html> Revista Zingu! - arquivo. Novo endereço: www.revistazingu.net
Dossiê Cláudio Cunha

Profissão: Mulher
Direção: Cláudio Cunha
Brasil, 1982

Por Andrea Ormond, especialmente para a Zingu!

As estudantes universitárias brasileiras costumam adorar a escritora Márcia Denser assim como adoram Clarice Lispector, Ana Cristina César e Adélia Prado. Essas moças com certeza nem imaginam que, em 1982, Denser serviu de inspiração para aquilo que seus professores chamam, quase sempre horrorizados, de pornochanchada.

Não que Profissão Mulher -- baseado no livro de Denser, O Animal dos Motéis -- seja de fato uma pornochanchada clássica, no estilo consagrado por Carlo Mossy e David Cardoso. Mas poucos diferem alhos e bugalhos da produção comercial brasileira dos anos 70 e 80, ao ponto de saberem que o produtor e diretor Cláudio Cunha foi na realidade um sofisticadíssimo cronista de costumes.

Sempre antenado, de orelhas em pé, Cunha descobriu o sucesso de crítica -- em 1983 Paulo Francis citaria Márcia Denser como "a melhor escritora do Brasil" -- lançado no ano anterior e resolveu adaptá-lo ao cinema. O desafio de intercalar contos poderia ter virado rotineiro filme de episódios, mas aproveitou-se o mote de uma simpática agência de propaganda, unindo as quatro protagonistas em um meio comum.

As modelos Sandra (Wilma Dias) e Luiza (Simone Carvalho), a diretora de criação Natália (Patrícia Scalvi) e a secretária Vera (Lady Francisco) são tudo aquilo que o roteiro precisa para sugerir que o feminino é um delicado e turbulento ofício. Não querendo deixar dúvidas, o próprio diretor abre a história tecendo ilações sociológicas enquanto folheia, dentre outras, "Da Solidão à Plenitude Humana" -- obra do místico indiano Jiddu Krishnamurti.

Em seguida os causos se sucedem, tendo a agência como pano de fundo. Apesar de bastante identificado com a Boca do Lixo, Cláudio Cunha adorava filmar no Rio de Janeiro, e localiza o escritório em plena Av. Rio Branco. É o último dia do ano e os funcionários confraternizam de "amigo secreto" e fofocam. Os diálogos, escritos por paulistanos, erram ao chamar de "amigo secreto" a brincadeira que no Rio é geralmente conhecida como "amigo oculto".

Natália, diretora de criação, será a última a sair da agência, tonta à procura de lugar para beber. Entra na tradicional Casa Simpatia (Av. Rio Branco, 92), enxuga o estoque de vodka e, em meio a flashbacks amargos, conhece um representante de vendas (Otávio Augusto), com quem passa a noite. Na manhã seguinte, meio zonzos, dão um pulo até a Praça Mahatma Ghandi e impelido por Natália a transarem na via pública, o homem falha. Vingando-se da opressão e da estupidez masculina, a publicitária ri de se acabar.

Luiza aparece em uma festa, com o namorado (Mário Cardoso) e os manda-chuvas da agência, Telmo (Cláudio Marzo) e Neusa (a cantora Marlene, sim, a "Preferida da Aeronáutica"). Provando que sempre foi superior à Emilinha, Neusa arrasta todo mundo para seu apartamento e seduz Luiza e o namorado. Confusa -- eu também ficaria, se Marlene em pessoa me agarrasse -- Luiza foge e busca consolo em Telmo, que dormia no sofá.

A terceira história, baseada no conto Hell's Angels, talvez seja a melhor. Sandra Stewart (Wilma Dias), modelo de sucesso, desfila no salão de convenções do falecido Hotel Nacional e tem horror ao maquiador fresco (Fernando Reski). Acaba de completar trinta anos, ganhando bolo e homenagens na agência. Perceba-se que não há qualquer nexo temporal, pula-se do réveillon para outra festa e em seguida para uma adiante, a do aniversário de Sandra. Ela está aflita com a idade e, partindo para uma sessão no analista, conhece um motoqueiro de dezenove anos, chamado Robi. Desabafa com o analista (Fábio Sabag) o sentido fútil de sua existência, a discreta homofobia -- mas uma posterior ida ao motel com o rapazinho aparentemente a conduz ao amor, ao gostar íntimo de alguém.

Nesse meio tempo, a secretária Vera é assaltada no ônibus, chega em casa nervosa e dá de cara com a sobrinha Patrícia (Márcia Porto), arrumando-se para sair. Vera é o tipo de pessoa sofredora, subserviente, desprezada no lar e no trabalho. Esconde o bizarro segredo de masturbar-se com água fervendo, enquanto a sobrinha vive a coisa real em inferninhos. Em um destes Patrícia acaba conhecendo Telmo, que devia estar indo esfriar a cabeça de Luiza, e os dois parodiam Burt Lancaster e Deborah Kerr na areia da praia, quando o dia amanhece.

O final do rocambole não importa. Natália e Luiza chegam a ensaiar um tête-à-tête lésbico, onde a modelo parece mais inteligente que a diretora de criação, mas o encontro de almas não evolui além de beijinhos e banho na hidromassagem. A dinâmica e as locações são muito parecidas com as de Karina, Objeto do Prazer, de Jean Garrett; ambos da "Cláudio Cunha - Cinema & Arte", passam a impressão de que um requentou o outro, ou era tara.

Profissão Mulher ficou meses preso na censura e faliu o produtor e diretor. Não é de se espantar, pois Cunha fazia tramas populares na fronteira da inquietação intelectual, muitas vezes em um híbrido filosófico e sensacionalista. Entendê-lo só parece simples aos catedráticos preconceituosos, mas um dia até suas pupilas vão descobrir que por trás das bilheterias ocultava-se um questionador, um gauche, tão importante para o cinema quanto Márcia Denser foi para a literatura naquela década de 80.



<< Capa