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Fragmentos Literários
Por Stefanie Gaspar

O Retrato de uma Dama, de Henry James

(Contém spoilers)

O livro O Retrato de Uma Dama, de Henry James, foi publicado em 1880, e 10 anos mais tarde veio a publicação de O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. O romance hedonista de Wilde traz alguns aspectos que já haviam sido explorados pela obra-prima de Henry James: a construção “esteta” do texto, que mostra uma adoração pela beleza, pelos detalhes e pela inspiração artística de cada cena, cada rosto e cada gesto; a descrição quase sensorial das cenas (característica muito mais presente nas obras de Oscar Wilde); e a presença velada e, ao mesmo tempo, pulsante, da luxúria, da sexualidade, e do “pecado”. Enquanto que essas características encontram seu apogeu na escrita fluente, esteticamente perfeita e prazerosa do Oscar Wilde de Salomé, O Retrato de Dorian Gray e De Profundis, em O Retrato de Uma Dama a sensação transmitida pelo texto é, em diversos momentos, de decepção – ainda mais considerando que o livro é descrito como uma obra que trata questões como a liberdade, o amor e a inocência de maneira complexa e multifacetada.

O Retrato de Uma Dama conta a história de Isabel Archer, descrita como uma “garota americana” a partir da concepção do termo concebida por Henry James – a junção da beleza e da inocência, o novo contra os padrões velhos e corruptos do mundo antigo (a Europa). Isabel recebe a visita de sua tia, Mrs. Touchett, que resolve levá-la para sua casa e coloca-la em contato com o mundo. Isabel é uma mulher que pretende conhecer o mundo, suas belezas, suas tristezas e adquirir conhecimento. Além disso, em toda a história fica muito claro que o que Isabel mais ama é sua liberdade, e em nenhum momento da trama ela abdica dessa preciosa capacidade de pensar livremente e decidir o próprio futuro. Para continuar livre e não ceder aos caprichos do mundo, Isabel recusa a proposta de casamento do rico “empresário” Caspar Goodwood (considerando que o termo na época não possui a mesma conotação de hoje – Goodwood é um homem que ficou rico a partir do lucro de plantações de algodão). Posteriormente, recusa também a proposta de um homem ainda mais importante e rico, Lord Warburton. Considerando que Isabel não se interessou pela proposta de dois homens que, em si mesmos, representavam a glória de duas civilizações – Goodwood é o self-made-man, o homem que construiu sua fortuna a partir do nada e possui uma vontade de ferro, digna da América, país das “descobertas” e do trabalho; Warburton é a aristocracia inglesa em seu auge, unindo fortuna, nobreza, hábitos ancestrais e respeitabilidade –, o livro coloca a seus leitores a pergunta que Mrs.Touchett e seu filho, Ralph, questionam a respeito de Isabel: qual será sua escolha? Qual destino ela escolherá? A partir de uma intervenção de Ralph, o tio de Isabel deixa a ela uma fortuna, suficiente para que ela possa conseguir a liberdade que tanto deseja. Ralph escolhe diminuir sua própria fortuna para garantir a liberdade de Isabel, não só por amá-la mas também por se interessar pelo destino que a prima, tão fora do padrão convencional que se esperava da mulher na época, escolherá. O que Ralph não desconfia, entretanto, é que a inocência de Isabel não será capaz de protegê-la da crueldade do “mundo antigo” – e a garota americana tornar-se-á outra coisa, e sua beleza não poderá mais ser a mesma.

Isabel é uma mulher bela. O livro fascina o leitor ao nunca descrever suas feições – exatamente porque a beleza de Isabel vem da sua intensa vontade de ver o mundo com seus próprios olhos, vem de sua liberdade, de sua mente. Entretanto, em um determinado momento da trama, Isabel finalmente resolve escolher um marido – Gilbert Osmond, um americano que deixou seu país para morar na Europa e vive como um colecionador de coisas belas e raras. Obviamente, sua escolha revolta e surpreende a todos – após recusar um americano rico e determinado e um lorde inglês, porque Isabel resolveu casar-se com um americano pobre, indolente e que aparentemente só se interessa pela vida para colecionar seus bibelôs? É nesse momento que a narrativa de Henry James se mostra mais decepcionante – ao longo de descrições exaustivas e diálogos não muito esclarecedores, o leitor espera que a trama seja capaz de se explicar ou de, ao menos, oferecer uma visão mais detalhada da escolha de Isabel e de seus motivos, ainda mais considerando que em todos os outros momentos o narrador se preocupou em ilustrar ao máximo os pensamentos de Isabel. O perigo é tão evidente que é válido pensar que Isabel, afinal de contas, não era tão inteligente e fascinante quanto o narrador a descrevia – por mais que a escolha de Osmond seja anti-convencional e original, de certa forma, onde está a delicadeza e a mente superior de Isabel quando ela volta seu olhar para Osmond e é incapaz de ver o quanto este é limitado?

O livro também deixa outras lacunas que não são condizentes com a trama – Isabel conhece Osmond por meio da interferência de uma amiga, Madame Merle, que mais tarde descobrimos que é uma mulher vil e sem princípios. Isabel percebe, horrorizada, que na verdade ela não casou com Osmond por conta própria, e sim se deixou levar pela influência de Madame Merle. Posteriormente, ela também descobre que a filha que Osmond declarava ser de sua ex-mulher, falecida, é na verdade de Madame Merle, e que ambos tiveram um caso de muitos anos antes que Isabel se casasse com ele. Após tudo isso, era de se esperar que Madame Merle também fosse mais explorada pela narrativa, considerando que sua personagem mostra-se muito interessante quando Isabel descobre que, apesar de seu calculismo, ela sofre porque Pansy, sua filha, gosta de Isabel e tem medo dela. Seus planos acabaram não dando certo – Isabel se casou com Osmond e tornou-o um homem rico, e Pansy conseguiu uma mãe que a amava e da qual ela gostava. E o que Madame Merle conseguiu, além do desprezo de Osmond, que jamais fez nada por ela? Nesse momento, a trama mais uma vez deixa de se aprofundar nessas questões e volta para descrições intermináveis de cenas e lugares, que cansam o leitor e, se forem simplesmente puladas, não fazem muita falta.

Entretanto, apesar desses problemas, o livro consegue terminar a trama de maneira majestosa: quando Ralph Touchett está morrendo, Isabel decide deixar Osmond para trás e ir até ele. Quando finalmente consegue conversar com o primo, descobre (embora a trama não diga diretamente) que ele, provavelmente, é o único homem que a amou e não quis colecioná-la, colocá-la como uma peça de decoração de sua coleção particular. Goodwood e Warburton a amavam, mas não a compreendiam. Osmond só amava o dinheiro e a beleza original de Isabel, que a tornavam um objeto de arte colecionável e que traz orgulho para quem o possui. Ralph foi capaz de deixá-la ir, de fornecer a ela os meios para que ela realizasse suas potencialidades. Podia acompanhá-la de perto em alguns momentos, mas não interferia e apenas contemplava. As últimas palavras de Ralph trazem à narrativa toda a dramaticidade que ela não consegue atingir em outros momentos, como no momento em que Ralph diz a Isabel – “remember this: that if you’ve been hated you’ve also been loved. Ah but, Isabel – adored”.

O Retrato de Uma Dama é uma obra que traz uma protagonista tão fulgurante quanto a fama que o livro ganhou posteriormente, tendo sido adaptado para o cinema e considerado uma obra-prima da literatura. Mas ainda traz o mesmo questionamento: a beleza de Isabel e a força da história precisariam ser exploradas a partir de uma narrativa tão detalhista e lenta? Se Isabel representa o fulgor, a vontade de viver, porque a trama deliberadamente é tão lenta e cautelosa com seus personagens?




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