html> Revista Zingu! - arquivo. Novo endereço: www.revistazingu.net
Entrevista com Caio Silveira Ramos

Por Matheus Trunk

O advogado, compositor e escritor Caio Silveira Ramos, 37 anos, teve ousadia. Ele acaba de publicar pela editora A Girafa o livro Sambexplícito - As Vidas Desvairadas de Germano Mathias, biografia de um dos maiores nomes do samba paulista.

Para conseguir publicar este trabalho, o autor percorreu inúmeros sebos em busca de discos, compactos, livros e tudo que falasse sobre a carreira do genial artista. Trata-se de uma bela homenagem a uma verdadeira lenda da música brasileira. Aos 75 anos, Germano Mathias, também conhecido como o Marlon Brando do Pari, Barra Funda e Catedrático do Samba recebe um livro a sua altura.

Além desta entrevista, o leitor da Zingu!, pode conferir nesta edição um capítulo do livro reproduzido na íntegra.

Zingu! - O Sambexplícito - As Vidas Desvairadas de Germano Mathias tem uma estrutura bem diferente da maioria das biografias sobre artistas populares. Por que essa opção?

Caio Silveira Ramos- Eu não sou jornalista. Talvez por isso, eu não conseguiria fazer um livro da mesma forma que autores de como Ruy Castro e Fernando Morais fazem. Eu sempre gostei mais de ficção. Inicialmente, eu fiz alguns contos baseados nas canções do Germano. As histórias eram sobre a malandragem e o ambiente de São Paulo dos anos 40 e 50. O resultado foram histórias muito pesadas, falando de drogas, jogo, prostituição. Uma das histórias eu acabei enviado para uma oficina de roteiro de filme pornô. Foi aprovado, mas eu acabei não fazendo o curso (risos). Mas depois acabei fazendo uma biografia, contando toda a história de vida do Catedrático do Samba.

Z- A história do Germano é muito interessante. Ele saiu de casa com quinze anos?

CSR- Sim. Ele foi viver com a Nilzona, uma prostituta mais velha que ele. Com essa mulher ele viveu durante cinco anos.

Z- Ele chegou a conhecer o Hiroito Joanides?

CSR- Sim. Não só o Hiroito. Ele também conheceu o Quinzinho, Nelsinho 45, todos os grandes malandros da época. O Hiroito era um bandido da pesada, bem diferente do Germano. Eles se cumprimentavam, se respeitavam, mas nunca foram amigos ou íntimos.

Z- O Germano morou durante muitos anos no Palacete dos Mendigos. Isso era uma pensão?

CSR- Sim, era uma pensão meio barra pesada (risos). Essa pensão ficava na esquina da Aurora com a Santa Ifigênia, na Boca. Quando ele casou com a dona Ivone, atual esposa dele, ele se mudou do Palacete. O Guaracy do Pandeiro, outro importante sambista paulista, também morou lá. Quando esteve no Rio, o Germano morou durante algum tempo na Galeria Alaska. Hoje, ele é uma pessoa bastante pacífica, mas durante muito tempo ele teve uma convivência muito forte com a bandidagem.

Z- Ele fez grande sucesso, mas durante muito tempo ficou esquecido. Por que isso aconteceu?

CSR- Existem artistas que sabem trabalhar com a mídia. Muitos são assim. O Germano não. Ele detesta falar sobre o passado, dar entrevistas. Ele gosta mesmo é de cantar, de dar shows. Isso mantém ele vivo.

Z- Ele nunca teve uma preocupação em guardar dinheiro?


CSR- Nunca.

Z- O sucesso do Germano nos anos 50 e 60 foi muito forte?

CSR- Sim. O sucesso dele foi muito forte em São Paulo. Ele era um artista que tinha um espaço de televisão bem grande. Se você conversar com pessoas que foram crianças naquela época, elas tem um fascínio pela figura do Germano. Muitos pensavam nele como um personagem de desenho animado como o Pica Pau, o Pernalonga. Naquele tempo, a televisão era muito séria, sisuda. Ele era uma figura transgressora pra época. Era um cara que pulava na platéia, dava pirueta (risos). Eu tenho inúmeras fotos disso.

Z- No livro, não têm fotos do Germano. Isso foi uma opção da editora?


CSR- Sim. Foi uma decisão da editora, por causa de ter que pedir autorização dos fotógrafos. Mas é uma perda...porque os fotógrafos da época tinham uma preocupação artística quando faziam seus trabalhos.

Z- Caio, você tem 37 anos. Você não chegou a ver ele no auge do sucesso. Como surgiu esse interesse pela obra dele?

CSR- Eu conheci o Germano por participações dele em programas de televisão do Francisco Petrônio, Agnaldo Rayol no final dos anos 70. Ele sempre foi uma figura marcante, tinha uma presença de palco bem grande. Quando vi ele pela primeira vez, foi um choque. Era muito diferente da maioria dos sambistas que eu escutava. Mas eu não achava os discos, não achava nada sobre ele.

Z- Como você conheceu ele pessoalmente?

CSR- Eu nasci em Piracicaba. Eu mudei para São Paulo no início dos anos 90, quando fui fazer a faculdade. Fiquei meio assustado com a cidade. A figura do Germano humanizava um pouco São Paulo, deixava o concreto mais leve. Quando eu vi ele em outro programa de televisão, consegui anotar o telefone de contato. Nessa época, ele tinha um apartamento na avenida Cásper Líbero. Eu cheguei uma tarde lá e falei com ele: “Oi seu Germano. Eu gosto das suas músicas, eu queria saber como encontro os seus discos?”. Ele respondeu: “Ih meu filho...nem eu tenho os meus discos. Eu estou numa fase meio difícil”. Fiquei meio decepcionado, mas continuei procurando os trabalhos dele.

Z- E como você se tornou próximo a ele?

CSR- Isso foi depois. Na época, eu fazia alguns sambas. E tinha a pretensão dele gravar algum. Aí liguei de novo: “Eu componho algumas músicas. Como eu faço pra mostrar pro senhor?”. Ele falou pra eu mandar uma fita pra Sadembra...

Z- Sadembra é a Sociedade Administradora de Direitos de Execução Musical do Brasil?

CSR- Sim. Como eu não tinha muitos recursos, eu fiz uma gravação ruim pra caramba...(risos). Mandei e uma semana depois ele me ligou: “Olha, eu gostei muito de um samba lá e eu quero cantar. Eu vou me apresentar com o Quinteto Preto e Branco no Villagio Café e aparece lá, que a gente se conhece melhor”. Ele cantou minha música na apresentação e ficamos amigos. Nossa, pra mim foi o máximo. O meu ídolo grava a minha música? Excelente. Depois ele fez o Ensaio da TV Cultura e cantou a minha música outra vez. Eu queria fazer algo maior sobre esse genial sambista, mas eu não tinha pretensão de fazer uma biografia. Quem sugeriu pra eu fazer foi o jornalista Roberto Múrcia Moura, que iria editar o livro. Então, eu comecei a fazer.

Z- E você nunca teve um prazo pra escrever o livro?

CSR- Não. Mesmo porque eu nunca tive bolsa, patrocínio, essas coisas. Eu gastei muito dinheiro comprando discos, livros, essas coisas todas. Eu sou advogado e exerço a profissão. Então, a maior parte da biografia eu escrevi de madrugada. Nos finais de semana, eu vivia nos sebos, correndo atrás dos discos do Germano que são bem raros.

Z- Uma das partes mais engraçadas do livro é quando o Germano serve o exército. Como foi isso?

CSR- Ele serviu o exército fora de época. Isso porque antes ele estava vivendo na malandragem com a Nilzona. O Germano nunca se acostumou com nenhuma hierarquia...acordar cedo pra ele naquela época era algo impossível. Ele deve ter sofrido um pouco no exército. Conversando com pessoas que serviram em Quitaúna depois dele, o Germano tinha se tornado uma espécie de lenda lá dentro. Fugia...ia desfilar com a roupa do exército. Um episódio muito engraçado foi quando que ele colocou uma mochila na estátua de Duque de Caxias (risos). Depois, ele se meteu numa briga e foi expulso.

Z- Ele se envolvia em brigas?

CSR- Sim, muito. Ele já tomou muita cadeirada (risos). Uma vez em uma gafieira na Praça João Mendes, ele brigou sozinho contra quarenta caras. Ele desmaiou e demorou pra acordar. O Germano sempre foi uma pessoa briguenta, não levava desaforo pra casa.

Z- Você falou que o Germano não gosta de falar sobre o passado. Como você conseguiu depoimentos dele para o livro?

CSR- Foi muito difícil. Antes das entrevistas, eu fazia um roteirinho de assuntos e perguntas. Mas eu não conseguia fazer algo cronológico com ele. O Germano sempre falava coisas do tipo: “Então, em 26 de outubro de 1955 eu ganhei o concurso A Procura de Um Astro e estou aí até hoje” (risos). Parecia que ele estava falando em um show, coisa assim. Eu acho que a vida dele deve ter muitos outros detalhes e daria pra fazer outro livro. Na minha opinião, todo livro biográfico é meio falso porque você não consegue passar os sentimentos da pessoa. Isso foi uma preocupação minha. Por um lado eu não queria fazer uma biografia chapa-branca. Mas eu não queria prejudicá-lo: ele vive em grandes dificuldades e sobrevive da arte dele. Por isso, eu brinco que nunca mais vou me meter na vida alheia porque fazer uma biografia é mexer com as memórias de uma pessoa. Muitas vezes para a pessoa podem ser lembranças bastante doloridas.

Z- E o sucesso dele foi realmente muito grande, né?

CSR- Com certeza. Ele teve uma época muito boa em que ele tinha todas as mulheres que queria, ganhava carro de gravadora pra fechar contrato, podia viajar. Conhecia todos os artistas, músicos. Mais dolorido que não fazer sucesso, é fazer sucesso e depois perder. Isso dói, dói muito. Engraçado que os universitários, os intelectuais falam muito sobre artista popular. Mas quando o artista popular chega perto deles, eles se assustam. Eles percebem que muitas vezes a pessoa é machista, tem preconceitos, é humano. Isso eu não estou falando do Germano em particular. Eles falam: “Cartola, Nelson Cavaquinho, são gênios”. Mas eles nem imaginam que essas pessoas no dia-a-dia eram pessoas completamente normais. O Cartola podia ter muita elegância nas letras e nos sambas dele, mas ele era um cara muito simples. O Nelson Cavaquinho convivia com prostitutas...isso de perto talvez incomode os intelectuais. E prejudica artistas populares como o Germano a terem mais reconhecimento.

Z- Você acha que por isso artistas que vem do meio universitário como Chico, Caetano conseguem ser mais aceitos?

CSR- Sim. Esse primeiro time da MPB teve uma educação formal. Mesmo que eles não tenham terminado a faculdade, eles tem um pedigree. Essa história do artista popular é gozado, porque o público não percebe que eles são pessoas normais. Eles precisam de dinheiro pra sobreviver. As pessoas não se conformam com isso. Muitas vezes liga pessoal de faculdade pro Germano: “Poxa Germano, você não quer fazer uma apresentação de homenagem pra gente?”. Isso é a maior mentira, eles não querem fazer uma homenagem. Na verdade, eles querem fazer um show para arrecadar dinheiro pra formatura e se aproveitam da pessoa. Tem um samba do Nelson Cavaquinho que ele fala que o importante é você dar o reconhecimento a pessoa em vida. Nesse samba, o Nelson não está falando de homenagem simplesmente. Ele está também falando de grana, porque o artista popular precisa pagar as contas e sobreviver. Muitas vezes os intelectuais falam: “Esses cantores populares só pensam em dinheiro”. Se esse pessoal de faculdade vivesse na pindaíba que muitos desses cantores vivem, eles saberiam a dificuldade que é viver de música popular no Brasil.

Z- No livro, você dedica capítulos inteiros para falar sobre a história de cantores e compositores que viveram perto do Germano como Jorge Costa, Caco Velho, Kazinho. Por que isso?

CSR- Eu percebia pelas músicas que essas pessoas foram fundamentais pra formação do Germano. Portanto, era preciso levantar a história de vida desses personagens que estão esquecidos. O Jorge Costa, por exemplo é um dos maiores compositores de samba do Brasil. Ele é um grande ícone negro de São Paulo como Solano Trindade, Geraldo Filme...ele falava de questões sociais em suas canções. Por que não falar do Jorge? Alagoano...uma figura fantástica e riquíssima.

Z- E que tinha uma origem bastante humilde, tendo passado grandes dificuldades.

CSR- Sim. Nas músicas dele, ele colocava as coisas que ele via no dia-a-dia, falando sobre a empregada, a prostituta...isso é fantástico.

Z- Você acha o Germano sofre algum preconceito por ser um sambista de São Paulo?


CSR- Eu acho que sim. Nas críticas sobre os discos do Germano, todos os jornalistas elogiam ele. Mas o único problema que todos falam é o sotaque paulistano (risos). Isso é um absurdo. O Jackson do Pandeiro, um cantor espetacular também tinha um forte sotaque nordestino. Isso fazia dele um artista pior?

Z- A Isaurinha Garcia também tinha sotaque...


CSR- Exatamente. Existe um certo preconceito desses críticos, mas dos músicos não. O Padeirinho da Mangueira, sambista consagrado no Rio, deu muitas músicas pro Germano gravar. Eles eram muito amigos e tinham grande respeito entre si. Quando o Padeirinho vinha pra São Paulo, ele sempre procurava o Germano. Hoje na Lapa, no Rio, muitos artistas novos gravam músicas do Jorge Costa e tem referência pelo Germano. Portanto, entre os cantores e músicos cariocas esse preconceito não existe.

Z- Em muitos trechos da obra, São Paulo é diversas vezes citada como se fosse um personagem do livro. Você teve uma forte preocupação em falar da cidade?

CSR- Sim, bastante. Esse negócio do Germano, um cara branco de origem portuguesa descobrir o samba na Praça da Sé, no centro de São Paulo, é algo curioso. Os negros se divertiam numa cidade onde havia uma exclusão muito grande. A imagem oficial de São Paulo como locomotiva do país é falsa. Existia um mundo de músicos, malandros, cineastas...um mundo que São Paulo tenta jogar debaixo do tapete. O samba Lata de Graxa fala muito disso. Ele estava fazendo muito sucesso e falando com saudade de um período que tinha acabado. Em 1954, o governo tentou fazer uma limpeza do centro e todos os engraxates foram despejados da Praça da Sé. Quando ele começa a se apresentar nos meios e comunicação e faz shows levando a lata, ele está falando essa história. Ele está sendo um representante de todo esse pessoal.

Z- O Tárik de Souza sempre escreveu que o Germano seria um Moreira da Silva de São Paulo. Só que a obra deles é bastante diferente...

CSR- Muito diferente. Mas as pessoas identificam muito eles dois. Na minha opinião, isso deve ser porque os dois usam chapéu (risos). O Germano praticamente nunca cantou samba de breque. O negócio dele é sincopado. Com o Moreira, o samba de breque assume uma forma muito específica com uma pausa no meio tendo uma fala. O Catedrático teve mais influência do Jorge Veiga. A fase inicial do Jorge, que tinha coisas mais gingadas...

Z- O que você achou de se proibir a venda do Roberto Carlos em Detalhes, biografia do rei feita pelo Paulo César de Araújo?

CSR- Eu acho lamentável. Li o livro e tem coisas interessantíssimas sobre a história da MPB. É complicado, porque no conteúdo da obra não tem nada que comprometa o artista. Pelo contrário, é um grande livro, uma grande homenagem ao rei. Acho que censurar uma obra é uma coisa bastante complicada...mas o Roberto Carlos achou que tinha que fazer isso. Mas por mais que ele tenha proibido, o livro está aí, e com a internet ninguém segura mais nada. Ninguém segura informação.

Z- Caio, o que você espera do seu livro sobre o Germano?

CSR- Espero que ele não seja mais encarado como um sambista gozado de São Paulo que usa chapéu. Espero que o livro sirva para as pessoas correrem atrás dele e que ele seja mais reconhecido. Em muitas publicações sobre a história da música brasileira, ele não é sequer citado. No recente 300 Discos Importantes da Música Brasileira, ele já aparece. Talvez esse movimento que eu tenha feito de perguntar pra todo mundo sobre esse artista, já fez ele ser mais lembrado. Eu espero que seja reconhecido como um astro da música brasileira. O Barra Funda é um ícone da nossa canção popular. Me perguntaram esses dias: “Quem é uma pessoa que se espelha nele e o segue?”. Eu não conheço ninguém que tenha o mesmo estilo e a mesma divisão que o Germano tem. Nisso ele é como o Jackson do Pandeiro, Ciro Monteiro, Moreira da Silva. São todos personagens únicos da música brasileira.

Livro: Sambexplícito - As Vidas Desvairadas de Germano Mathias
Autor: Caio Silveira Ramos
Editora A Girafa
Páginas: 448
Preço: R$ 52,00 em média



<< Capa