura inferior a 1,70 m de altura, cigarro na mão e barba grisalha, é, na verdade, o temível homem que grita e profetiza “O que é a vida? É o princípio da morte. O que é a morte? É o fim da vida. O que é a existência? É a continuidade do sangue. E o que é o sangue? É a razão da existência.”

Aliás, não é. Por trás do mito de Zé do Caixão, há um mito maior ainda, um mito que trabalhou mais de 50 anos a serviço do cinema, deixando em seu legado pérolas de nossa cultura – a trilogia do Zé, Ritual dos Sádicos, Mundo – Mercado do Sexo, D’Gajão Mata para Vingar, O Estranho Mundo de Zé do Caixão, e por aí vai -, e fez de tudo, por todos. José Mojica Marins é mito muito maior que Zé do Caixão simplesmente por tê-lo criado – e a mais um bocado de filmes que entraram para a história, sejam nos argumentos, sejam nos planos, sejam na atmosfera.



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