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Especial Cinema ‘Marginal’ Baiano

Alvinho Guimarães


Por Cid Nader, especialmente para a Zingu!*

Quando me pediram para escrever algo sobre a trajetória cinematográfica do diretor baiano, Álvaro Guimarães, veio-me à mente a louvação que fazia internamente dele, muito mais por conta de sua inequívoca ligação (sem que isso compreendesse o aliamento dele mesmo) à marginalidade artística, num país que tem o forte de suas artes justamente nos autores que trafegaram (ou que trafegam, ainda) na contramão do institucionalizado (conceitualmente, ou por “dever de ofício”).

Relembrei de um sessão vista quase há um milênio do mitológico Caveira, My Friend (1970). Filme que nunca mais repeti, e que serve de referência quase total ao que tenho interiorizado sobre esse estupendo autor marginal - não dá para dispensar totalmente os dados que andei lendo sobre autor e obra nestes últimos tempos (no qual passei a me dedicar mais amiúde à arte da avaliação da arte), como não dá pra simplesmente jogar no lixo sua passagem bem mais “reconhecida” (de um modo mais amplificado) pelos mundos do teatro e de outras atribuições nas instâncias cinematográficas.

Alvinho Guimarães, como era conhecido, foi um importante diretor teatral, especialmente na Bahia. Adaptou textos fortes e imagéticos, de forma original, e se destacou no meio. Dirigiu Uma obra de governo, baseada em texto de Dias Gomes, “uma peça com uma mise-en-scène incendiária, um teatro quase de agressão e de propósitos desestruturais”, segundo o crítico de cinema André Setaro, e As Criadas, da dramaturgia de Jean Genet, no teatro Gamboa. No Rio de Janeiro, entre muitas outras, montou Os sete gatinhos, de Nelson Rodrigues, em 1967, e À Direita do Presidente, de Vicente Pereira, em 1980. É no Rio também que funda, com Walmir Ayala e Jorge Mourão, o Teatro de Câmara, em 1965, dedicado a encenações populares e de vanguardas, tendo sido fechado no ano seguinte pelo Regime Militar. Paralelamente a essa atividade, publicava textos de estética teatral no Suplemento Dominical do Diário de Notícias, de Salvador.

Baiano, de “origem boa” e educação acima da média de seu povo, Alvinho percorreu antes e durante sua existência como diretor de cinema imprescindível – antes, havia realizado um curta-poético, Moleques de Rua (1962), sobre menores abandonados, o qual não vi. O filme, praticamente perdido, deve voltar à vida na Coleção Cinema Marginal Brasileiro, da Lume, que lançará a obra cinematográfica de Álvaro Guimarães.

Álvaro começou no cinema com Glauber Rocha, como assistente de direção de Barravento, de 1961, (tendo acompanhado com escândalo e tudo sobre a destituição de Luís Paulino dos Santos da direção do longa). Teve outra participação, como assistente de direção e diretor de arte e figurinos de O Menino do Engenho (de Walter Lima Junior, 1965). Foi Alvinho que, teoricamente, lançou Caetano Veloso e Maria Bethânia ao mundo da música (“Bethânia e eu fazemos música por causa dele”, disse Caetano em blog). Caetano comporia a sua primeira trilha sonora para a peça O boca de ouro, de Nelson Rodrigues, montada por Álvaro, que o convidaria para produzir a trilha sonora da peça A exceção e a regra, de Bertold Brecht.

Dentro de um aspecto lúdico, é uma obra que percebi e conheci num momento em que não tinha realmente o interesse mais centrado na arte das imagens em movimento. Da minha parte, observando-o sempre com um olhar reverente e encantado (tenho essa queda por produtos e produtores que caminham na paralela, que enxergam o mundo por ótica própria e oposta ao mesmismo), posso dizer que a apreciação veio na mesma banda em que se situava a apreciação pela marginália cinematográfica paulista e carioca (udigrudi). Todas as comparações mais próximas remetem a confecção de Caveira My Friend à similaridade temática e formalista de Meteorango Kid, o Herói Intergalático, (do, não por acaso, também baiano, André Luiz Oliveira). Comparação cabida, mas que ganha alguma (e salutar) distância pelos aspectos, mas intimistas intrometidos em Caveira, que acabam “desestabelecendo” as similaridades técnicas de comparação como as únicas possíveis (no caso, algo bastante comum a todo esse belo cinema marginal tupiniquim, que refere ao modo de edição não linear, a tomadas de imagens e enquadramentos mais “encrencados”, à não necessidade de alguma mensagem a ser repassada), para emprestar uma característica muito própria, quase documental, ao trabalho.

Sei lá por qual razão - de modo até surpreendentemente diverso ao que ocorreu com carreira de André Luiz Oliveira, e até de outro baiano/cineasta/marginal (não necessariamente nesta ordem), Edgard Navarro - a fama (mesmo aquela cultuada e mantida pelos poucos que preferem os mundos artísticos não comuns, as narrativas não formais, a “edição de aparência quebrada”) de Guimarães e seu “undi-mitológico” Caveira, aparecem muito menos referenciadas em momentos dedicados a artistas de outra esfera. O modo de ele entender e revelar seu tempo como poucos, de mostrar as apreensões de sua geração, quando vistos por retinas mais atentas, é de difícil esquecimento. Seria o caso, até, de sair berrando, para que não esqueça quem ouviu falar, para despertar quem nunca abriu os olhos: “viva a marginália”, “viva esses que enxergaram como poucos”, “viva esses que concretizaram de modo irrepreensível”.

Alvinho morreu no dia 15 de outubro de 2008, aos 65 anos.

*Cid Nader é jornalista, cozinheiro e crítico de cinema. É editor do Cinequanon e mantém o Cidblog.

**As imagens de Álvaro Guimarães foram retiradas do Setaro’s Blog.




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