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Dossiê Reynaldo Paes de Barros

Pantanal de Sangue
Direção: Reynaldo Paes de Barros
Brasil, 1971.

Por Alexandre Aldo Neves, especialmente para a Zingu!

O Cinema rompe com os limites da realidade, proporcionando uma nova forma de rearticular e recriar os elementos que permeiam o nosso cotidiano. Na tela, são projetados os sonhos, as ilusões, os devaneios, a vida dentro de um plano, possibilitando um amplo jogo de escalas de espaço e tempo, destacando pequenos detalhes do cotidiano e minimizando fatos consagrados.

Apropriando-se desses elementos, o cineasta campo-grandense Reynaldo Paes de Barros, realizou em 1971 nas intermediações da cidade de Miranda – no então pantanal mato-grossense – um importante documento histórico, o filme “Pantanal de Sangue”, procurando evidenciar a formação de um imaginário sobre a região pantaneira, permeada por elementos ideológicos, culturais e políticos que contribuem no entendimento da complexa teia que envolveu os processos de construção das identidades territoriais que atualmente parametrizam a diversidade cultural do Estado de Mato Grosso do Sul, em meio aos estereótipos e os fundamentos da violência social, presentes de forma quase que pitoresca em outros filmes produzidos na região.

“Pantanal de Sangue” reflete um momento importante da produção cinematográfica da época na região, quando foram produzidas importantes obras de longa-metragem para a historiografia do Estado: “Caingangue – e a pontaria do diabo” (1973 - Dir.: Carlos Hugo Christensen); “Caçada Sangrenta” (1974 - Dir.: Ozualdo Candeias); “19 Mulheres e um Homem” (1977) e “Desejo Selvagem” (1979 - ambos dirigidos e produzidos por David Cardoso), além dos curtas e filmes documentais que serviam de veículo para promoção das potencialidades culturais e naturais da região.

Aparentemente, “Pantanal de Sangue” possui um roteiro e uma trama bem simples, que giram em torno da historia do protagonista José Neves (o lendário Francisco de Franco), sua esposa Ana (a musa Elsa de Castro) e o filho Zezinho (Jean Stefan), que tem por oponente o fazendeiro, grileiro de terras, Chico Ribeiro (o eterno cangaceiro Milton Ribeiro) que pretende ampliar suas terras, ainda que para isso tenha que saquear as terras de seu vizinho Felipe (Jorge Karan), ou mesmo dizimar a família de José Neves, criando em torno dessa chacina, o ponto crucial de toda a trama do filme.

Entretanto, essa simplicidade é apenas aparente. Aos poucos, questões importantes como a formação da estrutura fundiária brasileira, pontuada por grilagens, ausência do Estado e derrames de sangue, impulsionados pelas ambições dos fazendeiros e criadores de gado local e a luta pela sobrevivência, ajudam a configurar um cenário rústico, constituído por lugares abertos, paisagens exuberantes e, concomitantemente, insólitas, são formadoras de um sentimento de vacuidade e marginalização.

A paisagem local (planície pantaneira de inundação) se afirma como o ponto nodal da trama, por provocar o entrelaçamento entre o substrato concreto sob o qual se instala todo um conjunto de relações e interações, com o denominado “mundo vivido” (ou o espaço para a realização da vida), destacando os conflitos existentes entre os indivíduos e o lugar. O diálogo entre esses aspectos contribui na edificação da identidade local.

Nesse sentido, podemos afirmar que Reinaldo Barros arquitetou esta obra da nossa cinematografia a partir do lugar, um lugar único e de forte identidade, permeado pela presença de ritmos naturais e sociais (inerentes à região) bem equilibrados, mas que são abalados no ápice da trama, quando há o enfrentamento entre os vizinhos rivais.

A presença desses elementos identitários e das relações homem-ambiente, também podem ser evidenciados a partir da observação e interpretação do cartaz do filme, que foi idealizado pelo mestre das pin-ups, Luiz Benicio. Com suas cores vibrantes e esmeradas, um total equilíbrio na distribuição dos elementos visuais e dinamicidade nas imagens, o cartaz de “Pantanal de Sangue”, consegue refletir de forma atraente para o espectador transeunte, o objetivo a que se propõe. A coragem de José das Neves, a ganância de Chico Ribeiro e o galope rápido e decisivo das tropas de Chico Ribeiro rumo à batalha, são harmonicamente elencados e integrados à paisagem local pela presença de uma face feminina - bela e virginal – representando a mãe natureza e o sentido de complementaridade intima existente entre as manifestações culturais específicas de cada região com o seu substrato, seu solo, seu lugar.

Para a elaboração do roteiro, Reynaldo Paes de Barros baseou-se em fatos que havia presenciado e casos, contos e “causos” (o lúdico tem uma forte presença na região) que lhe contaram em sua infância, quando costumava passar as férias na propriedade de seus pais no pantanal. A partir dessas experiências, do seu conhecimento acerca dos costumes e das manifestações folclóricas da região, e da frondosa beleza natural do pantanal, o diretor conseguiu realizar uma importante obra de nossa cinematografia.

Apesar dos recursos escassos, “Pantanal de Sangue” foi produzido em 1971 por sua empresa, a RPB Filmes e contou com a participação de atores consagrados do nosso cinema e com uma equipe técnica especializada. A direção de fotografia e câmera ficou a cargo do próprio Reynaldo, que contou com a significativa colaboração do iniciante Antônio Meliande. Remo Usai foi o responsável pela música incidental do filme, a montagem para o grande Mauro Alice (que vinha de importantes trabalhos na Vera Cruz) e a sua distribuição ficou a cargo da CINEDISTRI.

“Pantanal de Sangue” foi realizado em um período marcado pelo surgimento de novas frentes e perspectivas para o cinema nacional. Um momento de indefinições e incertezas, mas responsável pela realização de novos sonhos e outros olhares.

Alexandre Aldo Neves é geógrafo formado pela UNESP de Presidente Prudente, pesquisador de cinema brasileiro e especialista em filmes ambientados na região cerrado do Brasil.



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