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Musas Eternas...
PORQUE O QUE É BOM, É ETERNO...

Julie Delpy

Por Filipe Chamy

Os olhos graciosamente meio fechados de Julie Delpy podem impedi-la de ter uma boa noção de profundidade ou de conseguir ver perfeitamente em três dimensões, mas denunciam inequivocamente a inteligência dessa deslumbrante francesa de incompletos quarenta anos. Sua estonteante beleza não é o primeiro e nem o último de seus atributos, tampouco o único de seus méritos; porém não é possível permanecer impassível diante da delicada visão feminina de pele clara e cabelos amarelo-ouro. Doce, sorriso muito aberto, aquele porte que parece extinto em tempos de masculinização da mulher, Julie Delpy encanta não só pelo charme como pelo mistério. Pouco se sabe de sua vida pessoal, seus relacionamentos ou qualquer outra coisa que não relacionada ao cinema, em que, em pouco mais de vinte anos, construiu uma carreira coerente e sólida, apesar de algumas (poucas) irregularidades.

O senso de discrição de Julie Delpy deve ter vindo de seus pais, atores profissionais já antes de a francesinha vir à luz. Instrução de quem quer o reconhecimento por seus dons e esforços, não por aparecer feito um pedaço de carne em tablóides. Julie Delpy é apaixonante por seus projetos, e são, afinal, eles que a definem. Nada mais lógico, portanto, que “encontrá-la”, em menor ou maior grau, em seus filmes, nos quais se envolve com seriedade e o instinto dos grandes intérpretes.

Anos 70-80

Início da carreira. Seu primeiro filme é o coletivo Guerres civiles en France, de 1978, aos nove anos, no qual aparece apenas em um segmento, com seu nome “materno” Julie Pillet. Faz alguns trabalhos desaparecidos e/ou pouco vistos, até ser dirigida por Godard em dois famosos filmes de sua fase oitentista: Detetive e King Lear. Nenhum deles chega a ser memorável ou mesmo minimamente agradável, mas certamente ter em sua filmografia um começo regido por um cineasta de tamanho renome é um bom auspício. E de fato assim o foi, pois em 1987, ano de seu segundo filme com Godard, estrela o belo La passion Béatrice, sobre o poder, a corrupção, o incesto e a existência triste marcada pelo pensamento arcaico-feudal, com Julie, aos dezessete anos, enfrentando vultos de um mundo terrível, que gostamos de saber apenas extinto. Direção do experiente Bertrand Tavernier. Mas verdade seja dita, Julie já havia se feito notar um ano antes em Sangue ruim, de Leo Carax, contracenando com “peixes grandes” como Juliette Binoche e Michel Piccoli. Trata-se de uma brincadeira com a linguagem do cinema, Godard style, que envolve os personagens em elipses e “costura” um filme peculiar por seu apelo sensorial. Por cada uma dessas duas atuações, Julie Delpy foi indicada ao César de atriz revelação. Entre curtas e longas que ainda faria nesses anos, seus grandes momentos ainda estavam por vir; mas ainda nessa época, mais precisamente em 1989, fez a Virgem Maria em La noche escura, do aclamado diretor espanhol Carlos Saura, que não poderia ter escolhido figura mais angelical para viver uma santa.

Anos 90

Sua época mais prolífica. Já começa a década em dois filmes elogiados: Filhos da guerra, sofrida história de um judeu em disfarce nazista, onde Julie tem um pequeno e importante papel catalisador de emoções do protagonista; e Homo Faber, do conhecido diretor Volker Schlöndorff, filme co-estrelado por Sam Shepard e por Barbara Sukowa — considerada uma das primeiras grandes atuações de Julie como protagonista, ao lado de La passion Béatrice. Entre os outros filmes que fez nesse período, merecem evidente destaque os da trilogia das cores do célebre polonês Krzysztof Kieslowski: A liberdade é azul, A igualdade é branca e A fraternidade é vermelha. Julie participa dos três, mas protagoniza apenas o segundo, que é possivelmente o mais interessante e o mais subestimado dos três (os outros dois são estrelados respectivamente por Juliette Binoche e por Irène Jacob). Trata-se de um filme dramático de humor inusitado, com uma personagem vivida com dubiedade pulsante por Julie, que então se mostra abertamente sensual e com uma intensidade de mulher fatal até então ainda não percebida ou demonstrada. É um belíssimo filme, em que sua aparência meiga contrasta com a sordidez de alguns de seus atos.

Por esses anos ainda, Julie participa de alguns filmes menos importantes, como uma versão disneyana de Os três mosqueteiros. Mas logo que fecha a trilogia de Kieslowski dedica-se a projetos promissores: Killing Zoe, de Roger Avary e produzido em parte por Quentin Tarantino, é o primeiro deles. É uma história moderna de roubo e sacrifício, e Julie, lindíssima e agradavelmente sensual, faz o interesse romântico do protagonista, interpretado por Eric Stoltz. Há uma cena tremendamente memorável com sua personagem, uma jovem que deita com estranhos para conseguir dinheiro para pagar seus estudos: com os olhos estrelados de felicidade, conta ao parceiro da vez (Stoltz) que gostou dele por não ser sujo e grosseiro como os outros homens com que se deita; o homem diz a ela, por sua vez, que a moça também era diferente das prostitutas que conhecera. A moça treme de indignação, dá um soco forte no peito do rapaz, que, ainda deitado, se espanta, antes de ouvir da menina a sua história. Essa passagem de um extremo (alegria do orgasmo) a outro (indignação por uma humilhação) é difícil de retratar e mais ainda de crer; mas Julie Delpy convence e apaixona, sincera e feroz, arrebatando para si toda simpatia e compreensão.

No ano seguinte, 1995, seu primeiro filme como diretora — ela é formada pela New York University’s Tisch School of the Arts — é realizado, o curta Blah blah blah. E o marcante Antes do amanhecer, de Richard Linklater, também vem à tona. Num dos filmes mais emblemáticos de sua carreira, Julie faz o papel de Celine, par de Jesse (Ethan Hawke), apaixonados por acaso e sem futuro, numa jornada poderosamente romântica e honesta, marca de uma tradição típica de um cinema como o de Eric Rohmer, onde palavras nunca são mais importantes que gestos e pequenas ações. O filme permanece uma ode ao amor, mas também tem seus momentos de melancolia e desesperança, sublimados (como se fosse preciso sublimá-los) pela serena condução da trama e pelo desempenho franco de seus intérpretes. Uma singela obra-prima.

Seu projeto seguinte é o interessante Tykho Moon, filme dirigido pelo respeitado quadrinista iugoslavo Enki Bilal, adaptado de uma história em quadrinhos de sua própria autoria. Nessa ficção científica com contornos de O Incal, de Jodorowsky e Moebius, Julie é o contrapeso ao poder tirânico de um tresloucado Michel Piccoli, em uma sociedade opressora num futuro indefinido. Com um visual robótico que flerta com a androgenia, bem ao gosto de Bilal, a peruca vermelha que a francesa usou no filme causa um agradável estranhamento em quem se acostumou a ver seus olhos claros emoldurados por uma cabeleira loura.

Até o fim da década, Julie apareceria em mais uma quantidade considerável de produções, mas nenhuma muito digna de nota. O filme mais conhecido do período é o famigerado Um lobisomem americano em Paris. Também trabalhou com o irmão de Aki Kaurismäki, Mika, em Absolutamente Los Angeles e começou a dar o ar de sua graça também em papéis televisivos.

Anos 2000

Período dividido entre uma abertura cada vez maior ao cinema ianque — Julie mora em Los Angeles há pelo menos quinze anos, possuindo um inglês perfeito e quase sem sombra de seu sotaque natal — e um crescente empenho em prosperar como diretora de cinema. Em 2001, o experimental Waking life, filme “semi-animado” de Richard Linklater, trouxe Julie e Ethan Hawke retomando, por um breve momento (totalmente à parte da cronologia da história original), seu casal de Antes do amanhecer. Segue fazendo filmes de pequena ou média repercussão, e aparece por pouco mais de meia dúzia de episódios na série de televisão ER/Plantão médico.

Em 2004, junta-se novamente a Linklater e a Hawke, abraçando a continuação “oficial” de Antes do amanhecer, intitulada Antes do pôr-do-sol. O filme não é nada menos que outra obra-prima, prosseguimento à altura da primeira parte, que talvez até supere em alguns quesitos. Celine e Jesse, após quase dez anos, reencontram-se. Todas as mudanças em suas vidas, o impacto que o primeiro encontro deixou em suas existências, todas essas ausências, barreiras, lembranças e conseqüências culminam em um encontro que pode marcá-los ainda mais que sua primeira aventura amorosa. Julie foi indicada ao Oscar pelo filme, mas como roteirista, conjuntamente com Ethan Hawke e Richard Linklater, os três artesãos da impressionante naturalidade dos diálogos e personagens. Antes do pôr-do-sol também nos apresenta outra faceta de Julie Delpy: cantora. Algumas músicas do filme foram compostas e interpretadas por Julie, com voz perfeitamente harmoniosa e afinada, além de instrumentais precisos e bem escritos. Com outras canções de sua autoria, Julie as lançou em um disco com seu nome, em 2003. É um álbum verdadeiramente precioso, não por qualquer fator externo, mas pela própria qualidade de suas faixas, seja em inglês ou em francês. Irretocável, o que faz pensar por que a bela francesa não continuou no caminho musical.

Nos últimos cinco anos, Julie Delpy tem feito apenas pequenos papéis em produções majoritariamente em língua inglesa, como Flores partidas, ode ao blasé eficazmente perpetrada pelo sempre confiável Jim Jarmusch; O vigarista do ano, cinebiografia dirigida por Lasse Hallström sobre o espertalhão que tentou vender ao mundo uma autobiografia forjada do mítico Howard Hughes; e o pavoroso Ligados pelo crime, terrível cria do já tétrico Crash de Paul Haggis, espécie de colagem de tramas mal feitas sobre pessoas estúpidas e suas vidas ridículas. Mas o mais importante sobre a moça nos últimos anos é sem dúvida alguma seu trabalho por trás das câmeras. Após Looking for Jimmy, de 2002, e o curta J’ai peur, j’ai mal, je meurs, feito em 2004, em 2007 seu longa 2 dias em Paris é largamente difundido no mundo, atraindo a curiosidade geral para o nome famoso da diretora-atriz. Estranhamente, o filme foi bastante subestimado por público e crítica — à parte alguns prêmios recebidos ou aos quais foi indicado, como o César de roteiro. Aparentemente, as pessoas não apreciaram esse divertido romance moderno, Woody Allen com mais açúcar. De qualquer modo, o filme é suficientemente seguro em sua estrutura para que aguardemos com ansiedade o novo filme de Julie Delpy, seu primeiro projeto em dois anos: The countess, versão de Countess Dracula, sobre uma mulher da alta nobreza que possui peculiar atração pela juventude e adota um comportamento pouco ortodoxo (para não falar mórbido) no trato com as pessoas. Não se tem previsão da estréia no Brasil.

Julie Delpy é um evento em qualquer coisa que faça. Seja atuando, dirigindo, escrevendo, cantando ou simplesmente sorrindo, com aqueles olhos de pálpebras rasgadas e o eterno jeito de menina tímida e engraçada. É uma ponte que liga a Europa (França) à América (Estados Unidos) com o distinto porte da arte e da beleza.

Julie Delpy no YouTube:

Entrevista de 2007 sobre 2 dias em Paris, com destaque para a ironia da entrevistada: “na verdade, muitas atrizes francesas moram nos EUA, mas elas não falam, porque isso não as faz francesas o bastante”:

http://www.youtube.com/watch?v=qOnBD49JR8k

O segmento (legendado) de Waking life com Julie Delpy e Ethan Hawke, por Richard Linklater:
http://www.youtube.com/watch?v=Y8oaRIW3KyA

Trailer de The countess:
http://www.youtube.com/watch?v=wDHO-6HiZxY

LaLaLa, música da banda Nouvelle Vague, com Julie nos vocais:
http://www.youtube.com/watch?v=8x4k_i_bNEA

Julie comenta o final de A igualdade é branca:
http://www.youtube.com/watch?v=1gqYoVAErLQ

A belíssima Je t’aime tant, de Antes do pôr-do-sol:
http://www.youtube.com/watch?v=jGlnYUQXaUQ




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