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Fragmentos Literários

Por Stefanie Gaspar

Shazam!, de Álvaro de Moya (org.)

O livro Shazam!, organizado pelo teórico dos quadrinhos Álvaro de Moya, é uma obra que reúne ensaios de autores como o jornalista Sérgio Augusto, o professor de pedagogia Azis Abrahão, o psiquiatra José Gairasa e até mesmo Jô Soares, cada um buscando definir a importância dos quadrinhos como uma expressão artística legitimada não só por sua qualidade e variedade, como por sua crescente importância dentro do contexto da sociedade da industrial cultural e da massificação dos meios de produção.

Alguns artigos, como o de Azis Abrahão sobre o uso pedagógico dos quadrinhos e o de Enrique Lipszyc sobre o uso do conceito de argumento nas HQ’s, não são inéditos, e sim capítulos extraídos de livros. A seleção de ensaios pretende situar desde o leitor leigo até o já iniciado na compreensão da arte seqüencial.

O primeiro texto, Era Uma Vez Um Menino Amarelo, de Álvaro de Moya, fala da evolução da arte dos quadrinhos e de suas características ao longo do processo históricos, ressaltando que hoje as HQ’s são um tema respeitado na academia e digno do olhar e da análise dos intelectuais. “Os quadrinhos são a forma de comunicação mais instantânea e internacional de todas as formas moderna de contato entre os homens de nosso século. Mesmo o momento grandioso da história da humanidade, em que o pé do homem pisou na Lua e foi televisado direta e imediatamente, para o mundo todo, já era uma imagem gasta e prevista pelos quadrinhos”. Nesta defesa da arte dos quadrinhos e de sua importância social e cultural, entretanto, Álvaro de Moya exagera em seus argumentos, sendo um pouco repetitivo e mais apologético do que o recomendável, embora as informações e a relevância de seu artigo sejam inquestionáveis. Ao situar a história dos quadrinhos a partir do surgimento do raciocínio seqüencial baseado na união entre texto e imagem, Moya fornece ao leitor algumas informações interessantes a respeito dos hieróglifos e das historietas. Depois desse pano de fundo histórico, Moya começa a falar do surgimento da imprensa, do estabelecimento dos Syndicates – que distribuem os comics em escala internacional – e a criação de quadrinhos como Yellow Kid, Little Nemo in Slumberland, Krazy Cat e Flash Gordon. Ao tentar dar um panorama das histórias em quadrinhos desde seu surgimento até os dias atuais, Álvaro de Moya consegue dar ao leitor uma boa base das produções mais importantes e cita exemplos deliciosos, como o personagem Li’l Abner, criado por Al Capp, que em plena era macarthista descobre uma criatura chamada “shmoo”, capaz de resolver todos os males da humanidade. A história, aparentemente simples, torna-se trágica e metafórica conforme a saga dos shmoos vai sendo contada, e só resta ao leitor se perguntar sobre a criatividade e os recursos artísticos vastos utilizados nesta HQ. Outra história memorável contada por Álvaro de Moya é a do personagem Gerhard Shnobble, que aparece em The Spirit, de Will Eisner – Gerhard era capaz de voar quando criança mas, repreendido pelos pais, jamais repetiu a proeza. Quando, entretanto, perde seu emprego quando o prédio no qual trabalha é assaltado, resolve saltar da cobertura. Lá, ocorre uma briga entre The Spirit e os assaltantes. Quando Gerhard se joga e voa, é alvejado por uma bala perdida e morre. Segundo Will Eisner, “Não chore por Shnobble... Melhorar chorar pela humanidade inteira... Porque nenhuma pessoa naquela multidão que olhava, nenhum deles notou ou sequer suspeitou que naquele dia Gerhard Shnobble tinha voado”. A beleza da imagem e do texto de Eisner é incrível, e a composição do quadrinho altamente sofisticada, como pode ser constatado na imagem abaixo.

O segundo artigo, Os Dilemas do Fantasma e Do Capitão América, de Jô Soares, é um texto curto, com 3 páginas, e que contrasta bastante com o resto da obra organizada por Moya – os outros textos, mesmo que com algumas posições e informações questionáveis, não só são importantes como constituem um estudo interessante e pertinente sobre a arte dos quadrinhos. Este artigo de Jô Soares, entretanto, é superficial e maçante, já que ao invés de analisar com mais profundidade e cuidado as histórias do Fantasma e do Capitão América, acaba fazendo exatamente o contrário do que propõe – ele estereotipa e simplifica personagens sobre os quais pretendia analisar os paradoxos e constatar complexidades latentes.

No terceiro artigo, Os Quadrinhos e a Comunicação de Massa, os autores Laonte Klawa e Haron Cohen analisam a gênese dos quadrinhos a partir do desenvolvimento da comunicação de massa e, assim como Álvaro de Moya, iniciam seu raciocínio falando sobre a relação do homem moderno com a imagem. “A ilustração, a caricatura, o cartoon, e mesmo a fotografia, compõem um conjunto em que a imagem assume funções diferentes, mas mantém a mesma relação com o texto: são complementares e independentes entre si”. Além disso, o ensaio de Klawa e Cohen explora aspectos interessantes da linguagem dos quadrinhos, principalmente ao considerar que o fato das HQs terem surgido em um contexto dominado pela cultura de massa não faz delas um produto menor, já que mesmo dentro de uma condição supostamente adversa, o estilo conseguiu estabelecer “uma articulação imagística original e própria”.

Desde a Pré-História até McLuhan, de José Gaiarsa, começa de maneira curiosa: “os acadêmicos são muito chatos, muito sem imaginação e sem senso de humor”. Para o autor, “é claro que o desenho formou a inteligência e assim gerou a capacidade de controlar o mundo”. A partir desta afirmação categórica, Gaiarsa defende a tese de que a imagem é mais complexa – e, portanto, muito mais significativa – do que a palavra, já que enquanto a primeira pode ser utilizada de maneira não linear e de acordo com a imaginação do artista, a segunda precisa de uma concatenação básica. “Se eu puser ao acaso em um livro todas as palavras que ele contém, mas desordenadas de todo, ninguém conseguirá ‘ler’ a história, por mais que o tente”. Por isso, o autor considera que as histórias em quadrinhos mostram ao ser humano o mundo como ele realmente é, livre das regras aparentemente soberanas da gramática e da palavra. A relação que o autor estabelece, entretanto, parece despropositada, incoerente, considerando que a palavra não é menos importante do que a imagem – apenas exerce funções diferentes, isso quando ambas não se unem para criar uma nova linguagem. “As histórias em quadrinhos, pelo que vimos, podem salvar a humanidade. Que assim seja”. O ensaio, mais do que uma análise acadêmica, parece um mantra – o que acaba diminuindo o mérito de alguns trechos muito bons do texto de Gaiarsa.

Elementar, Meu Caro Freud, de Paulo Gaudêncio (o título, bem clichê, não ajuda), fala do papel dos quadrinhos como um meio pedagógico, rebatendo as críticas que dizem que as HQs são nocivas à moral e corrompem as crianças, assim como o ensaio seguinte, Pedagogia e Quadrinhos, de Azis Abrahão. Neste último, o foco do ensaio é mostrar que as histórias em quadrinhos, ao contrário do que afirmavam muitos educadores e psicólogos, não prejudica as crianças em relação a leituras ditas “sérias” que exijam um alto grau de concentração. Discussão que hoje se encontra menos em voga, considerando que não existe separação estanque entre alta cultura e cultura de massa – temos Marcel Proust e seu Em Busca do Tempo Perdido adaptado para os quadrinhos, por exemplo. Mas o ensaio cumpre um papel importante ao afirmar a importância da fantasia e a complexidade da estrutura das histórias em quadrinhos.

As Taradinhas dos Quadrinhos, de Álvaro de Moya, fala do papel do sexo e das heroínas nas histórias em quadrinhos, citando casos complicados, como o do Fantasma – que permanecia eternamente noivo de Diana Palmer, mas sabe que para continuar a dinastia de sua família precisará de um filho –, e o do Super-Homem – que não pode relevar a Lois Lane que o Super Homem e Clark Kent são a mesma pessoa. Para exemplificar a sucessão de heroínas, Moya fala de Betty Boop e outras até chegar a Barbarella e Valentina, que representam uma liberação sexual para as mulheres nos quadrinhos. Para Moya, não houve uma revolução sexual nos quadrinhos, e sim uma mudança social neles refletida.

Space-Comics: Um Esboço Histórico, de Sérgio Augusto, fala do surgimento e da consolidação dos quadrinhos de ficção científica, em um artigo que vale pelas informações sobre a indústria e seus principais títulos. Histórias dos Quadrinhos no Brasil, de Álvaro de Moya e Reinaldo de Oliveira, também se destaca pelas informações que fornece ao leitor, principalmente em relação à tiragem que alguns títulos tinham na época e por falar de alguns quadrinhos nacionais pouco comentados, além da riqueza de imagens que o artigo oferece.

História em Quadrinhos e Seu Argumento, de Enrique Lipszyk, fala do uso do argumento e da narrativa nas histórias em quadrinhos – assunto melhor explorado em outro livro, Quadrinhos e a Arte Seqüencial, de Will Eisner. Muito Obrigado, Sr. Johan Gutenberg, de Reinaldo de Oliveira, vale pela explicação sucinta das técnicas de desenho e traço das histórias em quadrinhos, desde o uso da retícula até o esquema de impressão tipográfica. O último ensaio, As Onomatopéias nos Quadrinhos, de Naumin Aizen, é interessante por elencar as onomatopéias mais utilizadas e seus significados, mas seu caráter enciclopédico torna o texto uma referência a ser consultada, e não propriamente lida.

Mesmo com todos os seus erros e artigos dispensáveis, Shazam! é interessante por propor, em 1977, uma discussão séria a respeito da arte das histórias em quadrinhos.




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