html> Revista Zingu! - arquivo. Novo endereço: www.revistazingu.net
Dossiê André Luiz Oliveira

Entrevista com André Luiz Oliveira

Parte 2: Meteorango Kid e a contracultura


A cabeça do entrevistador, André Luiz Oliveira
e Antonio Luiz Martins, o Lula.

Por Gabriel Carneiro
Fotos: Dênis Arrepol

Zingu! - Como surgiu a idéia de filmar Meteorango Kid?

André Luiz Oliveira - Encorajado pelo prêmio de Melhor Documentário no Festival JB Mesbla no Rio de Janeiro com o curta Doce Amargo, meu e de José Umberto, abandonei a Faculdade de Ciências Econômicas e decidi me dedicar inteiramente ao cinema. Pensava em fazer mais um curta-metragem - até cheguei a escrever o roteiro e começar a pré-produção, desta vez com uma câmera 35mm. Acontece que nesse final de ano veio uma onda de mudanças na conjuntura internacional e nacional, culminando com o AI-5. Na minha vida também aconteceram mudanças radicais. Foi quando tive a minha iniciação nas substâncias alucinógenas e o início de uma ruptura com as estruturas familiares, sociais, políticas, culturais que na época chamávamos de “caretas”. Foi na onda desse “verão alucinado” de 1968/69 que escrevi o roteiro de O Mais cruel dos dias que depois veio se chamar Meteorango Kid, O Herói Intergalático. O filme foi a conseqüência desse momento turbulento que vivia.

Z - Por que esse título?

ALO - O filme teve vários nomes e até o momento de fazer a cópia final na Líder Cinematográfica no Rio de Janeiro eu ainda não havia me decidido qual título colocar, nada me agradava. Foi quando lembrei de uma música de um amigo da Bahia, chamado Tuzé de Abreu. Era um grande amigo e eu o admirava. Ele cantava essa música com muita verve e ferocidade: “Meteorango Kid, que decidiu, viver a vida que Deus lhe deu, Meteorango hoje sou eu... hoje sou eu”. A música terminava assim e chamava-se Meteorango Kid, o Herói Intergalático e tinha tudo a ver com o que estávamos vivendo e com o filme. Naquele instante, eu percebi que havia descoberto a metáfora ideal, matado a charada do personagem do filme que éramos todos nós, a geração inteira, e coloquei o nome no filme de Meteorango Kid. Uma irresponsabilidade juvenil, porque o autor poderia não ter concordado e eu teria tido problemas, mas não foi o caso – tanto que Tuzé foi o responsável pela trilha sonora de meu segundo longa, A Lenda de Ubirajara. Tudo que usei no filme de trilha sonora, por exemplo, não tinha permissão alguma. Naquela época, o sentimento geral de fazer um filme daquele era como a execução de uma ação terrorista. Um gesto de rebeldia absolutamente contra o sistema e não havia tempo nem espaço para esse tipo de pudor – o mundo velho estava explodindo e as nossas cabeças também.

Z - Como era a efervescência cultural na Salvador dos anos 60?

ALO - Nunca fui de andar em turma, sempre fui muito isolado, mesmo quando estava em grupo filmando, portanto não sei direito o que estava rolando na cidade, somente posso falar do que estava acontecendo comigo. Como disse acima, eu estava vivendo uma mudança radical de paradigma na minha vida. Sabia que estava entrando em uma zona perigosa relacionada à quebra de tabus familiares, sociais, políticos; mergulhando numa região que de início era muito divertida e colorida, mas aos poucos foi ficando demasiadamente sombria e assustadora. Eu intuía que a coisa podia piorar como piorou, mas eu já havia mergulhado e tinha que seguir nadando. Tanto que o filme é carregado desse tom divertido, esculhambado, agressivo e melancólico. Acho que a cidade estava vivendo a mesma coisa.

Z - Meteorango Kid é um exemplo da contracultura no Brasil. Quais foram as suas principais influências para realizar o longa?

ALO - Revendo com o distanciamento de 4 décadas, vejo claramente que a maior influência que tive foi do Tropicalismo. Embora não assumisse que era um tropicalista, porque isso nunca me passou pela cabeça, eu agia como se o fosse. Interpretei à minha maneira e incorporei os valores que os tropicalistas da geração anterior professavam, sobretudo os ditados pelos seus principais criadores e representantes Caetano e Gil. Toda a transformação pessoal que estava vivendo era alimentada pelas palavras de ordem tropicalista e Meteorango está cheio dessas influências. Oiticica: “seja marginal, seja herói”; Caetano: “Derrubar as prateleiras, as estátuas, as estantes, louças, livros, sim”; Gil: “Zeca meu pai comprou um wolkswagem blue”; Sganzerla: “...quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha e se esculhamba”; Rogério Duarte: “...e línguas como que de fogo tornaram-se visíveis e se distribuíram sobre cada um e todos ficaram cheios de Espírito Santo”.

Z - Como a ditadura afetou a realização do seu longa?

ALO - A realização propriamente dita não afetou em nada. Fiz o filme com toda liberdade. A ditadura afetou na medida em que o filme estava impregnado do clima de opressão e revolta contra ela. O filme se configurou como uma reação consciente e inconsciente à opressão que ela impunha a todos nós.

Z - Por que chamar os Novos Baianos para fazerem a trilha?

ALO - Os Novos Baianos como grupo ainda não existia, ou para ser mais claro, nessa época ,1968/69, os novos baianos éramos todos nós, geração pós Caetano/Gil. O grupo musical nasceu dessa efervescência, esculhambação e revolta, no rastro do tropicalismo. Chamá-los era o gesto mais natural, pois além de estarmos na mesma onda, éramos amigos. Pepeu Gomes, com 14 anos, fez uma ponta em Meteorango.

Z - Como você conheceu os integrantes dos Novos Baianos?

ALO - O grupo musical profissional surgiu depois no Rio de Janeiro. Eu sempre conheci Paulinho Boca, desde a adolescência. Moraes Moreira foi levado na minha casa por Lula Martins (ator de Meteorango). Não lembro quem levou Pepeu para fazer uma ponta em Meteorango. Baby Consuelo era uma menina de uns 13 anos que havia chegado do Rio de Janeiro, não lembro direito se foi Seu Wagner (ator de Meteorango) ou se foi uma ex-namorada chamada Ediane que me apresentou a ela em Campo Grande. Quem era mais meu amigo era Gato Felix.

Z – O que você quis dizer ao filmar Meteorango Kid?

ALO - Não queria dizer nada ao mesmo tempo queria dizer tudo. Isto é uma forma de dizer que eu não sabia direito o que estava fazendo, ao mesmo tempo em que sabia muito bem. A única certeza que eu tinha é de querer expressar tudo o que estava sentindo e vendo ao meu redor - e foi isso que aconteceu. O filme é uma catarse, reflexo das minhas inquietações e angústias pessoais e da minha geração.

Z - Como conheceu o Márcio Curi?

ALO - Marcio Curi apareceu na Bahia - ele é de Niterói - nesse verão alucinado de 1968/69, ao qual já me referi. Ele já havia morado na Bahia e fora meu contemporâneo no ginásio do Colégio Militar, mas eu não o conhecia. Nessa altura, quando o reencontrei, eu já estava querendo fazer o primeiro longa e ele se apresentava como produtor do Rio de Janeiro. Quando acabei de escrever o roteiro de Meteorango, o procurei, não lembro onde. Ele foi a única pessoa a acreditar que aquele roteiro poderia virar filme. Sem Marcio Curi dificilmente o filme teria sido realizado, porque eu não sabia como fazer. Ninguém conseguia ler o roteiro sem fazer cara feia, muito menos aceitar qualquer tipo de envolvimento com ele. Não havia ninguém na Bahia que tivesse coragem de assumir a produção de um filme com um roteiro tão desconcertante e, ainda por cima, dirigido por um estreante sem a menor experiência. Mas ele assumiu e levou a tarefa até o final. No Rio de Janeiro, foi ele quem comprou os negativos, arrumou lugar para montar o filme, contratou estúdio para dublar e colocar trilha, laboratório para o processamento, enfim, tudo que eu nunca havia feito e não tinha a menor idéia de como faria.


O entrevistador, André Luiz Oliveira
e Antonio Luiz Martins, o Lula.

Z - Como foi trabalhar com o Antonio Luiz Martins, com o Caveirinha e com o Milton Gaúcho?

ALO - Milton Gaúcho era um ator consagrado na Bahia e um amigo de meu pai; não tínhamos nenhum contato mais próximo além do filme. Lula Martins era o próprio Lula Meteorango. Ele era o cara que eu precisava para o filme. Ele percebeu isso e não teve dificuldade em fazer muito bem esse papel. Durante o filme nos tornamos muito amigos e somos até hoje. Manuel Costa Junior, Caveirinha, foi aquele talento explosivo revelado em Meteorango. Um grande amigo, que além da amizade, acompanhou-me no segundo filme, A Lenda de Ubirajara, como assistente de direção.

Z - Você concorda com as falas do Milton Gaúcho no filme? Como se faz dinheiro em cinema?

ALO - Essas falas têm 40 anos, mas ainda fazem algum sentido. A fala dele pode ser considerada uma metáfora de que filmes miura, como eram chamados os filmes intelectualizados e difíceis de público da época, não tinham como concorrer com os filmes de ação feitos na Boca do Lixo.

Z - Você gosta das produções da Boca do Lixo?

ALO – Algumas. Vi poucos filmes produzidos na Boca do Lixo de São Paulo. Assisti e gostava muito dos filmes do Ozualdo Candeias e de alguns filmes do José Mojica Marins. Nunca me interessei pelas outras produções. Não gostava das pornochanchadas que começaram a serem produzidas em alta escala por lá.

Z - O filme surge do grito de avacalho de O Bandido da Luz vermelha? Por que carregar essa bandeira?

ALO - O filme está muito longe de surgir desse grito. Ele é muito maior do que isso. Não carrego porra de bandeira nenhuma. A citação do Bandido é fortuita, pontual e carinhosa com o Sganzerla, que eu admirava. Só isso. A avacalhação estava já no espírito tropicalista e era uma palavra de ordem da época, da minha geração na Bahia. O Bandido da Luz Vermelha explicitou-a no cinema e isso foi um estímulo a mais. O grito que você se refere pode ser do meu testículo apertado, agoniado, revoltado.

Z - O que você acha do rótulo Cinema Marginal? Prefere outro termo?

ALO - Não gosto desse, nem de rótulos. Se for inevitável algum nessa sociedade capitalista publicitária, prefiro Cinema Atormentado. Cinema Marginal é o cinema brasileiro, com raras exceções. Cinema Atormentado é a cara desses filmes mesmo quando são engraçados e esculhambados. Existe uma dor imensa no esculacho de cada um deles, causada pela fragmentação individual, pela impotência, pela revolta, pela marginalidade social, pelo rompimento dos limites em todos os sentidos.

Z - Você nunca pensou em ser cineasta de carreira?

ALO - Não gosto de rótulos. Aprisiona as pessoas.


Parte 1 // Parte 3



<< Capa