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Fragmentos Literários

Por Stefanie Gaspar

Na Colônia Penal –
Franz Kafka



O forasteiro chega a uma colônia penal. Está em um país distante, longe das regras civilizatórias que pensava conhecer tão bem. Um oficial, aparentemente importante, é apontado como seu acompanhante, e será o responsável por mostrar a ele o funcionamento diário da colônia e seus procedimentos padrões. O dia é atípico – a execução de um prisioneiro está prestes a ser levada a cabo.

O condenado vaga pelo campo vazio e desolado, atento a qualquer movimento do oficial. Este, entretanto, está preocupado com outra coisa: um aparelho monstruoso se posiciona diante dele. O oficial começa sua paranóia – pouco a pouco, o forasteiro observa a expressão facial do homem à sua frente, que vai do prazer absoluto e impune a uma continência plácida, de paz com um mundo que ele parece conhecer tão bem.

A máquina, como descobre o forasteiro, é um instrumento de tortura. Ele é composto por uma cama recoberta por algodão, que abrigará o condenado durante seu martírio; um tipo de “escotilha” que se livra dos dejetos e impurezas depositados no aparelho; e o rastelo. O rastelo é descrito pelo oficial com uma crueza sobre-humana. Uma crueza típica do horror. Composto por agulhas finíssimas, o rastelo é o responsável por escrever, com a pena do sangue, a sentença diretamente no corpo do condenado. Existem dois tipos de agulhas: as primeiras escrevem, e as segundas jogam água nos ferimentos para que a inscrição fique sempre visível. “Assim ele vai escrevendo cada vez mais fundo durante as doze horas. Nas primeiras seis o condenado vive praticamente como antes, só sente dores (...) Mas como o condenado fica tranqüilo na sexta hora! O entendimento ilumina até o mais estúpido. Uma visão que poderia seduzir alguém a se deitar junto embaixo do rastelo”. Compreender a escrita se desenvolvendo em sua pele própria é tarefa demorada para o condenado. “Ele precisa de seis horas para completá-lo. Mas aí o rastelo o atravessa de lado a lado e o atira no fosso, onde cai de estalo sobre o sangue misturado à água e o algodão”.

Uma narração feita com fervor messiânico pelo oficial que, descobre o forasteiro, na verdade é um homem totalmente desacreditado. O atual comandante da colônia penal despreza e pretende proibir o uso da máquina de tortura, um costume do antigo oficial, que só mantém um seguidor devotado. O oficial quer, com sua narração do horror, angariar a simpatia do forasteiro. Este, entretanto, se revolta com a desumanidade da execução, e assim anuncia.

Assim como no rosto do condenado, uma compreensão muda e profunda chega ao rosto do oficial a escutar sua sentença sendo pronunciada pelo forasteiro. Está sozinho. Ninguém mais o apóia. É hora de depor o poder antigo, o poder repressor e bárbaro. Mas não deixarei essa tradição morrer sozinha. Com ela, morre minha devoção, meu espírito. É hora de experimentar na pele aquilo que infringi a tantos outros homens.

O oficial se despe, deita na máquina e espera o rastelo começar seu trabalho, diante do olhar estupefato e melancólico do forasteiro. Mas a máquina parece pressentir que seu fim está próximo, e decide morrer junto com seu último amante. Ao invés de perfurar de maneira metódica e superficial o corpo do oficial, ela se aprofunda e começar a prensá-lo. De tortura a assassinato, é um pulo inevitável. O oficial morre com seu corpo perfurado pelo rastelo e uma das agulhas grandes infincada em seu crânio.

O horror dessa narrativa é também a magia de Na Colônia Penal, de Kafka. É impossível não sentir um profundo desconforto e uma angústia inexplicável diante de um conto tão pequeno e contundente, que mostra a perseverança de um homem que defende sua crença, por mais bárbara que esta possa parecer a princípio. Kafka nos leva a simpatizar com o oficial arauto da barbárie. O protagonista, que traz consigo toda a carga de charme e simpatia característicos de um personagem forte e capaz de criar empatia, corrompe nossa visão de mundo ao nos trazer uma identificação com um mundo no qual a tortura é a porta para a redenção. Você é culpado, a priori – sua condição de ser humano pecaminoso assim o define. Expiar essa culpa é o motivo da existência dessa tortura; mais do que isso, a desobediência a uma instância superior traz esse pecado para o plano do real e dá substância a esse tribunal anônimo e invisível de Kafka, que condena sem oferecer defesa.

O condenado assim é definido por ter desobedecido às ordens de um de seus superiores. Tendo feito isso, é óbvio que é culpado. Não precisa saber sua condenação, não tem direito de defesa – sua consciência moral já o avisou de todos esses “detalhes” banais. A hora da morte é a hora da expiação: seja em relação ao tribunal, em relação à instância opressora do pai ou, nesse caso, em relação ao Estado bárbaro que ainda permanece como um fantasma. A colônia penal é lugar do horror da morte, que traz consigo uma possibilidade de redenção, mas nunca de felicidade. Você pode alcançar o entendimento e sofrer por sua redenção, mas não existe perdão, não existe recuperação ou epifania. O final é a morte. Se os heróis de Kafka são atormentados, as saídas também não são fáceis. Não existe um manual de auto-ajuda capaz de fazer o condenado, o oficial e o forasteiro (todos anônimos, ideais, alegóricos) passarem para um mundo melhor. Quem procura redenção morre sem achar, morre na dor, morre no inferno. Mas não existe outra saída para quem nasce sob o estigma da culpa, do desterro, da obediência.

Na Colônia Penal traz um Kafka seco, sem concessões e com um estilo impecável em sua economia e significado. É um conto doloroso – mas assim também é o mundo, a nossa colônia penal. Vale perguntar se Kafka acreditava, para si mesmo, uma saída diante de sua própria repressão em relação à seus estigmas e ao poder absoluto de seu pai. Não se sabe, nunca se sabe. Mas é mais coerente imaginar que Kafka também não acreditava na redenção – e que teria terminado com a alma no mesmo desespero da de Georg Bendemann, do conto O Veredicto, que, acusado pelo pai de ser uma pessoa corrupta, desrespeitosa e indigna de viver, salta de uma ponte gritando: “queridos pais, eu sempre os amei”.




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