Cría Cuervos
Por Filipe Chamy
Cría cuervos
Direção: Carlos Saura
Espanha, 1976.
Crianças são marginalizadas no cinema.
Geralmente são mostradas como seres débeis mentais, de atitudes tão ridículas e mesquinhas quanto verdadeiros animais irracionais, ou são relegadas a um inadequado posto de adultos em miniatura, adotando ações e comportamentos que resumem suas existências a uma espera natural pela maioridade. Por isso filmes como Cría cuervos são tão importantes, porque provam que é possível sim retratar o mundo tão particular da vida infantil, com seus terrores, dramas, decepções, desapontamentos, esperanças, sonhos e demais características, sem escorregar em fórmulas falsas e conceitos pré-fabricados pela mídia oficial e pela sociedade em geral.
Cría cuervos não é simplesmente um tratado sobre uma época que todos vivemos, mas uma delicada trama montada sobre memórias que se fundem nos tempos — como esquecer as magistrais elipses que Carlos Saura utiliza, usando o espaço cênico de maneira cinematográfica para comportar os trechos fragmentados das recordações da protagonista? É acima de tudo um filme muito dolorido, como o são os filmes que entendem a infância: Os incompreendidos, Fanny e Alexander, O espírito da colméia... Este também protagonizado pela encantadora Ana Torrent.
É preciso dedicar um parágrafo a essa menina. Com seus imensos olhos, piscinas que transbordam sentimentos tão difíceis e conflitantes (ainda que harmônicos e coerentes), Ana Torrent possui uma força insuspeita para uma garotinha com suas proporções, e ao longo do filme comunica-se com tanto brilhantismo que ofusca qualquer outra pessoa com quem divida a tela, ou mesmo que apenas esteja na obra, pois seu talento e espontaneidade também marcam os momentos em que está ausente (mas ela está ausente em algum momento em Cría cuervos?), conseguindo ser doce mesmo em momentos de crueldade, tão típicos de certas manifestações pueris, ou permanecendo melancólica e sábia quando expressa tristeza com seu olhar, sorri timidamente, dança ¿Por qué te vas? com reservas no início e depois com a felicidade que se instala nas pequenas coisas que a motivam. É uma atuação verdadeiramente magnífica, provavelmente a mais completa já realizada por uma criança no cinema. O filme perderia quase toda sua identidade se outra menina o protagonizasse. Os maiores méritos pelos grandes acertos de Cría cuervos são, por direito e merecimento, de Ana Torrent.
Há outras meninas no filme, suas irmãs. Ambas têm uma persona bem definida, embora não tão exploradas quanto à de Ana (que é o nome de Ana Torrent no filme) — que, ao crescer, vira uma sofrida Geraldine Chaplin, observando com ternura e consciência seu passado, os anos tão atormentados que marcaram as brigas de seus pais, o gradativo esmorecimento de sua mãe, a condição deplorável de sua avó, as histórias da empregada, a tia rígida e as brincadeiras inocentes com suas irmãs, suas únicas companhias mais descontraídas (e constantes). As emoções da pequena Ana são as que as crianças de Peanuts, que figuram num pôster do quarto das meninas, desenvolveram ao longo das décadas da tira, emoções tão poderosas que emergem seu cotidiano em pensamentos sombrios, incompatíveis com a idéia estilizada e idealizada que as pessoas têm da infância e dos verdes anos da juventude. E são as que Calvin, da genial criação de Bill Watterson, também carregaria em seus debates solitários com Hobbes e com seu mundo introspectivo. É um mundo de influenciados e influenciadores, mas na verdade nada disso importa para a apreciação do belíssimo trabalho que é Cría cuervos, fundamentalmente um delicado quadro sobre uma menina e seu universo, quase nunca de alegrias, mas sim de experiências.
Direção: Carlos Saura
Espanha, 1976.
Crianças são marginalizadas no cinema.
Geralmente são mostradas como seres débeis mentais, de atitudes tão ridículas e mesquinhas quanto verdadeiros animais irracionais, ou são relegadas a um inadequado posto de adultos em miniatura, adotando ações e comportamentos que resumem suas existências a uma espera natural pela maioridade. Por isso filmes como Cría cuervos são tão importantes, porque provam que é possível sim retratar o mundo tão particular da vida infantil, com seus terrores, dramas, decepções, desapontamentos, esperanças, sonhos e demais características, sem escorregar em fórmulas falsas e conceitos pré-fabricados pela mídia oficial e pela sociedade em geral.
Cría cuervos não é simplesmente um tratado sobre uma época que todos vivemos, mas uma delicada trama montada sobre memórias que se fundem nos tempos — como esquecer as magistrais elipses que Carlos Saura utiliza, usando o espaço cênico de maneira cinematográfica para comportar os trechos fragmentados das recordações da protagonista? É acima de tudo um filme muito dolorido, como o são os filmes que entendem a infância: Os incompreendidos, Fanny e Alexander, O espírito da colméia... Este também protagonizado pela encantadora Ana Torrent.
É preciso dedicar um parágrafo a essa menina. Com seus imensos olhos, piscinas que transbordam sentimentos tão difíceis e conflitantes (ainda que harmônicos e coerentes), Ana Torrent possui uma força insuspeita para uma garotinha com suas proporções, e ao longo do filme comunica-se com tanto brilhantismo que ofusca qualquer outra pessoa com quem divida a tela, ou mesmo que apenas esteja na obra, pois seu talento e espontaneidade também marcam os momentos em que está ausente (mas ela está ausente em algum momento em Cría cuervos?), conseguindo ser doce mesmo em momentos de crueldade, tão típicos de certas manifestações pueris, ou permanecendo melancólica e sábia quando expressa tristeza com seu olhar, sorri timidamente, dança ¿Por qué te vas? com reservas no início e depois com a felicidade que se instala nas pequenas coisas que a motivam. É uma atuação verdadeiramente magnífica, provavelmente a mais completa já realizada por uma criança no cinema. O filme perderia quase toda sua identidade se outra menina o protagonizasse. Os maiores méritos pelos grandes acertos de Cría cuervos são, por direito e merecimento, de Ana Torrent.
Há outras meninas no filme, suas irmãs. Ambas têm uma persona bem definida, embora não tão exploradas quanto à de Ana (que é o nome de Ana Torrent no filme) — que, ao crescer, vira uma sofrida Geraldine Chaplin, observando com ternura e consciência seu passado, os anos tão atormentados que marcaram as brigas de seus pais, o gradativo esmorecimento de sua mãe, a condição deplorável de sua avó, as histórias da empregada, a tia rígida e as brincadeiras inocentes com suas irmãs, suas únicas companhias mais descontraídas (e constantes). As emoções da pequena Ana são as que as crianças de Peanuts, que figuram num pôster do quarto das meninas, desenvolveram ao longo das décadas da tira, emoções tão poderosas que emergem seu cotidiano em pensamentos sombrios, incompatíveis com a idéia estilizada e idealizada que as pessoas têm da infância e dos verdes anos da juventude. E são as que Calvin, da genial criação de Bill Watterson, também carregaria em seus debates solitários com Hobbes e com seu mundo introspectivo. É um mundo de influenciados e influenciadores, mas na verdade nada disso importa para a apreciação do belíssimo trabalho que é Cría cuervos, fundamentalmente um delicado quadro sobre uma menina e seu universo, quase nunca de alegrias, mas sim de experiências.