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Entrevista com Thiago Mendonça

Por Matheus Trunk

O curta Minami em Close-Up despertou a curiosidade de todos os cinéfilos brasileiros no último Festival de Brasília. Este polêmico documentário sobre a Boca recebeu o prêmio de melhor direção.

O responsável pela proeza é o franzino e falante Thiago Mendonça, 30 anos, cineasta da nova geração. Para falar mais sobre esse e outros projetos, o simpático realizador recebeu a reportagem da Zingu! em seu apartamento no bairro paulistano de Higienópolis. Homem de bom gosto, Thiago nos surpreendeu com um raro disco do sambista Wilson Moreira, que serviu como trilha sonora da entrevista.

Zingu! - Como você começou a se interessar por cinema?


Thiago Mendonça - Eu sempre quis fazer cinema. Isso foi uma obsessão desde moleque. Também como cinéfilo, eu sempre tentei ver de tudo. Como a minha família é de esquerda, isso acabou me levando a procurar o cinema brasileiro. Eu tive um contato desde muito cedo com o Carlão Reichenbach. Conheci ele quando eu estava na sétima série, e desde lá eu já perturbava ele.

Z- Ele falava muito da produção da Boca com você?

TM- Sim. Eu escutava as coisas que ele me falava e corria atrás. Com o cinema da Boca eu tive contato primeiramente com a turma do Cinema Marginal: Sganzerla, Jairo Ferreira, Callegaro. Em 2001, eu comecei a freqüentar a Boca porque eu ia muito em uma casa de samba lá perto. Um amigo me contou que o pessoal do cinema se reunia no bar do Teixeira na Rua do Triunfo. Depois, também comecei a ir lá. Fiquei amigo de personagens históricos como Ozualdo Candeias, Pio Zamuner...e ficava horas lá conversando, ouvindo as histórias. Por conta disso eu comecei a correr atrás dos filmes e da obra dos caras. Desse contato eu soube da revista Close Up, que divulgava sobre as películas da Boca. Por isso, eu procurei o Farah, que era um distribuidor de revistas que tinha loja lá.

Z- Ele ainda estava vivo? Ele produziu alguns filmes...


TM- Sim. O Farah era um malandro extremamente bem alinhado. Quando eu conheci, ele estava usando um tapa-olho...ele foi distribuidor da Close Up e de outras revistas da época. Ele tinha convivido com todos os malandros do bairro: Quinzinho, Hiroito Joanides, entre outros. Tanto que a Solange, que era a rainha da zona teve várias histórias com o Farah. Com isso, eu passei a me fascinar também pela história da malandragem da Boca.

Z- O livro Boca do Lixo do Hiroito você leu?

TM- Li. Com o tempo eu comecei a correr atrás de tudo sobre ele, sobre o Quinzinho...

Z- E você achou muita coisa sobre eles?

TM- Em 2001, eu trabalhei durante um tempo no jornal O Estado de São Paulo. Eu escrevia sobre cinema e samba. Eu fazia muita pesquisa no acervo do jornal. Então, eu peguei várias coisas sobre o Quinzinho. Tem várias entrevistas com delegados da época elogiando ele: “O Quinzinho garante a paz na Boca”. Ele conseguia manter a moral com todo mundo. O mundo da marginalidade da Boca me fascina bastante. Acho ali um território diferente em São Paulo e que condensa toda a história do populacho da capital paulista. Os personagens de lá estão sempre se movimentando, se virando para sobreviver em uma sociedade violenta. Nesse pequeno local de São Paulo você tem a história dos marginais, da prostituição, do samba, do choro, do cinema. Você ainda tem das histórias das irmandades dos negros, que é ali no Largo do Paissandu. Então, toda a história da cultura marginal de São Paulo está concentrada na Boca do Lixo. Por isso, sempre foi uma região que me atraiu muito. Por conta do pesquisador Alessandro Gamo, eu consegui ter acesso ás revistas. Depois eu conheci o Minami e comecei a escrever um projeto. No roteiro original, tinha depoimento do Candeias, tinha depoimento do Farah, de um monte de gente. Mas os caras foram morrendo...e só depois eu resolvi retomar o projeto. Levei pra produtora e mandamos pra Petrobrás e acabou acontecendo.


José Lopes em cena de Minami em Close Up

Z- Por que você quis esse foco na Close Up e no Minami?

TM- Quando eu entrei em contato com a Close Up eu percebi que era uma revista porta voz da Boca do Lixo. Você olhando pra ela você percebe a produção, os valores, as idéias. Existe discussão sobre mercado, cinema de gênero, as musas...a revista tem a coisa do cinema safado. Era um humor meio matreiro que refletia nos quadrinhos da publicação. O Minami foi um dos caras que iniciou a publicação de quadrinhos eróticos nacionais. Ele começou a coisa industrialmente, gerando dinheiro. Com esse capital, ele fez a Close Up. Eu percebi que através da revista se poderia falar sobre a história da pornochanchada paulista. Assim eu comecei a estruturar a idéia do filme. A minha idéia era que o curta funcionasse como uma revista mesmo.

Z- No final do curta, tem uma grande discussão entre vários cineastas da época num bar. Alguns chegam a se xingar inclusive. Quando você fez essa cena no bar você esperava isso?

TM- Eu já tinha um convívio com os caras. Ali estava no filme ficou uma parte bem amena, porque o quebra pau foi feio. Tem gente inclusive que não se fala desde a filmagem (risos). Me senti até culpado. Mas eu sabia que tinham dois grupos com concepções bem diferentes de cinema e estão sempre batendo boca no boteco. Eu levei eles pra um outro bar na Amaral Gurgel, chamado Amigo Leal. Deixei eles bebendo um antes de gravar. Era a última tomada do dia. A minha proposta era filmar o que acontecesse durante a discussão. O Clery Cunha com aquela coisa meio de radialista começou a falar. Como o povo estava um pouco alto, todo mundo começou a se xingar (risos). Rolou uma polarização lá entre o Daniel Santos e o Gonzaga. Essas coisas de mercado...o Gonzaga defendendo o mercado através de leis, aos moldes dos anos 70. O Daniel defendia mais a idéia liberal de mercado livre. A coisa pegou fogo...eu tirei as ofensas pessoais entre eles. Mas deixei um pouco o espírito. É algo fascinante e triste: os caras vivem de cinema até hoje sem ter acesso dos meios de produção.

Z- Excluídos.

TM- Foram excluídos do processo. O modo de fazer cinema que eles trabalhavam morreu. Alguns poucos ali conseguiram sobreviver. O Carlão...mas ele tinha uma outra formação, vinha da Escola Superior São Luiz...

Z- O Carlão e o Guilherme de Almeida Prado foram os únicos caras que continuaram na área depois que acabou a Boca. No filme, você não chamou eles pra dar depoimento. Você quis pegar o pessoal que estava distante?

TM- Sim. Eu não chamei o Carlão por dois motivos. Eu tinha uma relação pessoal com ele. Mas ele tem uma aceitação grande e tem um discurso muito formulado sobre a Boca. Mas eu queria sair disso, eu queria uma coisa mais do coração dos caras. Da forma deles sentirem e a partir disso falar sobre cinema. Eu pensei muitas vezes em chamar o Carlão. Eu queria falar mais dos caras que estão fora. O Reichenbach é uma exceção. O Mojica também aparece...mas ele ficou trinta anos pra fazer um filme. Ele está fora do processo de hoje. O Carlão tem uma produtora bem estabelecida, tem uma filmografia constante e é uma figura a parte no cinema brasileiro.

Z- Como surgiu a idéia de gravar o depoimento do Luiz Castillini num cemitério?


TM- Veio dele. Como a visão dele era completamente diferente das outras pessoas, eu queria fazer o Gonzaga andando em uma direção e ele em outra. Eu queria gravar na Boca também. Ele me falou: “Lá de novo? Porque a gente não faz em um cemitério?”. Eu achei legal e a gente fez. Para o Castillini, tem que enterrar a história da Boca, que isso morreu mesmo. Enquanto o Gonzaga, por exemplo, tem essa coisa mais saudosa, de falar da época. Tem gente que tem um saudosismo mais depressivo na Boca. O Gonzaguinha tem uma coisa mais Dom Quixote, otimista, que eu acho engraçado.


Castillini dando depoimento para o documentário

Z- Tomando contato com as pessoas você tomou contato com os filmes?

TM- Sim. No convívio com eles, eu comecei a ver os filmes. Com o Ozualdo Candeias, eu consegui ver toda a maioria da obra dele. Comecei a freqüentar as sessões do cineclube do Sated. O Clery me passou os filmes dele, o Gonzaga também. O David Cardoso também foi generoso e me passou cópia de todos os filmes dele. Você começa a conhecer que tem todo um mercado negro de colecionadores. Com isso, eu tive acesso de várias coisas. O Remier Lion da Cinemateca, o Alessandro Gamo me indicaram bastante coisa.

Z- Você viu coisas do Tony Vieira também?

TM- Também. O Nabor Rodrigues me passou bastante coisa dele. Fiz questão de colocar partes da A Filha do Padre no curta. O Índio também participa do meu filme. Ele fez muita coisa, produção, efeitos especiais...ele viveu intensamente cinema. E vive até hoje. Ali eu aprendi uma coisa que é muito importante pra mim: fazer cinema é vivenciar o cinema. Essa paixão que a gente passe uma noite em bar discutindo cinema brasileiro. Porra, os caras estão há trinta anos fora do mercado mas continuam discutindo cinema nacional. Essa coisa de ter uma vivência diária do cinema é tão ou mais importante que o cinema em si. É assim que a gente cria um espírito de produção. Eles tem um idealismo do cinema que eu acho comovente, admiro muito.

Z- Você acha que isso falta nos jovens cineastas de hoje?

TM- Falta. Se você perguntar pra maioria das pessoas que fazem cinema hoje o motivo delas estarem na área, a maioria das pessoas vão dar respostas pífias. Claro, existem exceções. Mas a maioria vão dar respostas vazias. Eu sei exatamente porque eu fiz o Minami em Close Up. Tem uma série de discussões que eu coloquei lá que pra mim são pertinentes. Essa discussão do popular no cinema, da cultura popular frente a uma outra dominante são muito importantes pra mim.

Z- O que mais te atraí no cinema da Boca?

TM- Essa idéia de uma indústria de cinema feita na completa precariedade. Pegavam fórmulas fechadas do cinema americano e as desconstrói de uma forma ou de outra. Isso é incrível pra você pensar o país hoje. Isso sempre mexeu comigo, tanto no Cinema Marginal quanto no cinema mais comercial da Boca.

Z- Esse projeto sobre o Minami nunca foi pensado em longa-metragem?

TM- Engraçado, sempre me perguntam isso. Na verdade, eu pensei originalmente como um curta. Muita gente me falou: “O filme é demais, instiga algo maior”. Principalmente depois do Festival de Brasília. Tivemos uma excelente recepção, muita gente pediu isso. O primeiro corte do filme tem 47 minutos...talvez seja algo legal pro futuro. Um formato maior é bem interessante. Muita coisa que eu captei acabou não entrando, mas está guardado comigo.

Z- Você está fazendo agora um curta sobre o bairro da Santa Efigênia. O que esse filme vai mostrar?

TM- Eu vou mostrar todas as culturas marginais que existiram e existem lá. Esse bairro sofre hoje esse projeto de revitalização chamado Nova Luz. É algo de grande projeto de grande palco cultural pra elite e de inserção de grandes empresas como a IBM. Na verdade, existe toda uma cultura pulsante lá que não é levada em conta. Na rua do samba de São Paulo, do choro paulista, fizeram uma escola chamada Tom Jobim. Aí você percebe como eles pensam a cultura, essa cultura com C maiúsculo que sempre ignorou qualquer manifestação popular em São Paulo. Existe na nossa cidade uma cultura da marginalidade que engloba a prostituição, os travestis, os marginais que jamais foi compreendida e sempre foi marginalizada. A Santa Efigênia é um lugar de prostituição desde o século XIX. Isso é fantástico...Álvares de Azevedo, esses caras freqüentaram lá. Os estudantes iam lá pra ter contato com as moças. Esse discurso da decadência do bairro foi feito nos anos 60 e é até hoje. Nunca existiu uma Santa Efigênia idealizada. Lá nunca foi um bairro de elite.

Z- Fora o livro do Hiroito (Boca do Lixo) praticamente não existe bibliografia sobre a região da Santa Efigênia. Na sua opinião, por que isso acontece?


TM- Interessante essa pergunta. Tem um texto do José Ramos Tinhorão que ele fala porque a cultura popular se desenvolveu mais no Rio de Janeiro que em São Paulo. Ele fala da extrema violência de uma elite paulista que se pensa universalizada e por conta isso sempre oprimiu a cultura popular daqui. Eles pensavam: “Isso é coisa de negro, coisa de marginal”. Pra eles, era algo menor, pra ser ignorado.

Z- Isso também acontece com o samba feito aqui em São Paulo.

TM- O samba paulista sempre foi colocado á margem. Se você perguntar pra qualquer cara na Vila Madalena sobre samba de São Paulo o cara vai te falar sobre Germano Mathias, Adoniran Barbosa, talvez fale de Geraldo Filme. De resto, os caras não conhecem nada. Existem histórias de marginalidade fantásticas de pessoas como Toniquinho Batuqueiro, Carlão do Peruche. O T. Kaçula tem um projeto com várias velhas-guardas de São Paulo e o projeto de um disco só do Toniquinho. Isso vai ser lançado no ano que vem. Mas é o projeto de um sambista pobre, da escola Camisa Verde e Branco. Esse não é o projeto hegemônico da cidade. O Adoniran só é aceito porque ele criou um personagem que fazia samba italiano. Não era algo que existia no Bixiga.

Z- E ele fez sucesso no Rio.

TM- Também. Isso aconteceu com o Germano Mathias. Ele gravou Zé Kéti, Padeirinho, muitos caras do Rio.

Z- Sim. Mas o Germano gravou também Jorge Costa, Kazinho.

TM- Verdade, mas a aceitação dele para a imprensa e os meios intelectuais vem dele ser consagrado no Rio. Ele tinha uma marginalidade inerente a ele que não era bem vista.

Z- Quais outras histórias inéditas você mostra no documentário sobre o bairro?

TM- Tem uma grande história de repressão da polícia contra as prostitutas da Boca. Tem uma forte resistência delas conta a Ditadura Militar que não foi contada. Elas foram pra Praça da Sé protestar contra a violência policial. Isso com o apoio de vários artistas. E essa marginalidade que lutou contra a Ditadura Militar? E os sambistas da turma do Plínio Marcos? Não aparece em lugar nenhum. Vão estar no documentário.

Z- O Minami Em Close Up foi muito criticado em Brasília?

TM- Bastante. Eles pensavam que eu tinha feito uma apologia a Boca. Pelo contrário, é mais um retrato irônico de tudo. É pura tiração de sarro em vários momentos. Eles queriam que eu metesse pau nos caras. A crítica Maria do Rosário falou que eu era acrítico. Eu falei pra ela que a minha geração tem uma visão muito diferente da dela. Cara, a geração dela está no poder e só fez merda. A minha geração não conhece a política porque eles destruíram a política. O que eles estão falando? Do que resultou o projeto Cinema Novo? Cacá Diegues? Jabor?

Z- O Saraceni, por exemplo, fez algumas coisas legais.

TM- Esse ainda é uma pessoa respeitável. Talvez por isso está um pouco de lado. Mas Barretão? Esses caras estão há quarenta anos fazendo merda: filme ruim, mamando nas tetas do Estado. Eles estão fudendo as novas gerações. Uma coisa que eu achei legal na gestão do Gil no Ministério da Cultura foi tornar republicano os editais. São coisas públicas, você concorre. Nos últimos anos do Fernando Henrique, o Welford deu dez milhões pro Cacá Diegues fazer o “Orfeu”. Não teve um edital público...um absurdo. Um regime republicano dá oportunidade para as novas gerações fazerem novas produções, lançar novos filmes.

Z- Por que você acha que o cinema da Boca ainda não é aceito?

TM- O Cinema Novo, a esquerda brasileira e grande parte de quem faz cinema hoje no Brasil são extremamente moralistas. Isso é um mérito do cinema da Boca do Lixo. O cinema da Boca não era hipócrita e moralista. Não nesse sentido, e sim em outros. Essa produção cultural existir foi algo muito importante inclusive pra acabar com esse puritanismo que contamina a sociedade brasileira. Isso é uma hipocrisia, porque debaixo dos panos é outra coisa. A Boca foi a revolução sexual das classes baixas. Isso é interessante pra você pensar, o sexo chegou na periferia pelas pornochanchadas.

Z- Se você vê um filme nacional sobre a Ditadura hoje, parece que todas as pessoas eram politizadas, escutavam Chico Buarque, tinham Lamarca como ídolo. Isso é um completo absurdo.

TM- Por quê? Porque esses filmes falam de uma determinada esquerda de classe média que foi pras cabeças. Mas a gente está falando de um pequeno grupo de universitários. A gente não reflete sobre a condição das classes baixas na Ditadura. Sobre a resistência das putas em São Paulo que foram pra cima dos policiais. Imagina uma manifestação de prostitutas e travestis em plena Praça da Sé na Ditadura Militar? Essa história existe. Qual foi o primeiro cara morto pelo esquadrão da morte na repressão? Pato N'água, era diretor de bateria da Vai-Vai. Não se reflete sobre a continuidade da polícia hoje que continua ferrando os debaixo. O momento de repressão não acabou pros debaixo. Isso é importante a gente pensar hoje, porque pra classe média tudo voltou ao normal.



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