html> Revista Zingu! - arquivo. Novo endereço: www.revistazingu.net
Dossiê Cinema de Bordas 2

Entrevista com Marcos Bertoni

Por Gabriel Carneiro
Imagens: Arquivo pessoal

Marcos Bertoni, 53, tem uma carreira extensa no cinema. Não só como roteirista e cineasta, autor de diversos curta-metragens em Super-8, como Cleópatra, Sangue de tatu, Concerto e Cocô Preto; mas também como técnico em efeitos especiais, trabalhando com importantes nomes do cinema brasileiro, como Ivan Cardoso, J. Marreco e Guilherme de Almeida Prado.

Arquiteto e escultor, Bertoni vive da modelagem de artigos para criação de efeitos visuais, em especial maquetes e mock-ups (sabe aquelas frutas que não são frutas de verdade, mas parecem?).

Em seu cinema, Bertoni mostra-se um devoto sobrevivente do Super-8, atualmente seguindo o movimento Dogma 2002, em que não mais se filma, recicla-se. Independente da forma, a temática do cineasta parece uma constante: a ficção científica é seu meio de cativar e alertar os espectadores, em especial quanto aos problemas ecológicos.

Em entrevista por e-mail, Bertoni conta de seu interesse por cinema, de sua criação e de como se mantém no meio.

Zingu! - Quando começou seu interesse pelo cinema? E em criar cinema?

Marcos Bertoni – Durante as férias em Jacupiranga, no pequeno cinema de lá passavam filmes de terror antigos (da Hammer), mexicanos (Cantinflas), seriados de cowboy, filmes de Drácula, de Frankenstein e outros quase sempre bizarros, que faziam a alegria de toda a cidade. O cinema era a grande diversão do momento. Nessa época, a idéia de fazer meus próprios filmes era impensável. Só pensei no assunto realmente, em 1978, aos 19 anos, quando meu amigo do colégio Sérgio Mancini apareceu com uma câmera Beaulieu 4008 com lente Schneider (do seu cunhado Valandro Keating), dizendo que era o melhor dos melhores equipamentos em termos de cinema amador. Ele me falava sobre as grandes possibilidades do super-8. Antes disso, sempre tivera interesse em cinema como diversão, atividade social. Tevenda e Filmategan são os meus primeiros filmes (ambos de 1978). Na verdade, teve uma animação anterior (de 1974 ou 1975), inacabada, chamada Décio (um personagem ecológico, morador de uma praça, resultado de mutações a partir do lixo...!). Foi o começo da Lumma Filmes, em parceria com Luiz Lacanna e Sérgio Mancini.

Z - Como é fazer cinema no Brasil?

MB - Não sei, o meu cinema é feito no meu quarteirão, atualmente pode ser chamado de cinema solitário, literalmente. Sempre fiz cinema independente (de acordo com minhas posses técnicas e financeiras), depois me embrenhei pelo cinema marginal e agora estou trabalhando com Cinema de Bordas, cuja palavra de ordem, para mim, é reciclagem - custo zero de preferência.

Z - Porque a preferência pelo Super-8?

MB - Na época, era muito barato e o modus operandi era muito parecido com o de 35mm. Atualmente, cogitei filmar em digital, mas tenho preguiça do processo de edição na tela de um computador. Prefiro mil vezes pegar cada trecho de fotograma na mão e ver que ele existe realmente e que eu posso cortar, cheirar para ver se não vinagrou. È o apreço pelo material físico.

Z - Quanto tempo você demora para filmar e editar um vídeo?

MB - Varia muito e até agora todos foram editados em película. Cleópatra, por exemplo, nós filmamos só nos finais de semana, durante 4 meses. Montamos e sonorizamos em 1 mês, trabalhando nas madrugadas, usando o espaço do escritório de arquitetura do Valandro Keating e do Ricardo Ohtake. Já Concerto foi filmado em 1 dia, trucado e finalizado em 1 mês. Sangue de Tatu durou 3 meses descontinuados de filmagem e mais 2 meses de finalização. Todos os filmes do Dogma2002 são montagens complexas, muito artesanais. São idas e vindas procurando a melhor imagem ou re-adequando o roteiro às imagens disponíveis. Esse processo todo demora de 3 a 6 meses, com interrupções para a "vida normal".

Z - Quanto, em média, você gasta num projeto seu, contando produção e marketing?

MB - Em média uns R$ 500,00, contando o valor de filmes e revelações. Algumas "super produções", como Cleópatra e Sangue de Tatu podem ter chegado em astronômicos R$2.000,00! Quanto a marketing, o que é isso?.

Z - Como você recruta atores?

MB - Normalmente são os amigos mais próximos que se identificam com o conceito do filme e têm tempo livre para trabalhar de graça.

Z - Como faz os efeitos especiais?

MB - Trabalho com efeitos para fotografia, cinema, teatro e TV. Cada demanda requer uma solução diferente. Trabalho principalmente com modelagens para efeitos (máscaras, mock-ups, maquetes) que acaba sendo uma especialidade dentro do ramo. Nos meus filmes, as soluções tendem sempre a ser as mais simples e rápidas, dentro do requerido pelo roteiro

Z - Como surgiram seus filmes?

MB - Conversas no dia a dia, notícias políticas, ecologia... Cleópatra, por exemplo, era pra mostrar aos grandes estúdios americanos como fazer uma super produção sem ter que vender parte dos estúdios para cobrir os prejuízos (como aconteceu). A Revolução das Massas nasceu a partir de imagens documentais que eu fiz do quebra-quebra que aconteceu no centro da cidade no começo do governo Montoro. Concerto surgiu da constatação de que todas as projeções em Super-8 acabavam dando algum problema técnico - de som e/ou imagem. O roteiro imagina então um músico que tem sua apresentação prejudicada por essas interferências. Esses efeitos (filme "correndo", fora de foco, etc) foram conseguidos por animação dos fotogramas em uma "truca" construída especialmente pelo Mancini e pelo Zé Braga, com peças de um antigo Lego. Já Astrofagia foi concebido na época do "alinhamento dos planetas" e suas supostas "conseqüências" sobre a vida na Terra. Um projeto interessante é Cores, que fala do preconceito racial. Foi filmado em 4 dias, internamente no piano da sala de casa e os exteriores numa casa qualquer, à época vazia, que achamos na Vila Olímpia e filmamos sem autorização alguma. Os 3 gatos (1 branco, 1 preto, e outro preto e branco), coadjuvantes importantes para o clima (e a "direção de arte"), simplesmente moravam lá. Já fizemos também um documentário sob pseudônimo, com uma mini câmera (Single8 P2) escondida dentro de uma bíblia e de um rádio, disfarçados de "crentes".

Z - Você tem alguma preocupação estética ao fazer seus filmes?

MB - Claro. Gosto da fotografia - tento enquadramentos não convencionais - e me ocupo muito com a montagem e edição de som (sempre tirando partido dos parcos recursos oferecidos pela tecnologia utilizada, o Super-8).

Z - Por que filma ficção científica?

MB - Uma forte influência que eu tenho da infância. Muitas vezes quando ia passar o videotape do jogo de futebol do dia dava um problema qualquer e a TV colocava A Bolha no ar. Isso aconteceu várias vezes. Era 1967, as TVs exibiam seriados como 5ª Dimensão, Os Invasores, Enigma, os Thunderbirds... Além de O Dia em que a Terra Parou (filme), e das reprises do seriado Flash Gordon. O mais antigo que eu me lembro é o Jet Jackson (Capitain Midnight, 1954-1958).

Z - O que te faz filmar algum roteiro em particular?

RA - Escrevo roteiros, sempre sonhando em filmá-los. Imagino até os movimentos de câmeras e efeitos - gostaria de filmar tudo. Já tive várias experiências fracassadas, principalmente por falta de equipamento. Muitas dos roteiros não sendo realizados em determinada época, perderam o sentido, ou o encanto pra mim. Hoje em dia, porém, tento escrever menos e melhor.

Z - Como transformar os parcos recursos em qualidade?

MB - Cinema de ficção é truque. Se você conseguir iludir, não importa o gasto

Z - Com tão pouco dinheiro, você crê que a melhor maneira de fazer um filme original é não se levando a sério?

MB - Sempre é bom não se levar tão a sério. O que realmente importa é o argumento (o assunto inicial e seu desdobramento geral). Claro que a forma como esse argumento será mostrado deve manter o interesse do espectador no assunto ou o filme fracassará.

Z - Porque o pensamento ecológico é importante para você e para seu cinema?

MB - Quando eu tinha 5 anos, era comum sonhar que uma bomba atômica explodiria no final da rua, com cogumelo e tudo o mais. Para a minha geração, a questão ecológica é importante em todos os sentidos, não só para meu cineminha caseiro.

Z - Por que a escolha de ficções científicas com mensagens ecológicas e não outro gênero?

MB - A ficção científica é uma forma de alertar e (espero) exagerar o problema do desequilíbrio ecológico.

Z - Quais são suas influências?

MB - Gosto de todos os cineastas que fazem trabalhos pessoais: Andrea Tonacci, Werner Herzog, Carlos Reichenbach, Louis Chilson, Woody Allen, Federico Fellini, o Cacá Diegues de Bye Bye Brasil, e vários outros. Na verdade não posso culpar ninguém por influenciar diretamente meus filmes.

Z - Sangue de tatu é filme importante seu. Como surgiu a idéia?

MB - Tinha acontecido o vazamento em Chernobyl e fomos filmar as manifestações ecológicas contra a usina de Angra, com a presença de Carlos Minc, Fernando Gabeira, Maitê Proença e Lucélia Santos. Já sabíamos que faria parte de um roteiro de ficção (que ainda era esboço na época). O argumento surgiu a partir das notícias sobre Chernobyl. O clima na época foi de tristeza, seriedade e gravidade. Durante a feitura do filme teve aquela notícia de vazamento em Angra [em outubro de 1986]. Fazer o filme foi uma forma de identificação com o problema.

Z - Como conseguiu dar a impressão de filmar dentro de uma verdadeira usina nuclear?

MB - Montamos um cenário (que ficou lá por vários meses) na sala e corredor da casa em que morava. Tubos de PVC pintados de preto e prateado, cobertores pretos na parede, alguns fios descascados. Para a "piscina radioativa" aproveitou-se um rebaixo já existente na sala, preenchido com luzes por baixo e papel celofane por cima.

Z - Porque misturar ficção e realidade no filme?

MB - Porque as imagens reais deixam a situação mais tensa, aproximam as cenas apresentadas pela ficção do mundo real.

Z - Como foi ganhar Gramado?

MB - Muito bom. Eu não estava presente, mas quando meu amigo e cineasta Sérgio Concílio, quem levou o filme, me avisou que tinha um Kikito para mim, fiquei muito honrado. Pena que não era daqueles mais antigos, ainda de madeira.

Z - Cocô preto é um filme-colagem?

MB - A palavra é reciclagem. Colagem de trechos de vários filmes super-8, meus e de outros.

Z – A reciclagem, no Dogma 2002, se apresenta no sentido ecológico também?

MB - Claro. As películas que iriam para o lixo são resgatadas e suas imagens não são perdidas.

Z - Por que fazer dessa forma? Quais filmes você utilizou?

MB - Principalmente porque, nos dias de hoje, filmar e revelar filmes super-8 é quase impossível - trata-se de uma tecnologia "aposentada" pela indústria. Utilizei sobras dos meus filmes Sangue de Tatu e Astrofagia; filmes caseiros, anônimos (comprados nas feiras de usados) e trechos de condensados reduzidos para super-8 de filmes comerciais americanos (Barbarella, Trama Macabra e outros).

Z - Como você fez o cocô preto na tela?

MB - Ele apareceu sozinho (!). Foi uma sujeira que apareceu entre as lentes da filmadora durante as filmagens de Sangue de tatu, e as imagens foram descartadas. Vinte anos depois, esse defeito se tornou o protagonista do novo filme. Quando estou presente na projeção, faço aparições extras do personagem com teatro de sombra , para reforçar a ação.

Z - O que representa o cocô preto?

MB - Já que nenhum terráqueo se mostrou capaz, o extra terrestre ‘cocô preto’ precisa destruir a Terra para salvar o Universo. O defeito inicial nas cenas parecia um cocô. A ironia foi elevar essa imagem a protagonista heróico. A incapacidade humana de respeitar o meio ambiente abriu espaço para a necessidade desse personagem extraterrestre intervir, para salvar o Universo.

Z - Esse filme é bem mais experimental. Por que esse flerte com o experimentalismo?

MB - Já tinha feito outros experimentais (Concerto e Sob Nova Direção). Na verdade, todos os projetos acabam tendo sua dose de experimentalismo. A influência vem de todos os lugares - cinema marginal, teatro, circo, cordel.

Z - Você já trabalhou em quais outros filmes?

MB - Fiz efeitos especiais para o diretor J. Marreco (um dos melhores com quem já trabalhei) no filme A Mulher-Serpente e a Flor: um morto-vivo monstro que saía do mar, uma cabeça decapitada sobre a cama, e um órgão, que não vem ao caso qual, decepado de um enforcado. Fiz a adaga do longa A Dama do Cine Shanghai , de Guilherme de Almeida Prado, mock ups de docinhos para uma festa do filme Lua Nova, de Alan Fresnot, e uma cabeça decapitada para o curta E o Craque Marcou, de Louis Chilson. Além de centenas de filmes publicitários, sempre com modelagens para efeitos especiais: o personagem Passarinho, da cueca Zorba, o Ratinho da Folha, os Dedinhos do Castelo Rá-Tim-Bum, sorvetes, biscoitos, chocolates, pedras, rios, montanhas, asas de anjo, etc.

Z -Você fez também os efeitos especiais de As Sete Vampiras, de Ivan Cardoso. Como foi fazer o filme?

MB - Ivan Cardoso me contatou, pois eu trabalhava há alguns anos com efeitos especiais - aliás, a produtora dele chama Super8 Produções Cinematográficas e ele me contou que tinha feito alguns super-8. Gostei muito de fazer o filme. A produção nos hospedou no apartamento gentilmente cedido pelo talentoso fotógrafo Carlos Egberto. As nossas cenas foram filmadas em Florália, em Niterói. Fizemos a modelagem da planta carnívora em São Paulo e levamos de X15 Gurgel (o mesmo usado em Sangue de Tatu). Foi tudo num clima muito amistoso, profissional e pagaram direitinho (!). Gosto do cinema do Ivan. Temos coisas em comum, como não nos levar muito a sério.

Z -Quais das suas produções você gosta mais?

MB - Cada uma tem sua época. Em cada produção tem um amigo ou amiga protagonista. Seriam outros filmes se feitos agora, claro.

Z -Tem novos projetos?

MB - Sim. Enquanto houver um trecho de filme caído no chão de um ferro velho e uma idéia na cabeça, sempre poderá surgir outro filme dentro do "movimento" Dogma 2002: "É proibido filmar. É permitido reciclar, montar, dublar. Sempre em Super-8."



<< Capa