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Dr. Fantástico

Por Filipe Chamy

Dr. Fantástico
Direção: Stanley Kubrick
Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb, Inglaterra, 1964.

É difícil entender o cinema de Kubrick com um sentido autoral, pelo menos se visto pelo aspecto dos temas de seus filmes: talvez o americano mais versátil desde Howard Hawks, transitou com genialidade por gêneros tão diferentes entre si como ficção científica e guerra, film noir e terror, drama romântico e épico histórico. Este Dr. Fantástico é uma comédia, algo atípico na carreira do diretor, mas ao mesmo tempo bem característico de seu estilo. E ao mesmo tempo em que é escrachada, satírica e quase surrealista, a obra tem tantos significados que se pode até mesmo vê-la como um cínico filme sobre a neurose da guerra ou a documentação irônica de um tempo em que a fobia de uma Terceira Guerra Mundial ensopava as políticas do mundo com um indisfarçável pânico.

Ainda que em realidade pouca coisa tenha mudado desde então, gostamos de pensar que a época de salas de guerra com assuntos ultra-secretos e planos de defesa e ataque bélico seja apenas fruto de uma alucinação que hoje é absurda. De todo modo, Dr. Fantástico é suficientemente brilhante em seus elementos de estrutura para precisar de qualquer tipo de amparo cronológico-político.

Trata-se, em resumo, de uma série de situações, interligadas e relacionadas, desencadeadas por personagens ridículos e/ou sem grande poder de raciocínio. Peter Sellers triparte-se: é o presidente dos EUA, figura que mais parece coadjuvante de Os Simpsons, um militar obrigado a suportar a crise de nervos de um homem disposto a tudo (Sterling Hayden em grande momento), e a bizarríssima pessoa-título do filme: um homem de voz anasalada, que anda em cadeira de rodas, tem uma mão mecânica sobre a qual não possui controle e usa óculos escuros. E mais: tem oratória apreciada e idéias pouco ortodoxas para lidar com a situação que aparece a certo ponto. Seria trágico, se não fosse engraçado. Toda a fita é permeada de falas grotescas que desnudam as relações de poder que polarizavam o mundo poucas décadas atrás, e o comportamento das personagens é tão ou mais risível que o contexto de tensão em que estão inseridos. A estupidez humana redireciona as suas decorrências para a própria comédia da destruição.

Kubrick faz o que de alguma maneira todos os humoristas inteligentes praticam: rir do que não se deve. Da imbecilidade que leva ao sangue, caos, destruição; da falta de seriedade dos governantes; do ápice da falta de perspectiva que é a guerra. O que faz Alain Resnais chorar faz Kubrick, implacável, sorrir: porque é enxergando nossas limitações que podemos crescer, e as nefastas caricaturas de Dr. Fantástico serviriam para, não apenas chocar (como todo Kubrick de respeito), fazer refletir, ou, aos despreocupados, entreter. Cumpre qualquer objetivo possível, de maneira exemplar e arrebatadora.

É um trabalho de força e ritmo impressionantes, imagens vivas, que pulsam como feridas de batalha, cadência musical (e o filme não é easy listening), coroado pelas assombrosas atuações, destacando ainda um descontraído George C. Scott, no arquétipo do tolo promovido por conta de muita ignorância e falta de preparo. Ainda que nenhum personagem seja agradável, são todos de construção perfeita, parecendo mesmo naturalíssimos em seus disfarces de vício.

Dr. Fantástico ou Como aprendi a parar de me preocupar e amar a bomba não é um filme de duelo entre nações, não tem vencedores e nem vencidos. Todos saem perdendo, exceto o cinema. Pois a guerra e a brutalidade com certeza geram muitos transtornos e aborrecimentos, mas para Stanley Kubrick — como de resto a todos os verdadeiros artistas — o sofrimento é matéria-prima para criar algo maior que a vida.




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