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Inventário Grandes Musas da Boca
Agora, todo mês, uma dama do cinema paulista

Selma Egrei

Por Adilson Marcelino

Talentosa, bela e enigmática, Selma Egrei nasceu em São Paulo, em 1949. Graduada na Escola de Arte Dramática da USP, Selma Egrei estreou nas telas fazendo uma ponta em Vozes do Medo, filme coordenado pelo cineasta Roberto Santos, quando era professor de cinema da ECA/USP e realizado entre 1969 e 1973 com profissionais e alunos. Na mesma época, vai para a televisão, atua em A Gordinha, de Sérgio Jocyman, em 1970, e em Simplesmente Maria, de Benjamin Cattan e Benedito Ruy Barbosa, que foi ao ar entre 1970 e 71, ambas na Tupi. A partir daí, a atriz vai ter uma carreira pontual na TV, sendo um dos destaques a doce personagem Irmã Rosário, na novela Papai Coração, de José Castellar, exibida na Tupi entre 1976 e 77, em que tem um dos principais papéis ao lado do clã de Nicette Bruno e Paulo Goulart.

Só que é o cinema que vai atrair toda a atenção dessa atriz que parece ter nascido para as telas - e é na Boca do Lixo que Selma Egrei se torna uma de suas mais amadas e desejadas musas e de todo o cinema dos anos 70 e 80. Creditada em Cordélia, Cordélia, filme que Rodolfo Nanni rodou nos estúdios da Vera Cruz em 1971, é apenas em Obsessão Maldita, dirigido por Flávio Nogueira na Boca em 1973, que ela tem sua primeira grande chance. O destaque, porém, só se dá no clássico e premiado A Noite do Desejo, em 1973, mostrando o que é capaz, com seu imenso talento, beleza e carisma.

Em A Noite do Desejo, ela é Selma, uma prostituta grávida que faz programas nos inferninhos paulistas. Em sua primeira aparição, ela está sentada e sua beleza translúcida atrai o olhar dos dois protagonistas vividos por Roberto Bolant e Ney Latorraca. Só que, ao perceberem que a moça está com a barriga saliente, eles desistem, o que não acontece com o personagem de Ewerton de Castro, que veio do interior para levar a noiva de volta. Selma Egrei está ótima no filme, e por sua personagem estar grávida, não tem cenas de nudez, a não ser em um número de dança maravilhoso e sensual, e que não à toa ilustra o cartaz da película.

Segundo o registro na Enciclopédia do Cinema Brasileiro (org. de Fernão Ramos e Luiz Felipe Miranda), foi ao ver o copião de A Casa das Tentações, filme dirigido por Rubem Biáfora entre 1973 e 75, que o mestre Walter Hugo Khouri convidou Selma Egrei para protagonizar O Anjo da Noite (1974), ao lado da mítica Lilian Lemmertz. Com Khouri, Selma Egrei atua ainda em O Desejo (1975) – novamente ao lado de Lilian Lemmertz -, em As Filhas do Fogo (1978) e em Eros, o Deus do Amor (1981). Essa parceria com o cineasta alçou a atriz no imaginário da cinefilia. Selma Egrei se encaixa com uma luva no cinema autoral e cheio de climas de Khouri, que faz dela uma atriz enigmática, como aconteceu com a própria Lilian Lemmertz e também com Kate Hansen – mais tarde, o cineasta Sylvio Back reuniria as três atrizes no ótimo Aleluia Gretchen.

Em 1974, Maurício Rittner co-produz em parceria com a Cinedistri, sediada na Boca, a farsa As Delícias da Vida. Ainda que o filme reúna mais duas deusas, Bete Mendes e Vera Fischer, ele é bastante fraco, excetuando-se a aparição de Selma Egrei como a protagonista dos safados e divertidos comerciais veiculados durante a novela – o filme fala dessa paixão nacional e seus bastidores. Selma Egrei, linda, vende de tudo: cera Regina, sabonete Labareda, colchonete Leve e cigarros Hoje, tudo isso com uma lascívia de incendiar o espectador. Nesse mesmo ano, a atriz encontra o cinema caipira do genial Amácio Mazzaropi em Jeca Macumbeiro.

O ano de 1975 marca o encontro de Selma Egrei com o clássico e polêmico livro de Júlio Ribeiro, A Carne. A adaptação, a terceira em nossa filmografia, é dirigida por J. Marreco, em que Selma Egrei faz a protagonista Lenita, uma mulher que, no século XIX, seduz um homem casado.

1975 é seu encontro também com um dos mais notáveis diretores da Boca do Lixo, o cineasta e produtor Claudio Cunha. O filme é O Dia em Que o Santo Pecou, dirigido por Cunha e roteirizado pelo hoje novelista Benedito Ruy Barbosa. No filme, Selma Egrei é Mudinha, mulher do valentão João Baleia, interpretado por Mauricio do Valle. Para isso, ela estudou o modo de viver dos surdos-mudos, e em matéria da época diz: “Mesmo assim cheguei a temer o papel, que poderia até ficar ridículo, se eu não me cuidasse. Mas, depois, quando começou a rodar a primeira cena, não sei porque, mas me senti totalmente segura do que estava fazendo”. Na mesma matéria, Claudio Cunha exalta o trabalho da atriz e diz que chegava a pensar que dificilmente outra atriz teria dado à personagem a dimensão humana que ela deu.

O Dia em que o Santo Pecou conta com várias cenas em que Selma Egrei aparece como veio ao mundo e isso, além de fazer a alegria do público, atiçou a cobiça de duas revistas masculinas. Mas a atriz recusou o convite para posar nua e declarou em uma matéria na época: “Acho que não estarei acrescentando nada à minha carreira aparecendo despida nas páginas das revistas por mais importantes que elas sejam. Além do mais não me sinto fazendo bem esse tipo de promoção”. E diz mais: “A nudez precisa ter um sentido. Então, me dispo com a maior naturalidade, como aconteceu no último filme que realizei. A Mudinha, mulher de João Baleia em O Dia em Que o Santo Pecou, é um exemplo”. É ou não uma atriz genuína?

No ano seguinte, o cineasta paranaense Sylvio Back reúne um elenco de deusas para falar sobre a presença do nazismo no Brasil, o ótimo Aleluia Gretchen (1976): as “Khourianas” Lilian Lemmertz, Kate Hansen e, claro, Selma Egrei. No filme, ela é Gudrun, filha de uma família nazista que se refugia no Brasil. Aparentemente distante da predileção da família, seu gene nazista se revela mais tarde e ela assiste, impassível, a captura de seu marido, o pobre Carlos Vereza, que sofre nas mãos de torturadores com saudades das práticas durante a guerra – e um deles é Lilian Lemmertz, maliciosamente perversa.

Atuando nesses filmes mais engajados, Selma Egrei comprova que é, antes de tudo, uma grande atriz, mas sem abrir mão das apimentadas produções típicas da Boca, que a projetaram no imaginário popular. Exemplo disso é O Poderoso Machão (1976), dirigido por Roberto Mauro e roteirizado por Cláudio Cunha, e também o ótimo Emanuelle Tropical (1977), dirigido por J. Marreco, e pegando carona na griffe francesa com a atriz Sylvia Kristel, que estava preso na censura. Só que aqui, Emmanuelle é a não menos estonteante Monique Lafond às voltas com suas conquistas – e haja coração, pois além dela e de Selma, ainda tem Matilde Mastrangi e Tânia Alves no elenco.

Ainda na década de 70, Selma Egrei se encontra com o maravilhoso cinema de Antonio Calmon em Gente Fina É Outra Coisa (1976) e em Nos Embalos de Ipanema (1978). Com Alcino Diniz, atua em O Coronel e o Lobisomem (1977). Na Boca, roda Mulheres do Cais (1979), de José Miziara - diretor de sucessos como O Bem-Dotado – O Homem de Itu, Embalos Alucinantes, e uma incursão ao universo homossexual em As Intimidades de Analu e Fernanda. Em Mulheres do Cais, Selma Egrei e Wanda Stefânia são duas prostitutas e amigas no cais do porto de Santos.

É dos anos 70 também Adultério Por Amor (1978), de Geraldo Vietri, em que Selma Egrei é mais uma vez a protagonista. No filme ela é Natália, uma jovem esposa de um marido estéril que procura em um estudante a possibilidade de engravidar e salvar seu casamento. Como Selma Egrei foi muito requisitada nessa década, é nesse período que atua sob a direção de outro nome mítico da Boca do Lixo: John Doo. Para ele, atua em Ninfas Diabólicas (1978) e em Uma Estranha História de Amor (1979). O primeiro, é filme perverso que reúne também as deusas Aldine Muller e Patricia Scalvi. No segundo, Selma Egrei é Maria, uma professora primária que chega a uma cidade do interior, onde descobre sua sensualidade.

Selma Egrei entra a década de 80 atuando no engajado e premiado Ato de Violência (1980), de Eduardo Escorel, baseado em fatos reais sobre a vida do bandido Chico Picadinho. Ela interpreta Tânia, mulher que Antonio conhece na prisão e com a qual passa a viver ao sair. Em Sexo, Sua Única Arma (1981), volta a ser dirigida por Geraldo Vietri e vive a protagonista Marta, uma mulher vingativa que seduz uma família inteira. Em 1981, atua sob a direção do mestre Carlos Reichenbach em Paraíso Proibido. Carlão, um cineasta que, ao lado de Khouri, sempre reuniu em seus filmes um elenco de deusas, nesse filme não fez diferente: Selma, Ana Maria Kreiler, Vanessa Alves e Patrícia Scalvi. Nossa!

Em Tchau Amor (1982), a atriz encontra-se com outro mestre da Boca, Jean Garret, filme depressivo em que faz Iara, a esposa de Antonio Fagundes. No ano de 1983, atua sob a direção de Luiz Castellini em Elite Devassa. No filme, Thales Pan Chacon é um motorista que cai na malha de uma família perversa formada por Selma Egrei, Patrícia Scalvi e Edson França – a presença enigmática e altiva de Selma é perfeita pra compor a insaciável matriarca. No mesmo ano, faz o singular Força Estranha, em que Aldine Muller é uma mulher insatisfeita sexualmente com o marido, interpretado por Ênio Gonçalves, e Selma Egrei é Sílvia, a dissimulada amiga do casal, em uma trama que envolve fantasias, o sobrenatural e um triângulo amoroso – com o ápice em uma piscina nada inofensiva.

Ainda na década de 80, Selma Egrei atua em Estrela Nua (1984), da dupla José Antonio Garcia e Ícaro Martins. A trama do filme se desenrola em um estúdio de dublagem, tendo Selma Egrei como Renée, uma dubladora lésbica, linda e assumida. Dando pegadas em uma Vera Zimmerman novinha novinha, Renée tenta seduzir também Glorinha, personagem de Carla Camurati, mas sem sucesso. Uma cena engraçada ocorre quando Selma e Vera estão se pegando em uma gravação e o tirânico diretor do filme, interpretado por Ricardo Petraglia, diz: “a sapataria progresso vai ficar aí se roçando?”. Já no finalzinho da década, atua em Sonhos de Menina Moça (1987), filme essencialmente feminino, em que a diretora Teresa Trautman reúne elenco estelar: Selma, Tônia Carrero, Louise Cardoso, Marieta Severo, Monique Lafond, Xuxa Lopes, Zezé Motta, Flávia Monteiro, Íriz Bruzzi, Norma Blum, Gabriela Alves e Dóris Giesse.

Depois de anos afastada das telas, período em que atuou mais no teatro, Selma Egrei voltou às telas no maravilhoso filme de Laís Bodanzky, Chega de Saudade (2007), e no comovente O Signo da Cidade (2007), dirigido por Carlos Alberto Ricelli. Nesse ano, 2009, deve sair mais um filme com Selma, o longa Augustas, de Francisco César Filho.

Felizmente, Selma Egrei está de volta às telas. De onde, aliás, nunca deveria ter saído.

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Selma Egrei e o cinema de Walter Hugo Khouri
Por Andrea Ormond

Walter Hugo Khouri encontrou pontes diversificadas para o cinema. Mesclou literatura, filosofia, estudos sobre escalas cromáticas, arquitetura, jazz, psicanálise. Nesta profusão de uma ânsia criativa fortíssima, fica mais fácil compreender as parcerias do diretor. A famosa associação de seu nome aos de mulheres lindas, genuinamente divas, está na origem de uma busca pela ascese, representada por esse feminino ideal, em sucessivas tentativas de simbiose como objeto amado.

Selma Egrei foi parte integrante deste fenômeno, e protagoniza uma das mais belas cenas de todo o cinema de Khouri. Suspensa sobre um fundo negro – ausência de cor absoluta, como se pendurada no espaço –, a moça de Eros, o Deus do Amor (1981) se contorce, como uma serpente, ao som da massa sonora que cresce no meio-tempo. Aula de expressionismo que vale por volumes de teoria.

Egrei esteve em ainda mais três filmes centrais na obra de Khouri: O Desejo (1975) – ao lado de Lilian Lemmertz –, O Anjo da Noite (1974) e As Filhas do Fogo (1978) – os dois últimos, clássicos do cinema de horror brasileiro.

Observar seus traços renascentistas, namorar os olhos imensos que guardam uma tensão escondida pelo semblante sereno, são as chaves do encantamento que nos permite compreender Selma Egrei através da paixão khouriana.

Andrea Ormond é crítica de cinema e editora do blog Estranho Encontro.

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Pitacos dos diretores:

“A Selma era um doce de pessoa. Sempre serena, concentrada no trabalho. Dei muita sorte na sua contratação. Formou com Mauricio do Valle um par fantástico, sem falar nas cenas de voyuerismo com o Canarinho.”

Claúdio Cunha, que dirigiu Selma Egrei em O Dia em que o Santo Pecou (1975).

“Infelizmente, eu só fiz um filme com ela. Gostaria de ter feito mais. Primeiro que eu a acho uma grande profissional, é o tipo de atriz para cinema. Sempre fui fã dela. Pelas escolhas que ela fez, que eram parecidas com as minhas, pela seriedade, pelo profissionalismo. Ela sempre me impressionou.”

José Miziara, que dirigiu Selma Egrei em Mulheres do Cais (1979).

“Além de linda, Selma é uma grande atriz, com um estilo próprio de representar. Desde os primeiros filmes em que a vi, como O Desejo, de Walter Hugo Khouri, virei seu fã enquanto espectador. Mais tarde tive a oportunidade e o prazer de trabalhar com ela em Estrela Nua, o que só confirmou e aumentou a admiração pelo seu trabalho.”

Ícaro Martins, que dirigiu Selma Egrei, em pareceria com José Antonio Garcia, em Estrela Nua (1984).

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Filmografia

Vozes do Medo (1969/73), coordenado por Roberto Santos;
Cordélia, Cordélia (1971), de Rodolfo Nanni;
Obsessão Maldita (1973), de Flávio Ribeiro Nogueira;
A Noite do Desejo (1973), de Fauzi Mansur;
A Casa das Tentações (1973/75), de Rubem Biáfora;
O Anjo da Noite (1974), de Walter Hugo Khouri;
As Delícias da Vida (1974), de Maurício Rittner;
Jeca Macumbeiro (1975), de Amácio Mazzaropi e Pio Zamuner;
A Carne (1975), de J. Marreco;
O Dia em que o santo pecou (1975), de Cláudio Cunha;
O Desejo (1975), de Walter Hugo Khouri;
Aleluia Gretchen (1976), de Sylvio Back;
O Poderoso Machão (1976), de Roberto Mauro;
Gente Fina é outra coisa (1976), de Antonio Calmon;
Emmanuelle Tropical (1977), de J. Marreco;
O Coronel e o Lobisomem (1977), de Alcino Diniz;
Mulheres do Cais (1979), de José Miziara;
Adultério Por Amor (1978), de Geraldo Vietri;
Ninfas Diabólicas (1978), de John Doo;
Nos Embalos de Ipanema (1978), de Antonio Calmon;
As Filhas do Fogo (1978), de Walter Hugo Khouri;
Uma Estranha História de Amor (1979), de John Doo;
Ato de Violência (1980), de Eduardo Escorel;
Sexo, Sua Única Arma (1981), de Geraldo Vietri;
Paraíso Proibido (1981), de Carlos Reichenbach;
Eros, O Deus do Amor (1981), de Walter Hugo Khouri;
Tchau Amor (1982), de Jean Garret;
Força Estranha (1983), de Pedro Mawashe;
A Estrela Nua (1984), de José Antonio Garcia e Ícaro Martins;
Sonhos de Menina Moça (1987), de Tereza Trautman;
Chega de Saudade (2007), de Laís Bodanzky;
O Signo da Cidade (2007), de Carlos Alberto Ricelli;
Augustas (2009), de Francisco César Filho.




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