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O Exército do Extermínio

O Exército do Extermínio
Direção: George A. Romero
The Crazies, EUA, 1973.

Por Vlademir Lazo Corrêa

Poucos diretores podem se orgulhar de ter criado um gênero (ou subgênero, se preferirem): o de filmes de zumbis. Não que não houvesse filme de zumbis antes de George A. Romero, mas foi A Noite dos Mortos-Vivos (1968), o mais importante, cultuado e influente filme de zumbi da história, que forneceu as diretrizes de tudo que viria a ser filmado sobre mortos-vivos desde então (é certo que não haveria metade dos filmes de zumbis das últimas décadas caso não existisse o de Romero) e que impulsionou o subgênero a se tornar o que ele é hoje ─ e de quebra, deu um novo fôlego ao cinema de horror de uma maneira geral. Na época, Romero revelou-se dono de um horror primitivo (algo como José Mojica Marins aqui no Brasil), capaz de manipular a seu favor a precariedade de recursos e a falta de experiência cinematográfica anterior (era então a sua primeira obra), criando uma alegoria que contrabandeava uma dimensão política ao seu filme, e não apenas utilizando os mortos-vivos como vilões de filmes de horror quase que banais, como ocorreria posteriormente em muitas das imitações de sua obra.

Nos anos setenta, Romero criou a continuação do seu primeiro longa, O Despertar dos Mortos (1978), mas durante esse intervalo de um decênio, o cineasta provou que poderia se aventurar em outros campos dos filmes de terror além do da temática dos zumbis, sendo O Exercito do Extermino um passo adiante em sua carreira e totalmente coerente dentro de sua obra. A ação situa-se em Evan’s City, uma cidadezinha do estado americano da Pennsylvania. A cena de abertura é uma síntese do terreno que está prestes a explodir: o jogo lúdico de um casal de irmãos pequenos, um tentando enganar o outro a beira da escada de casa, é interrompido por um pai transtornado e enlouquecido a destruir objetos de casa depois de assassinar a esposa, e que termina em pôr fogo em tudo, incendiando a própria residência e matando a todos. Logo esse comportamento revela-se recorrente nos habitantes do local, por causa de um vírus altamente contagioso surgido com a queda de um avião nos arredores do lugar, uma espécie de arma bacteriológica criada em laboratório como parte de um projeto secreto do Estado - mas que contaminou a reserva de água da cidade com a queda do avião naquela área. Quando o perigo se mostra inadiável, o acontecimento leva o governo a interferir na região, na tentativa de remediar o estrago provocado por eles mesmos, com o envio de uma força especial do Exército para tentar conter a epidemia, instaurando um estado de sitio no qual a população é forçada a se recolher de quarentena num ginásio como forma de controlar o contágio, enquanto os cientistas estudam o vírus na busca da descoberta de um antídoto e pesquisam as possibilidades de alguém ser imune à doença

Diante da ação dos militares enviados pelo governo, dois colegas bombeiros, Clank (Harold Wayne Jones) e David (Will McMillan), formam um pequeno grupo para fugir e escapar da quarentena, junto com a namorada grávida de David, a enfermeira Judy (Lane Carroll), e um homem um pouco mais velho (Richard Liberty), e sua filha adolescente Kathy (Lynn Lowry). O grupo pega em armas e está disposto a resistir e enfrentar o exército, ao mesmo tempo em que se refugiam para o mais longe possível do centro dos acontecimentos enquanto tentam compreender a loucura toda que tomou conta daquele lugar. Ainda que esses personagens possam se configurar como heróis dentro da narrativa, Romero interfere o tempo todo nessa possibilidade para nos impedir de realmente torcer por eles, com a ausência de julgamento por parte do diretor acerca de todos os personagens. O cineasta está mais interessado em criar uma relação entre valores distintos do que em dizer que um presta e o outro não. Por mais que David e sua namorada sejam os que despertam mais simpatia no espectador, Clank vai apresentando sinais de insanidade à medida que o filme avança, deixando a dúvida pairando de que se ele foi mesmo contaminado pelo vírus ou se são aspectos de sua verdadeira índole. Ao mesmo tempo, o pai de família que os acompanha apresenta sentimentos dúbios em relação à sua filha. Da mesma forma que o lado do exército também possui suas razões ao estar lutando por uma causa que não deixa de ser justa, querendo proteger a população e impedir que o mal se agrave. Algumas de suas figuras criam empatia fácil com o público, como os que comandam o exército, o Major Ryder (Harry Spillman), e mais ainda, o Coronel Peckem (Lloyd Hollar), ─ que como na maioria dos filmes de George Romero, é um herói interpretado por um ator negro (se é que se possa denominar alguém como herói ou vilão em O Exército do Extermínio), ─ e o cientista Dr. Watts (Richard France), para quem cabe a responsabilidade de encontrar uma cura para a praga que se instalou. O trabalho de Romero consiste em armar o teatro de operações, dentro do qual transcorre o campo de batalha onde acontece a ação, sem que a mão do cineasta direcione a platéia a torcer por um ou outro lado.

Uma catástrofe social toma conta da cidade. As sequências dos combates entre os soldados devidamente protegidos de branco e com máscaras tentando controlar a população enlouquecida e até assassinando os mais insurgentes nos levam a um cenário de guerra que o aproxima da guerra urbana atual travada entre a polícia e os agentes da violência de qualquer grande metrópole. Por mais que o ponto de partida de Romero tenha sido uma espécie de parábola sobre o Vietnã daquele período (transportando a guerra de lá para o microcosmos que serve de palco ao drama), O Exército do Extermínio tem um sentido alegórico muito mais amplo, simbolizando as malesas individuais e coletivas que se pode aplicar em qualquer conflito que possa se alojar em uma comunidade. A trilha incidental que reproduz uma marcha militar brinca (mas sem em momento algum tornar-se cômico, somente mais perverso) e ilustra um exército implacável, mas que ao mesmo tempo se revela muitas vezes incapaz de lidar com uma situação de tamanha urgência e que se atrapalha ao distinguir os indivíduos contaminados ou não, pois os sintomas são somente as reações de desespero e pânico - atitudes naturais de qualquer pessoa em circunstâncias de horror. A crítica social típica do Romero se torna também mais acentuada nas cenas do começo com burocratas e militares em gabinetes do governo em conversas ultra-secretas, planos de defesa e ataque bélico à Evan’s City. O assunto é tratado como uma questão que precisa ser solucionada o quanto antes e de maneira lógica, fria e determinante, utilizando da violência e da chacina como últimos recursos para evitar um alastramento da peste em larga escala por todo o país. As consequências são as mais funestas possíveis, com o caos instalado em torno de violência generalizada, tumultos, frenesi, extermínios e mortes hediondas tanto por parte dos soldados recrutados para manter a ordem, quanto da população que já não sabe para onde recorrer ou como resistir - com destaque para o padre botando fogo em si mesmo (citação explícita de uma das imagens mais famosas do Vietnã).

O Exército do Extermínio periga ser o mais sufocante dos filmes de Romero e uma das variações mais interessantes dentro de sua filmografia. É um hibrido de filme de ação com elementos de horror e toques de ficção à maneira de Cronenberg, mas também mais limpo em sua encenação e despojado da exuberância visual dos seus filmes de zumbis. A questão aqui é a respeito da impossibilidade de resolver um problema que parece insolúvel e para o qual o cineasta não tem como ou simplesmente se recusa a oferecer uma saída.




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