Uma das discussões mais recorrentes e mal discutidas em cinema é a adaptação literária. Por que, afinal, ainda hoje, isso gera tanta controvérsia? Em tempos em que a informação está ao alcance de todos, será que ainda há nessa questão algum paradoxo que inviabilize a pacificação da polêmica?
O que ocorre aqui é, mais uma vez, o preconceito com cinema. Porque filmes são ‘arte menor’, cinema é ‘só’ diversão. Logo, um passatempo. E, portanto, algo dispensável e supérfluo, sem identidade e importância. O filme tem que ter uma historinha. E aí nasce o problema: uma adaptação de livro tem que ser fiel à obra original.
Não sei exatamente por que alguém pretende encontrar na tela a transcrição fiel de um livro — que também não é, como pensam, apenas uma descrição de eventos (ou pelo menos não deveria ser) —, mas o fato é que se algo é mudado na transcrição para a outra mídia, logo surgem críticas e perseguições. Mas é um raciocínio tão obtuso que não tem sequer a blindagem da argumentação, porque qualquer teoria que tente explicar um ponto de vista assim está fadada ao ridículo. Vejamos: A Professora de Piano, de Michael Haneke, é um filme bastante conceituado e respeitado, premiado, aplaudido. Pois bem, quantos desses admiradores terão lido o romance de origem, escrito pela ganhadora do Nobel Elfriede Jelinek? Difícil; aqui no Brasil, por exemplo, o livro permanece inédito em português. Pergunto: o que esses mesmos entusiastas do belíssimo filme francês estrelado por Isabelle Huppert achariam se lessem o romance e descobrissem que praticamente toda a história tivesse sido alterada no filme? Que personagens sumiram na transcrição para as telas, que o final foi mudado, que inúmeras decisões narrativas foram tomadas de maneira diferente? O que achariam essas pessoas? Passariam a rejeitar o filme? ‘Desgostariam’ do filme, pois ‘mal’ adaptado? Para se gostar de um filme que foi adaptado de um livro é obrigatório ler o tal livro e ver se as adaptações não mudaram a ‘essência’ da história?
Nicholas Ray tem uma frase famosa acerca da inexplicável necessidade de as pessoas se concentrarem apenas no ‘roteiro’ do filme — entre aspas, pois mesmo o roteiro não é só a ‘historinha’, pelo menos não do jeito que é filmada —: If it were all in the script, why make the film? (Se estava tudo no roteiro, porque fazer o filme?) Acredito que seja por aí. Um filme não é só história, pelo menos não ‘o que’ é contado, mas ‘como’ é contado. A absurda persistência em procurar saídas literárias fáceis proporciona o mar de superficialidades com que é discutido o assunto da adaptação literária em cinema. O filme deve ser visto como uma obra em si, sem qualquer outro amparo que não o que nele existe. Deve se esforçar para ser bom por si só. Mas o que impera, nos dois lados da tela, é a preguiça mental.
Aladdin, talvez a maior obra-prima dos estúdios Disney, mudou a nacionalidade do herói (de chinesa a árabe), tirou personagens como sua mãe e ainda resumiu a magia de gênios ao ocupante da lâmpada, quando na lenda das mil e uma noites o jovem humilde era salvo, na verdade, por outro gênio, que habitava um anel. O que fazer diante de um caso assim, de quem leu o livro de origem e assistiu ao produto cinematográfico ‘adulterado’? Ignorar uma das versões? Certamente não. A obra original está ali, intocada, perfeita ou não. O que se faz depois é outra coisa, e dever-se-ia pretender a construção de um bom filme, não de uma boa adaptação, ou, pior, de uma adaptação literal. Ou então vou ver um filmaço, adorar, aí leio a obra original e depois falo: "me enganei! Julgava ser um filme excelente, mas mudou todo o livro: portanto, é um lixo".