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Especial Samba Paulista

Entrada franca e saída a Bangu

Por Caio Silveira Ramos, especialmente para a Zingu!
Foto: acervo pessoal de Caio Silveira Ramos

Viajando sobre as nuvens, o vampiro vestido de verde. Herói das vagabundas, das vigaristas, dos maloqueiros e fumacentos, ele finalmente conseguiu escapar da prisão onde o Príncipe Ordenacional encarcera numa compota de vidro os espíritos libertinos. Lá vai ele voando, vai voltar a proteger as mocinhas de suas virgindades insistentes, vai espalhar a anarquia aguardada pelos sinuqueiros, boxeres amadores e dançarinos de bordéis. Agora, voando baixo, ele parece querer aterrissar sobre os cantores de bolero e as senhoras de escravos. Mas é só para dizer que está de volta.

Ele entoa um canto ganjento ao descer no meio da praça, sambando na ponta dos pés, atordoando o mundo. Mas a donzelamocinha o reconhece.

Indefesa, está na mão de outro, de outros, não importa. O que interessa é que ele está ali, para oferecer-lhe o beijo libertador de dentes afiados, pra vida dela renascer sobre escombros semeados. Encosta no balcão, já não é vampiro, é o bandoleiro charmoso, girando o gelo da bebida. Pisca, ela responde. Agora é corsário, se pendura nos cabos de convés e se joga em frente ao algoz de sua amada. Do outro lado, Capitão Gancho, sem soltar a Wendi de cabaré, se espanta quando do cipó em redemoinho salta não o corsário, mas um saci malazartes. Frente a frente, se desafiam, se estudam, o capitão, virado em matador, saca a pistola, mas nosso herói, feito um mandrasque de perna só- embora a outra exista e já esteja plantada na cara do bandido- tira do seu gorro um sabre fuzarqueiro e, em vez de furar o oponente, golpeia sua testa com o cabo. O outro tromba, mas não morre. Ele não quer matar. Só se for de amor aquela morena, a mais queridona das noites de Osasco. Mas alguém lhe dá uma pedrada na cabeça.

- Você de novo, 743! Fugiu do quartel pela vigésima vez, está sob o efeito de substância estupeficante, flerta com a mulher alheia e ainda fere um civil com uma arma de propriedade do exército?

Inquérito policial militar, o coronel perguntou: o que o senhor quer? Ficar seis meses preso ou expulso?

(Essa parte ainda não foi bem esclarecida pelos historiadores e estudiosos da música brasileira, havendo duas versões. A primeira, proclamada pelos anarquistas analíticos e por sete jogadores de ronda da Rua dos Gusmões: “Quero ser expulso! Não pediu pra escolher? Sou passarinho de gaiola pra ficar trancado? Na rua eu me dou melhor que nessa porcaria.” A segunda, mais aceita entre os teefepistas sintéticos: “eu poderia ser expulso, senhor?”)

Não se sabe se o 743 entrou numa cabine telefônica e nunca mais foi visto, mas dizem que naquele mesmo dia, num quartinho lá da Rua Aurora, três putinhas exibidas saíram na janela e olhando para o céu, suspiram:

- Barra Funda, meu amor!

Caio Silveira Ramos é advogado, compositor e pesquisador. Publicou Sambexplícito - As Vidas Desvairadas de Germano Mathias, a biografia do sambista Germano Mathias pela editora A Girafa. Este é um dos capítulos do livro que Zingu! publica com exclusividade com autorização do autor e da editora.



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