Entrevista com Felipe M. Guerra
Por Gabriel Carneiro
Imagens: Acervo pessoal de Felipe M. Guerra
Felipe M. Guerra, 29 anos, é um dos mais interessantes cineastas independentes do Brasil hoje. Fã ardoroso do chamado cinema trash e do cinema de horror, sem deixar de lado seu gosto por outros tipos de produção, Felipe conta em entrevista exclusiva para a Zingu! como é fazer cinema amador. Jornalista, crítico do site especializado no cinema de horror, Boca do Inferno, e ocasional colaborador da Zingu! (nesse dossiê, ele assina o texto sobre Eles Comem Sua Carne, de Petter Baiestorf, filme que o levou a realizar suas próprias “bagaceiras”, como diz). Felipe também mantém o ótimo blog Filmes Para Doidos.
Felipe chegou a estourar com suas produções de baixíssimo orçamento, que emulam os filmes juvenis, slashers, entre outros, sempre com muito humor, e criatividade. Realizou seis filmes, três curtas e três longas. Os dois primeiros curtas, A Noite da Punheta Assassina e Ponto de Ebulição estão praticamente perdidos e não são motivo de orgulho para o cineasta. Depois de seu primeiro longa-metragem, Patrícia Gennice, de 1998, o cinema como realização entrou de fato na vida de Felipe do Monte Guerra. Em 2001, fez seu filme mais famoso, Entrei em Pânico ao Saber o que Vocês Fizeram na Sexta-feira 13 do Verão Passado. Depois vieram o curta Mistério na Colônia, com participação de Luciano Huck, e Canibais & Solidão. Nesse ano, Felipe se mudou para São Paulo para fazer mestrado em Comunicação integrada.
A entrevista, como verão, está regada de muito humor.
Zingu!: Quando começou seu interesse pelo cinema de terror? E em criar cinema?
Felipe M. Guerra: Meu interesse pelo cinema de terror me pegou de surpresa, porque quando eu era criança morria de medo de tudo. Quando passava os filmes da série Tubarão na Sessão da Tarde, por exemplo - e a Globo tinha o hábito de sempre exibi-los no verão -, eu costumava fechar os olhos em todas as cenas que o tubarão atacava. Numa bela noite estava vendo o SBT e a atração era o filme Um Lobisomem Americano em Londres. Pronto, o Silvio Santos criou um monstro: foi este filme do John Landis, em sua mistura perfeita de horror e humor negro - mais os efeitos especiais fantásticos de transformação do Rick Backer -, que me tornou um terror-maníaco. Já o interesse em fazer cinema vem da tenra idade, pelo menos desde quando eu me lembro. Quando era criança, costumava usar aqueles velhos bonequinhos dos Comandos em Ação para criar filmes imaginários: o boneco que tinha barba era o Chuck Norris, o que tinha bigode era o Burt Reynolds, e assim ia. Na adolescência, comecei a escrever roteiros baseados nos filmes que gostava, como Pulp Fiction – Tempo de Violência. Mas meus pais não tinham câmera, então para começar a tirar todas estas idéias do papel tive que comprar a minha, e a esta altura eu já estava com 19 anos!
Z: Como é fazer cinema amador no Brasil?
FG: É uma merda! Ou, numa resposta mais educada e polida, é dificílimo. O que me consola é que fazer o dito “cinema profissional” aqui é ainda mais complicado, envolvendo muita burocracia e muitos custos. Pouca gente sabe, mas fazer um filme, amador ou profissional, é relativamente fácil. Difícil mesmo é fazer com que ele seja visto, que é o objetivo principal da coisa. Um bom exemplo recente é Um Lobisomem na Amazônia , filme que o Ivan Cardoso terminou em 2005, até hoje foi porcamente lançado em meia dúzia de cinemas e ainda nem chegou às locadoras, uma vergonha! Para os amadores, como eu, o grande problema não é fazer, porque fazer é relativamente “descomplicado”, mas sim exibir e distribuir o filme depois de pronto. Nós tentamos vender o nosso trabalho, mas o espectador normalmente não quer saber de cinema amador, quer ver esse tipo de filme de graça. A primeira pergunta que me fazem é “Você faz filmes amadores?”, e a segunda é “Onde posso baixar para ver?”. São poucos os que pagam para ter acesso a essas produções, e para que seu filme seja exibido em festivais por este Brasil afora - teoricamente uma boa vitrine - também é bastante complicado. Em resumo, você tem que estar preparado para fazer filmes que pouca gente vai ver. É muito difícil algum amador “estourar” e virar ídolo das multidões no Brasil, embora lá fora isso aconteça o tempo inteiro (como Sam Raimi e Peter Jackson).
Z: Quanto tempo você demora para filmar e editar um vídeo?
FG: No meu caso, muito, porque eu sou um preguiçoso. Patricia Gennice (meu primeiro filme, de 1998) e Entrei em Pânico ao Saber o que Vocês Fizeram na Sexta-Feira 13 do Verão Passado levaram mais ou menos um ano, entre filmar e editar, para ficarem prontos. E como ambos a história de ambos se passa numa única noite, é uma verdadeiro milagre que ninguém perceba as diferenças de peso, de bronzeado e de cortes de cabelo dos atores! Canibais & Solidão levou exatos três anos para ser finalizado, devido a uma série de problemas: um dos atores desistiu quando 80% do filme estava pronto, outra atriz desistiu logo em seguida, e eu fui obrigado a refilmar quase tudo com outros dois atores. Eu tenho inveja de pessoas como o catarinense Petter Baiestorf, que são “hiperativos” e conseguem filmar três ou quatro filmes por ano, e quase sempre com a mesma equipe de camaradas fiéis. Eu não consigo e nem posso: por trabalhar como jornalista, estou o tempo inteiro em função do meu emprego. E, quando não estou, tenho dificuldade para reunir os atores, que ou trabalham ou querem festa, ou namoram, ou estudam, ou a puta que pariu. Sempre há um "ou". Já reuni quatro pessoas para fazer uma cena e tive que cancelar porque o quinto avisou em cima da hora que não ia poder aparecer. Por isso que cada vez trabalho com pessoas mais jovens, que tenham tempo livre para filmar.
Z: Quanto, em média, você gasta num projeto seu, contando produção e marketing?
FG: Meu filme mais conhecido, o slasher Entrei em Pânico ao Saber o que Vocês Fizeram na Sexta-feira 13 do Verão Passado, de 2001, custou 250 reais, já contabilizando o “marketing” (que eram uns poucos cartazes em A4 xerocados em preto-e-branco). E isso para um filme com duas horas de duração. Esta é uma prova de que fazer cinema amador é simples e custa relativamente barato. Se alguém falar que fez um filme amador com 20 mil reais, desconfie na hora: ou ele está mentindo, ou não sabe o que significa "cinema amador". Depois gastei mais um pouco gravando cópias desse filme em fitas (era a época do VHS ainda) e mandando diversos lugares em busca de divulgação: para sites, fanzines e revistas de cinema. É o tipo de divulgação “quase grátis” que os amadores precisam ter para “aparecer na mídia”. Já meu filme mais recente, Canibais & Solidão, de 2006, custou 600 reais, mas tudo porque eu quis extrapolar: metade do orçamento (R$ 300,00) eu gastei para contratar uma banda e promover uma festinha como pano de fundo para uma cena que não dura nem 5 minutos! Nunca mais faço uma besteira dessas... Pelo menos o filme já se pagou umas duas vezes.
Z: Como você recruta atores?
FG: Antes era por amizade, mas meus amigos ficaram muito velhos e “sérios” para esse tipo de coisa. Hoje recruto por disponibilidade (os homens) e por comprometimento e beleza, claro (as mulheres). Acho bom ressaltar que, por morar numa cidade pequena [Carlos Barbosa, RS], o pessoal daqui tem muitos pudores e ninguém quer fazer cenas mais delicadas. Até hoje, veja só que ridículo, eu não consegui filmar uma única cena de beijo - só um selinho, e mesmo assim bem rápido. As namoradas e os namorados dos atores reclamam bastante quando seus cônjuges filmam com outras pessoas - e cenas que envolvam as mínimas citações de sexo ou de nudez precisam ser muito bem combinadas e planejadas, senão o pessoal não topa fazer. Por isso, os papéis mais difíceis nos meus filmes sou eu mesmo que faço: já me vesti de mulher, interpretei gay e até apareci nu. Coisas que ninguém quis fazer, e para mostrar que, em se tratando de cinema, não pode ter frescura, eu mesmo fiz!
Z: Como faz os efeitos especiais e a maquiagem?
FG: No começo, era tudo feito em casa: sangue de groselha e truques de câmera para disfarçara porcaria que ficava. Em Entrei em Pânico... tive que investir um pouco mais, mas novamente eram truques simples que aprendi de tanto assistir filmes. Já usei até tripas reais, retiradas de animais, em Entrei em Pânico... e em Canibais & Solidão. Mas no ano passado, eu e meu irmão Rodrigo fizemos um curso de maquiagem a efeitos especiais com o Rodrigo Aragão, diretor do filme de zumbis Mangue Negro, e isso deve dar um ar mais “profissional” às nossas cenas de violência.
Felipe com Rodrigo Aragão e seu irmão Rodrigo Guerra
FG: A idéia de fazer filmes surgiu primeiro, mas eu sabia que precisaria organizar uma equipe para tirar essa idéia da cabeça e transformá-la em realidade. Hoje, a Necrófilos não sou só eu, mas todos os atores e atrizes que me ajudam a tirar os roteiros do papel. Em especial, meu amigo e colega de trabalho Eliseu Demari (que também é produtor) e meu irmão Rodrigo Guerra, que tem ganhado o papel de galã nos filmes mais recentes
Z: Como surgiu a Necrófilos Filmes?
FG: De uma aposta que eu fiz com meu amigo e colega de trabalho, Eliseu Demari, de que conseguiria produzir um curta-metragem amador em uma única tarde, isso em 1996. Aí filmei Ponto de Ebulição, que ficou uma merda, mas ganhei a aposta. O engraçado é que eu tinha escrito Ponto de Ebulição como o roteiro de um longa-metragem sério, estilo Tarantino, que estava muito na moda naquela época, e, para transformar em curta, simplesmente peguei as páginas e fui riscando toneladas de diálogos com caneta preta. Sem falar que, do jeito que ficou tosco, o que era para ser uma história policial séria se transformou em comédia involuntária. Na hora de batizar a "produtora", inventei o pomposo título "Necrófilos Produções Artísticas", e acabou ficando. Necrófilos era o nome de uma banda punk que formei naquele mesmo ano com uns amigos e que, felizmente, não saiu da garagem, e acho que nem chegou a durar um mês
Z: Como surgiram seus filmes?
FG: Sabe que às vezes nem eu sei? Costumo rever os filmes ou reler os roteiros e pensar comigo mesmo: “Nossa, de onde tirei isso?”. Será psicografia? O mais comum nos meus filmes é as piadas que eu acho engraçadíssimas no roteiro, não funcionarem ao serem filmadas. Em compensação, outras piadas funcionam melhor do que eu imaginava quando escrevi o roteiro. Normalmente, as idéias surgem de misturas mirabolantes que eu faço de filmes que gosto, mais ou menos como um Tarantino dos pobres. Por exemplo: meu primeiro filme, Patricia Gennice, é uma versão adolescente de Depois de Horas , do Scorsese; Entrei em Pânico... é uma homenagem/sátira aos slasher movies, e Canibais & Solidão é uma brincadeira com o ciclo de filmes de canibais do cinema italiano, que eu também gosto muito, misturada com aquelas comédias dos anos 80 sobre adolescentes perdendo a virgindade.
Z: Ponto de Ebulição está perdido, certo? Do que se tratava?
FG: Ponto de Ebulição, na verdade, não está perdido, mas eu fui mané e gravei um filme (pornô, por sinal) em cima da fita onde estavam as gravações originais. Assim, sobrou apenas uma cópia da cópia da cópia da cópia do filme, com qualidade lamentável de áudio - você consegue escutar um pouquinho se aumentar o volume da TV até o máximo - e de vídeo. O que é uma pena, porque o curta talvez ficasse divertido se eu jogasse no computador e reeditasse de maneira decente, já que na época em que foi feito eu ainda era adepto da edição via corte seco, de um videocassete para o outro, uma verdadeira loucura - até hoje considero verdadeiros heróis os que já fizeram seus filmes, principalmente longas, usando apenas dois videocassetes. Hoje, mesmo se eu capturasse esta versão tosca que sobrou, teria que dublar todos os diálogos, porque eles estão inaudíveis. Então não rola, porque ia perder metade da graça. Ponto de Ebulição conta a história de quatro jovens drogados que resolvem assaltar a casa de um banqueiro para arrumar dinheiro para comprar drogas. Só que o tal banqueiro que eles assaltam, interpretado pelo meu irmão Rodrigo na tenra idade, foi jurado de morte por um traficante. Os ladrões matam ele sem querer e, enquanto esquartejam o cadáver para se livrar da prova do crime, acabam sendo visitados por um assassino profissional enviado pelo traficante para matar o banqueiro, e tudo vira um banho de sangue. Eu interpreto um dos jovens drogados, e minha atuação é tão vergonhosa que depois dela eu jurei que ia passar o resto da vida atrás da câmera! Já a câmera foi emprestada por meu amigo Mathias Gusso, e, por causa disso, tive que colocá-lo no roteiro como o assassino profissional. Curiosamente, ele voltaria ao mesmo papel de assassino profissional em 1998, no meu primeiro longa, Patricia Gennice. Ficou uma coisa meio Tarantino, o mesmo personagem em dois filmes diferentes, mas foi completamente não-planejado!
Z: E o anterior A Noite da Punheta Assassina?
FG: A Noite da Punheta Assassina é o tipo de bobagem que você faz quando está alcoolizado ao lado de amigos igualmente alcoolizados. Filmamos numa madrugada de 1995, com a câmera do Mathias novamente, quando estávamos completamente mamados de cerveja e cachaça. Depois, eu usei uns 60% de imagens retiradas de outros filmes para criar uma narrativa que tivesse começo, meio e fim. A trama é sobre quatro rapazes que morrem de tanto se masturbar (olha que barbaridade!), mas não mostrava nada explícito. Aí um disco voador passa na órbita terrestre e lança um raio no cemitério onde eles tinham sido sepultados (aqui eu tinha editado cenas do Plan 9 From Outer Space), e os quatro punheteiros voltam à vida como zumbis sedentos de sexo. Era horrível, mas tinha ficado engraçado. Quando eu comecei a mostrar para todo mundo e a montagem ganhou certa aura "cult" entre os jovens de Carlos Barbosa, a única fita com o filme repentinamente desapareceu, e nunca mais foi encontrada. Acredito que um dos jovens "atores" tenha sumido com ela por perceber que pagou o maior mico. Mas os poucos que viram lembram com muita saudade. Quem sabe daqui uns 40 anos a fita não reaparece, tipo o José Mojica Marins, que encontrou um de seus filmes feitos na infância somente depois de velho?
Z: Como esses curtas diferem dos seus longas?
FG: No que esses curtas diferem dos meus longas? Eram muito toscos, feitos no improviso mesmo, estilo "tudo filmado num take só": se ficar bom ficou, se ficar ruim azar. Tudo sem planejamento, tentando contar histórias sérias sem recursos. De certa forma, o resultado fiasquento de ambos me deu algumas idéias do que eu teria que observar na realização de um longa. Uma das coisas era ter controle absoluto de tudo, ao invés de deixar outros filmarem no meu lugar, e por isso desisti de ser "ator" para ficar atrás da câmera em tempo integral.
Z: Você tem alguma preocupação estética ao fazer seus filmes?
FG: Minha única preocupação estética é manter um bom ritmo e filmar da forma mais profissional possível, mesmo sendo um filme amador. Preocupo-me com o enquadramento dos atores, com a iluminação (sempre natural; não usamos luz artificial) e principalmente com o som, com a forma como os atores falam. Nos meus primeiros filmes, eles atropelavam os diálogos ou falavam muito rápido, e aí ninguém entendia. Ainda tenho esse problema hoje, mas bem menos. Tem filmes amadores por aí que são um horror: mal-filmados, com câmera sempre tremendo, mal-editados, cenas longas e arrastadas, diálogos que mal se escuta... Tento dar uma atenção especial para esses aspectos, pois ver um filme amador já é difícil para algumas pessoas, imagine então se for mal-feito!
Z: O que faz você decidir filmar um roteiro, dentre tantos escritos?
FG: É uma difícil decisão. Geralmente converso com meu irmão Rodrigo e com o Eliseu, que são as outras cabeças pensantes por trás da Necrófilos Produções Artísticas, e pergunto: "E aí, o que vocês acham dessa idéia?". Detalhe que, àquela altura, a "idéia" é um roteiro já escrito! Se eu percebo que eles ficam entusiasmados, a coisa anda facilmente. Foi assim com Canibais & Solidão, por exemplo. Mas se eles começam a botar dificuldade, aí complica. Em 2008, eu escrevi dois roteiros, por exemplo, e o primeiro, que era para ser uma comédia sobre o mundo do cinema amador, foi recebido com certa frieza pelos dois, assim optamos por filmar antes o segundo roteiro, que é a tão prometida continuação do meu slasher Entrei em Pânico.... A produção está meio parada com a minha mudança de cidade, mas pretendo começar a tirar do papel nas férias de julho e, se tudo der certo, terminar no final do ano para lançamento nacional em 2010.
Felipe e o grande José Mojica Marins
Z: Por que filma terror?
FG: A bem da verdade, digamos que eu QUERIA filmar terror. Tenho dois roteiros de filmes de horror sérios (Enigma e Horrores do Inferno) que não foram filmados ainda justamente porque eu não tenho condições de fazê-lo - se alguém tiver, e quiser fazer, vendo ambos os roteiros baratinho! Então, com os recursos que tenho no momento, tanto técnicos quanto humanos, acabo filmando comédias com toques ou citações de terror, o que é bem diferente. Cheguei à conclusão que fazer algo sério sem recursos não funciona. Já vi supostos "terrores sérios" filmados por outros diretores amadores e simplesmente não dá para levar aquilo a sério, nem com muita boa vontade. O próprio Entrei em Pânico... foi concebido inicialmente como slasher sério, e eu comecei a avacalhá-lo e torná-lo humorístico à medida que filmávamos, porque sabia que não ia funcionar de outra maneira. E agora, ano passado, caí na mesma armadilha ao escrever o roteiro da continuação Entrei em Pânico 2. Meu irmão Rodrigo leu e disse: "Acho que tem que ser mais puxado pra comédia". Aí eu li o roteiro de novo e pensei comigo mesmo: "Puta que o pariu, ele está certo! Eu fiz de novo, que nem no primeiro, escrevi um roteiro sério demais!". Já pensei em várias modificações, e certamente quando começarmos a filmar, em julho deste ano, o roteiro já estará bem mais engraçado e menos sério do que eu tinha escrito.
Z: Qual o papel do site Boca do Inferno na sua formação como cineasta?
FG: Papel de incentivador e de divulgador, principalmente. Eu comecei a filmar antes de escrever para o site, mas na época do Entrei em Pânico..., lá por 2002, o pessoal do site fez uma coisa muito legal, que foi resenhar o filme como artigo da Boca do Inferno. Quem escreveu foi o Renato Rosatti, e eu fiquei emocionado porque nunca imaginei um filme amador, como o meu, ganhando uma análise detalhada num site sobre cinema fantástico, como se fosse uma produção séria. Aquilo para mim foi tipo o ápice da carreira, reli o texto umas 40 vezes na mesma semana, e ficava pensando: "Que legal, ele percebeu essa citação", ou "Ah, concordo que esta parte não ficou muito boa". Depois, quando lancei o curta Mistério na Colônia e o longa Canibais & Solidão, novamente eles me deram amplo espaço e divulgação, mesmo este último filme não sendo exatamente sobre terror. Então, sou muito agradecido e devo muito à Boca do Inferno, não só pela chance que eles me deram de escrever para o site com carta-branca sobre qualquer assunto, mas também pela divulgação e pela vitrine que o site é para a minha pessoa e para o meu trabalho.
Z: Você concorda com a Prof. Laura Cánepa quando ela diz que seus filmes emulam os teenpics muito mais do que qualquer outra coisa [no artigo Necrofilia Cinematográfica no Rio Grande do Sul, presente no livro Cinema de Bordas 2]? Por quê?
FG: Concordo plenamente. Acho mais fácil fazer cinema com um olho no público jovem, porque, apesar de estar já nos 30 anos de idade, ainda me considero um jovem, e não consigo me imaginar fazendo um filme com atores realmente adultos - quarentões ou cinqüentões -, nem sei se teria capacidade para escrever falas que soassem verossímeis na boca de personagens mais velhos. Além disso, eu cresci vendo comédias adolescentes desmioladas, como Porky's, O Último Americano Virgem, Almôndegas, Clube dos Cafajestes, e outras que nem convém citar de tão ruins que são - e acho sinceramente que não se faz mais filmes assim. As comédias voltadas ao público adolescente, hoje, são tão debilóides que parecem estar sendo escritas por crianças de 10 anos. Eu sempre quis fazer filmes divertidos, que atingissem principalmente um público mais jovem, e, para falar a verdade, acho que esta é uma carência do cinema nacional hoje. Você vê, não há filmes juvenis, você tem aqueles que são muito infantis, como os filmes da Xuxa e do Didi, e aqueles voltados diretamente para um público adulto, mas pouco ou nada que seja especificamente voltado a um espectador na faixa dos 14 aos 25 anos. Acho que faltam filmes nacionais para o público jovem, e achei que podia mostrar que era possível fazer algo bem longe do "padrão Malhação" de "produto voltado à juventude" quando filmei Canibais & Solidão.
Z: O que te levou de fato a filmar um longa-metragem?
FG: O amor pelo cinema. Sempre quis, sempre gostei e acho que, desde que peguei numa câmera pela primeira vez, sabia que um dia iria dirigir longas-metragens. Também tenho um defeito de ser prolixo, eu não consigo filmar curtas nem com muita boa vontade. Tenho o maior respeito por quem consegue, e existem curtas-metragens que são simplesmente fantásticos, mas eu começo a pensar numa idéia para um curta e logo acabo com um longa nas mãos. O problema é que eu fico com aquela sensação de que, num curta, não vou ter tempo para contar a história do jeito que eu quero, e assim vou enrolando até fechar o tempo de um longa. O pior é que se eu realmente filmasse tudo dos roteiros, do jeito que eu escrevo, todos os meus filmes teriam umas três horas de duração. Ainda bem que eu tenho o bom senso de cortar boa parte das coisas mais desnecessárias.
Z: Patricia Gennice é um filme de gozação?
FG: É, acho que pode-se dizer que sim. É uma piada muito regional, uma história que só o pessoal de Carlos Barbosa vai entender 100%, porque tem muitas citações a lugares, nomes de ruas, de bairros, de lojas e até de pessoas verídicas, como o César Camini, que no filme interpreta ele mesmo, e é um personagem folclórico da cidade. Quando eu escrevi o roteiro, era para ser uma versão de Carlos Barbosa do Depois de Horas, do Scorsese. Eu queria mostrar que, depois que anoitece, uma cidade pequena, como a minha, é tão povoada de doidos e maluquices quanto uma cidade grande. Mas você percebe, pelas atuações, que ninguém está levando a coisa muito a sério. Como é meu primeiro longa-metragem, eu não sabia direito como fazer, a própria narrativa é esquisita, ora tem voz em off do personagem principal, ora ele vira e fala direto para a câmera, ora não faz nada disso, é uma zona! Eu corrigi ele bastante no computador e fiz uma "versão especial de 10 anos" (completados em 2008) que ficou 15 minutos mais curta e também mais "universal", eliminando várias referências que eram muito regionais. Acho que assim torna-se mais fácil para quem não conhece Carlos Barbosa entender a história. Mas, sei lá, Patricia Gennice ainda é um filme que eu tenho que estar do lado do espectador explicando as piadas, porque muita coisa não dá para pegar por conta própria, o que é um defeito óbvio do filme. Quer um exemplo? Sabe por que o personagem do assassino profissional se chama Antonio Mastros? Ora, porque já existia o Antonio Banderas! (risos)
Z: Quem era a garota que inspirou Patrícia Gennice? O filme deu frutos nesse aspecto?
FG: A garota que inspirou a personagem Patricia Gennice era uma moça por quem eu estava apaixonado na época que escrevi o roteiro, e com quem eu acabei namorando graças a essa homenagem tão romântica. O engraçado é que a história do filme em si, se analisada friamente, é bem pouco romântica, porque o herói do filme só quer comer a tal Patricia Gennice, não tem praticamente nada de amor nem romance na coisa, apesar de tocar a musiquinha do Ghost [Unchained Melody, dos Righteous Brothers] e tal. Mas enfim: como todo "artista" influenciado pela sua musa inspiradora, eu idealizei "Patricia Gennice" como minha mulher ideal e fiz do filme a busca de um rapaz pelo seu grande amor - ou grande noitada de sexo, como você preferir. O nome da personagem inclusive é um anagrama construído com as letras do nome dessa moça que eu queria impressionar. O nosso namoro terminou há um bom tempo, como acredito que também já teria terminado o do Lucas e da Patricia Gennice caso o filme fosse adiante, mas continuamos grandes amigos até hoje. E não, ela não é a garota que interpreta a Patricia Gennice no filme.
Z: Você acredita em algum motivo específico de Entrei em Pânico... ser seu filme mais famoso até hoje?
FG: Provavelmente a febre Pânico, uma praga daquela época em que o meu filme foi feito. Naqueles tempos, entre final da década de 90 e início dos anos 2000, o sucesso da série do Wes Craven mostrou aos grandes estúdios que havia um público adolescente ávido por histórias com assassinos mascarados, e isso deu uma sobrevida aos slasher movies, que andavam meio mal das pernas desde o começo dos anos 90. A garotada toda estava correndo aos cinemas e para as locadoras querendo ver qualquer merda neste estilo, como Eu Sei o que Vocês Fizeram no Verão Passado e Lenda Urbana, duas bombas que trazem tudo aquilo que dezenas de filmes dos anos 80 já tinham mostrado, e mesmo assim, de uma hora para a outra, parecia tudo a maior genialidade. Eu, claro, achava isso simplesmente ridículo, e quis brincar com a "febre". E funcionou, meu filme foi um sucesso, também pela curiosidade de ser uma produção que foi feita com míseros 250 reais numa cidadezinha de 25 mil habitantes. Acho que este ainda é o grande interesse e também a melhor coisa do Entrei em Pânico...: mostrar à garotada que é possível fazer seu próprio filme, que para isso só é preciso ter vontade e boas idéias, e que qualquer um pode fazer coisa melhor do que estas bobagens pretensiosas que estavam sendo lançadas nos cinemas na época. Vendo hoje, eu já não gosto muito do Entrei em Pânico..., e ainda quero reeditá-lo totalmente no computador. Mas tem seu mérito inegável: foi o filme que levou a Necrófilos Produções Artísticas ao "showbusiness". Se não fosse por ele, acho, sinceramente, que eu não estaria aqui falando tanta besteira agora.
Z: Por que, nos dias de hoje, você não gosta dele?
FG: Porque é muito longo, muito chato e muito mal-editado! Minha idéia para este filme era fazer o contrário de todos os slasher movies tradicionais da época: focar primeiro nos personagens e nas relações entre eles, uma coisa bem comédia adolescente. Então, quando você estivesse acostumado com aqueles personagens, e inclusive já tivesse escolhido os seus personagens preferidos, começaria o slasher propriamente dito, e vários daqueles sujeitos iriam morrer sem dó nem piedade. Assim, eu esperava que o espectador realmente se importasse com o destino dos personagens, ao contrário dos slasher tradicionais, onde 90% dos caras são apenas bucha de canhão ou carne de açougue. Nunca pesquisei a fundo para saber se minha tática funcionou, mas na sessão de lançamento, no cinema em Carlos Barbosa, lembro que todo o público fez "ooooohhhh" quando um dos personagens morre inesperadamente, até porque parecia que ele era o protagonista da história. Isso, por sinal, foi uma coisa que eu sempre detestei nos slasher movies tradicionais: com raríssimas exceções, você já sabe desde o começo quem morre e quem vive. Pegue a própria série Pânico: era para o personagem do David Arquette ter morrido no primeiro filme, depois no segundo, mas chegava na fase de edição e o diretor sempre mudava de idéia e "ressuscitava" o cara para não ficar de mal com os fãs. Então tem personagens que você sabe que nunca vão morrer. Se a chata da Neve Cambell morresse no começo do Pânico 3, era até capaz de ser um filmaço. Mas isso não acontece, e por isso é um saco: que graça tem você manter uma mesma pessoa viva numa série de terror por três filmes? Já pensou se os 11 Sexta-feira 13 tivessem a mesma protagonista? Foi isso que eu quis fazer no meu filme: qualquer um podia morrer a qualquer hora. O problema é que a primeira metade, a da apresentação dos personagens, ficou longa demais, sem muitos assassinatos, e é realmente muito chata. E algumas cenas também ficaram ruins porque foram completamente improvisadas, e muito mal improvisadas, como a em que aparece um crânio de gesso com um bilhete ridículo, para passar a idéia de que aqueles são os restos mortais de uma personagem assassinada. Originalmente, como estava previsto no roteiro, a cena deveria mostrar dois personagens estripados, mas os "atores" me deixaram na mão e tive que tapar o furo com um mísero crânio de gesso. Teve uma atriz que não quis se sujar de sangue falso, por isso tive que improvisar, matando-a com um bonequinho vodu - mas ninguém entendeu. Por essas e por outras, eu não gosto do filme hoje. Se pudesse, eu o faria diferente. Quem sabe não invisto futuramente num remake, já que isso está tão na moda?
Z: Você acha que algumas piadas, como a do Show do Milhão, não ficaram meio datadas vistas hoje?
FG: Ficaram... O Show do Milhão era um sucesso estrondoso na época, não tinha quem não soubesse dele, mas acabou, né? Daqui a cinco ou dez anos ninguém vai lembrar o que era, e aí perdi uma das melhores piadas do filme! Se bem que os oito Oscars do Quem Quer Ser um Milionário? botaram estes programas de perguntas e respostas na moda novamente! Mas, de modo geral, acho que as brincadeiras todas com Pânico, Lenda Urbana, A Bruxa de Blair (outro grande sucesso daquela época) também ficaram bastante datadas. Uma pena, mas também o risco de se filmar esse tipo de história com sátiras bem definidas.
Z: Por que usar Pânico como filme chave, entre tantos slashers teen americanos?
FG: Bom, vou tentar explicar isso direitinho: quando escrevi Entrei em Pânico..., eu achava todos esses slasher teens dos anos 90 muito ruins, mesmo o famoso Pânico, do Wes Craven, para mim não passa de uma Sessão da Tarde que acabou ganhando status de clássico. Na véspera de começar a escrever o roteiro, eu passei uma semana revendo todos os 10 filmes (na época) da série Sexta-feira 13, e queria fazer algo parecido como forma de protesto à suavização dos slashers nos anos 90. Então, na verdade, Entrei em Pânico... não é uma homenagem, como pode parecer, mas sim uma crítica aos slashers dos anos 90. Esta crítica aparece em forma de sátira, e começa pelo fato de o assassino usar a máscara do filme Pânico, mas se chamar "Geison”, numa homenagem ao vilão da série Sexta-feira 13. Depois há várias citações e homenagens aos slashers dos anos 80 – é só reparar na quantidade de citações a Sexta-feira 13 e Halloween, por exemplo), ao mesmo tempo em que ridiculariza a maioria dos slashers moderninhos dos anos 90, alguns citados nominalmente, como Pânico 3 e Lenda Urbana 2. Finalmente, eu também reservei uma piada toda especial para esta garotada de hoje que não vê filme antigo porque acha chato, que é a cena em que o personagem do meu irmão Rodrigo assiste ao clássico O Massacre da Serra Elétrica e reclama que não aparece a serra cortando os corpos! Mas também fiz piadas com vários clichês dos slashers em geral. Por exemplo, o fato de o assassino nunca morrer, tão comum nesse tipo de filme, ou o fato de mostrar 99% dos personagens como usuários de drogas, porque nos slashers convencionais quem usa drogas morre, então aqui eu criei um contra-clichê, porque no meu morrem primeiro os caretas! Além disso, eu quis fazer todas as cenas de morte exageradamente sangrentas, justamente porque os slashers dos anos 90 eram uma nulidade neste sentido, e aí tem muitas citações a O Massacre da Serra Elétrica (morte a marteladas) e Terror na Ópera (a faca atravessada na mandíbula), entre outros. Pena que, como eu disse, muita gente não entendeu e achou que na verdade eu estava homenageando Pânico e seus derivados, quando é bem o contrário.
Z: Como você foi parar em reportagens da Globo?
FG: Mandando cópias dos filmes para lá e para cá, de vez em quando, há retorno. No meu caso, isso aconteceu quando a Revista SET publicou uma resenha curtinha do meu filme Entrei em Pânico..., inclusive dizendo que era melhor que muita coisa que o Casseta & Planeta fazia. Isso atiçou a curiosidade de algumas pessoas da RBS, a sucursal gaúcha da Globo, e eles fizeram uma entrevista conosco para o programa Teledomingo, que só passa no Rio Grande do Sul. A reportagem foi parar na redação do Fantástico. Eles gostaram e exibiram-na em rede nacional. Isso abriu uma série de portas, inclusive o convite para filmar um curta-metragem com o Luciano Huck, numa reportagem que foi apresentada também em rede nacional no Caldeirão do Huck.
Z: Com a aparição no Fantástico e no Caldeirão do Huck, ficou mais fácil fazer filmes?
FG: Mais fácil? Ficou mais difícil, isso sim! Primeiro porque os meus atores viraram “estrelinhas” por terem aparecido na TV, e começaram a se recusar a fazer cenas mais "delicadas", como aparecer de cueca, temendo constrangimento em rede nacional. Segundo, porque, com a boa projeção que essa divulgação nacional me deu, tive que investir num padrão de qualidade um pouquinho maior. Confesso que meus filmes na fase pré-aparição na TV eram muito ruins. Depois investi mais em câmera, em edição no computador... Só me arrependo de não ter aproveitado essa época em que estive na mídia (2002-2003) para fazer e lançar mais filmes... Também por não ter aproveitado as poucas portas que se abriram naquela época. Fui convidado, por exemplo, para ser diretor de um filme de pornográfico em Porto Alegre, mas recusei por achar que não conseguiria segurar o riso na hora de filmar. Se me convidassem de novo hoje, eu aceitaria sem pensar duas vezes! Até porque pornô é o tipo de cinema nacional mais visto ainda, acredito eu.
Z: Por que aceitou fazer Mistério na Colônia?
FG: Porque eu seria louco se não aceitasse - só pelo fato de fazer um curta-metragem de 100 reais com o Luciano Huck para aparecer em rede nacional no horário nobre da Globo. Isso já não é motivo suficiente? Na verdade fiquei meio apavorado quando a produção do programa fez a proposta, pelo pouco tempo que me deram. E se eu não conseguisse terminar? Se desse alguma zebra na minha edição arcaica usando o sistema dois videocassetes? Imagine a equipe da Globo me esperando no Festival de Gramado e eu não apareço porque não consegui terminar de editar o negócio. Foi uma aposta arriscada, uma loucura mesmo, se fosse hoje já ia pensar 10 vezes e tentar fazer algo menos ambicioso. Mas no fim tudo acabou bem. E a verdade é que eu pensei sinceramente que esse lance com o Luciano Huck poderia me abrir muitas portas. O pior é que foi o contrário: através da internet, vários caras me xingaram, na época, dizendo que eu tinha "me vendido ao sistema", só que eu seria uma besta se não aceitasse uma vitrine dessas!
Z: Como foi trabalhar com Luciano Huck?
FG: Foi muito legal. Nunca fui fã do trabalho dele e, antes desse convite, eu nunca tinha assistido ao programa dele também. Mas verdade seja dita: o Luciano é um cara muito bem humorado e simpático. Passei um dia inteiro filmando com ele, e vi o cara caminhando debaixo de um sol daqueles, subindo morros, suando pra burro e ainda tomando banho de suco de groselha, que é a coisa mais melequenta do mundo. Se ele fosse arrogante ou metido a astro, teria xingado todo mundo e mandado a coisa à merda, ou então se recusado a fazer, mas o cara não arregou, rolou no chão, se sujou... No outro dia, no Festival de Gramado, é que ele mostrou aquele lado mais estrelinha, afinal estava rodeado por centenas de fãs, mas nada assim para ter raiva do sujeito. Eu continuo não assistindo o programa dele - sem contar esse que eu apareci, claro -, mas acho que o Huck realmente tem seus méritos, o cara se esforça para fazer coisas diferentes, e este "trabalho" que a gente fez juntos é a prova disso. Pô, não seria bem mais fácil ele me pagar uma passagem lá pro Rio e fazer alguma bobagem no estúdio mesmo? Pois é, mas ele preferiu trazer toda a equipe dele para o fim do mundo que é Carlos Barbosa. Por esse lado foi bem legal mesmo, e divertido, porque enquanto eu filmava o curta todo sozinho, a produção do programa tinha câmera, iluminador, microfonista, um monte de gente nos bastidores para me filmar filmando o Mistério na Colônia. Isso aí chegou a ser irônico!
Z: Pessoalmente, acho a versão reediatada bem melhor, principalmente por tirar o comentário idiota do Huck no final. Na primeira versão, você manteve por algum motivo em particular?
FG: Claro: só tínhamos filmado aquele final! Quando o Huck surgiu com a sugestão de terminar a história com uma brincadeira, eu aceitei desde que mesmo assim a gente filmasse o final que estava no roteiro, e que mostrava o povo cercando o personagem dele e esquartejando-o para servir de jantar. Então filmamos a primeira versão, a da brincadeira com o Rio Grande do Sul, que foi improvisada pelo Luciano na hora mesmo, e quando era para filmar a conclusão "oficial" ele alegou que já estava muito tarde e precisava voltar para Gramado, onde tinha compromissos em algumas horas. Talvez ele simplesmente não quisesse se sujar de suco de groselha novamente, ou não quisesse "morrer" no filme, ou estava realmente cansado, já que filmamos sem parar da manhã ao final da tarde, uma coisa absurda para um "astro da Globo". Mas fiquei meio chateado sim, afinal esta foi a minha primeira amostra de como você sofre influências externas quando não trabalha de maneira totalmente independente. Por isso, quando reeditei o curta, em 2008, resolvi que ia matar o Huck de qualquer jeito no final, como estava no meu roteiro original. Minha idéia era reunir aqueles atores que interpretaram os moradores da cidade no curta, voltar até o mesmo local e filmar eles atacando alguém vestido como o Luciano. Mas ia dar um trabalhão dos diabos. Então eu estava fuçando numas fitas antigas minhas, gravadas 10 anos antes, e encontrei umas imagens que fiz de uma enorme fogueira de festa de São João. Na hora, pensei: O Homem de Palha. E foi a minha salvação. Gravei uma fala em off de um dos atores convidando o personagem do Huck para um churrasco e cortei direto para a fogueira crepitando com sons de gritos do Luciano retirados de uma cena anterior e adicionados via computador. Quando aparece a imagem do Huck se debatendo no meio das chamas, eu simplesmente filmei uma folha de papel pegando fogo na frente da tela da TV que exibia uma cena anterior do Luciano gritando, e até que nem ficou tão ruim. Isso, meu amigo, é o milagre do cinema amador!
Z: Como transformar os parcos recursos em qualidade?
FG: Com criatividade! Isso é uma coisa que o José Mojica Marins, o Roger Corman, o Charles Band, os produtores italianos, mexicanos e turcos, mais Sam Raimi, Peter Jackson, Tobe Hooper, John Carpenter, Robert Rodriguez, George A. Romero e outros tantos já mostraram que é possível. Não é por não ter dinheiro para fazer que você vai ficar sem fazer, como costuma dizer o Baiestorf. Aliás, foi vendo um filme amador dele (Eles Comem Sua Carne) que eu resolvi que ia começar a fazer os meus próprios. O que você precisa é adequar a proposta do filme que vai fazer ao que você pode fazer. Não adianta sonhar alto e não ter condições de realizar, porque aí vai ficar uma merda pretensiosa. Se você quiser fazer uma cena com uma multidão de figurantes num filme amador, por exemplo, vai ter um trabalhão dos infernos. Agora, se você filmar uma passeata ou procissão que está acontecendo naturalmente, terá sua cena de multidão sem qualquer trabalho e de graça. São improvisos assim que podem te livrar de gastar um dinheirão e de se estressar à toa.
Z: Com tão pouco dinheiro, você crê que a melhor maneira de fazer um filme original é não se levando a sério?
FG: Com certeza, tanto que eu não me levo nem um pouco a sério. Duas vezes tentei fazer filmes sérios: Entrei em Pânico... surgiu com a proposta de ser um slasher sério, mas mudei tudo quando percebi que ninguém ia se assustar com meus efeitos especiais toscos; Canibais & Solidão surgiu como uma aventura na selva séria, em que os canibais seriam uma ameaça a exploradores procurando um tesouro, mas transformei em comédia no momento que vi meu irmão Rodrigo vestido como canibal. Se você não tem condições para fazer - atores bons, efeitos especiais bons, figurinos, equipamento... -, não adianta querer fazer filme sério, pois ninguém vai levar a sério. A solução é parodizar, pois pelo menos assim o pessoal se diverte.
Z: Você vê influências de Ivan Cardoso em seu trabalho? Em especial no último longa, Canibais & Solidão?
FC: Ivan Cardoso é um dos meus diretores preferidos, tanto que minha monografia de conclusão de curso na faculdade foi sobre o trabalho dele. Com certeza eu diria que Canibais & Solidão tem muito do Ivan, especialmente a forma como ele brinca com os clichês do cinema universal e com a metalinguagem (como a música que toca quando determinada personagem aparece, e o ator comenta: "Nos filmes, quando uma mulher aparece e toca uma música, é porque vale a pena investir"); também o clima de pornochanchada, de malícia, aquele estilo de não levar a coisa muito a sério. Pena que meus filmes não têm tanta mulher gostosa pelada quanto os do Ivan, e nem a minha musa Danielle Winitz, que eu adoraria ter no elenco de um futuro filme. Quem sabe um dia eu não chego lá...
Z: Você acha que o fato de ter nascido e sido criado em Carlos Barbosa influenciou seus filmes?
FG: Com certeza, até porque todos os meus filmes têm expressões e citações a fatos e pessoas daqui, que somente quem é daqui entende. Meus primeiros filmes falavam muito de ruas e locais de Carlos Barbosa, e agora é que estou deixando-os mais “universais”, para que qualquer um consiga assistir. O que eu faço questão de manter é o sotaque do pessoal, e expressões típicas daqui, como o “pórco dio”, que é uma blasfêmia usada pelos descendentes de imigrantes italianos. Além do mais, aqui todo mundo se conhece e há essa facilidade de filmar na rua ou na casa dos outros. Se eu tivesse nascido e vivido numa cidade grande, duvido que hoje estaria fazendo filmes.
Z: Por que você veio morar em São Paulo?
FG: Primeiro para fazer pós-graduação em comunicação, porque o curso que estou fazendo aqui é mais especificamente voltado ao cinema, e não tínhamos nada parecido lá no Sul. Mas também, e isso é triste, porque eu realmente quero investir na minha carreira cinematográfica, e na minha própria cidade eu era visto apenas como curiosidade, até como piada, mas nunca tive qualquer incentivo. Quando era para exibir meus filmes no cinema de Carlos Barbosa, por exemplo, eu tinha que ir atrás dos caras e convencê-los a exibir, conseguir um projetor emprestado para a exibição, assumir a responsabilidade de tudo (inclusive se a sala de cinema pegasse fogo e todo mundo morresse!) e ainda bancar todo o marketing. Comecei a perceber que Carlos Barbosa estava pequena demais para o que eu fazia quando surgiram convites para participar do Fantaspoa, o Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre, e também de mostras aqui em São Paulo, primeiro na Universidade Anhembi Morumbi, em 2008, e agora, este ano, no Itaú Cultural. Além disso, meu trabalho só começou a ser valorizado e realmente levado a sério por pessoas de fora da minha cidade, por isso resolvi tentar a sorte fora de lá também. Sabe o ditado de que santo de casa não faz milagre? Pois é...
Z: Pretende ficar por aqui, ou vai voltar para Carlos Barbosa?
FG: Olha, pretendo ficar por aqui uns tempos, mas voltando uma vez por mês ou a cada dois meses para Carlos Barbosa, já que minha família, minha namorada e todos os meus amigos estão lá, além da minha coleção de livros, filmes e gibis, que eu nem teria como trazer para São Paulo. Além disso, tenho pelo menos três projetos de longas-metragens que só vou tirar do papel com o pessoal de lá, caso contrário não farão sentido. Mas, como falei, por uns tempos pretendo ficar em São Paulo para sentir como é o mercado aqui para esse tipo de coisa que eu faço, se realmente há mais apoio, porque divulgação e valorização eu vi que tem. Quero fazer contatos com o pessoal que já agita a cena do cinema independente por aqui, e quem sabe, por que não?, tentar tocar algum grande projeto por aqui também. Ainda estou me acomodando, aprendendo quais ônibus pegar, descobrindo onde ficam as coisas aqui nesta cidade da perdição, mas em breve quero procurar emprego e me meter na área do cinema. Vamos ver o que rola...
Z: Como você tem recebido esse novo olhar sobre sua obra: um estudo mais sério e menos como algo exótico? Participar de festivais, ser estudado academicamente, a entrevista para Zingu! (risos)? Acha importante?
FG: Cara, eu acho tudo isso fantástico, sério mesmo. Tem diretor de cinema, amador e profissional também, que faz filme para ele mesmo e para os seus amigos. Mas eu sempre quis que meus filmes fossem vistos, e quanto mais vistos e comentados melhor, porque é assim que as portas se abrem. Inclusive, eu sempre digo que não sou radical como alguns colegas - faria até filmes da Xuxa se me pagassem. Bem, eu já tinha achado o máximo ganhar artigo na Boca do Inferno lá em 2002, depois notinha na revista SET, mas quando começaram a sair reportagens em jornais e análises diversas em blogs e sites de todo o Brasil, aí eu fiquei maluco mesmo. Comemorei até uma crítica negativa do Entrei em Pânico... que saiu numa revista espanhola de cinema fantástico chamada Fabulando Espantos, e até peguei a frase menos maldosa deles para usar na capinha do DVD do filme, fora de contexto, óbvio. (risos) E fiquei realmente emocionado com a análise detalhada que a professora Laura Cánepa fez sobre os meus filmes no livro Cinema de Bordas 2. Aquilo é incrível, ela descobriu coisas sobre os filmes que nem eu sabia! Como até pouco tempo atrás eu pensava que apenas o pessoal de Carlos Barbosa iria assistir e entender meus filmes, imagina ser estudado academicamente, isso é uma honra que grandes cineastas vivos não tem, e eu, um amador que edita filmes bagaceiros no computador, já recebi!
Porém, o que realmente me deixou nas nuvens foi descobrir esses dias, fuçando no Google, que a galera underground da Argentina está pirateando e vendendo o DVD do Canibais e Solidão, com legendas em castelhano. O título em espanhol até ficou legal: CANIBALES Y SOLEDAD! Eu deveria estar puto por saber que estão fazendo isso sem nem me consultar, e é claro que eu não ganho nem um centavo do dinheiro das vendas dos DVDs, mas só de pensar que meu filme já está circulando no exterior...
E claro que esta minha entrevista para a Zingu! será, provavelmente, o ponto alto da minha carreira. Já vou preparar uma nova tiragem dos DVDs dos meus filmes, pois as vendas devem triplicar. Por isso, gostaria de agradecer pelo espaço, pela oportunidade e por esta iniciativa muito válida da Zingu! Para mim é uma verdadeira honra estar sendo lido nas páginas desta revista virtual que tanto estimo, e onde meu nome ficará eternizado (pelo menos enquanto durar a internet...) ao lado de gênios como Ivan Cardoso, Sady Baby e Mojica. O que mais alguém poderia querer?
Z: Tem novos projetos?
FG: Tenho mais projetos do que tempo para filmá-los. No momento, estamos na pré-produção da seqüência de meu maior sucesso, Entrei em Pânico 2..., que terá as cenas mais sangrentas que já filmei. Também tenho três roteiros prontos: o de uma homenagem aos spaghetti western , chamado Deus os Cria, Eu os Mato ; o de uma comédia sobre as dificuldades de fazer cinema amador, chamada Estrelando Steven Seagal , e o de um terror sério que só vou filmar quando tiver condições de fazê-lo sério, que se chama Horrores do Inferno , e mistura Evil Dead – A Morte do Demônio com o cinema de horror japonês. Também tenho roteiros pela metade para uma comédia romântica road-movie (Romântica Comédia ), para um terror cômico sobre putas vampiras (Puteiro Sangrento) e para um outro terror sério sobre restauradores de uma igreja possuídos por demônios (Enigma). Sou hiperativo para escrever roteiros, mas não para filmá-los. Ah, se tivesse mais gente dirigindo aqui em Carlos Barbosa... Como eu queria ser o Peter Baiestorf nessas horas!
Z: Pretende fazer algum filme enquanto está em São Paulo?
FG: Claro que pretendo, mas provavelmente curtas, para começar. Sim, vou tentar fazer curtas, por mais difícil que possa parecer. Tenho duas histórias na cabeça que só falta tirar do papel. Claro que ainda vou ter que fazer meus contatos, pois acho que não vai ser fácil conseguir, por aqui, atores e atrizes que trabalhem de graça, como os meus camaradas lá do Sul. Acho que esta será a minha grande dificuldade em São Paulo: fazer longas-metragens com 250 reais por aqui parece algo bem impossível...