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Especial Cinema ‘Marginal’ Baiano

Caveira, My Friend
Direção: Álvaro Guimarães
Brasil, 1970.

Por Filipe Chamy

Certas obras de arte estão condenadas à subestimação, por sua própria culpa e seu próprio mérito; este filme é um exemplo pungente. Relativamente conhecido entre cinéfilos que garimpam o “udigrudi” (ou underground) brasileiro, é um trabalho essencialmente experimental dirigido por Álvaro Guimarães no começo dos anos setenta. Experimental sobretudo na forma; forma que é a razão do pouco alcance do filme. Porque se em arte o conteúdo e forma sempre se misturam, a dosagem equivocada pode provocar incompreensão tanto do público como da crítica. Não que o caráter de ruptura que esta película apresenta seja acidental; não o parece e muito dificilmente o é. Mas é fato que é preciso, antes de tudo, sutileza para quebrar fórmulas consagradas, pelo menos se não se quiser pregar no deserto. Para obter público, é preciso tornar o trabalho menos egoísta, entender a lógica do espectador — que, como disse John Cassavetes, não quer ver nada diferente, mas pode se surpreender —, pois o discurso feito no vazio não arrebanha seguidores.

O problema é intrínseco: essa falta de preocupação com o que os outros irão pensar é quase que literalmente um dos postulados de um cinema marginal. Não ter respeito pela estruturação cinematográfica clara, romper de vez com a obrigação narrativa, ‘desnaturalizar’ a técnica — e sempre nos lembrar que o filme é antes de mais nada um projeto autoral —, treinar atores não profissionais (e Baby Consuelo) para definirem seus movimentos em um espaço reduzido, mas com desejo de grande significação. A todo instante, Caveira, my friend parece orgulhar-se de ser uma espécie de canto tribal.

Jean-Luc Godard disse certa vez que para fazer um filme basta uma arma e uma garota. Há crime e um feminismo peculiar em Caveira, my friend. Párias, realizadores e intérpretes reconstroem momentos de ocaso e acaso, uma realidade passageira que, na verdade, nunca é substituída, em nosso país e em outras terras de acuados.

A trama do filme dilui-se nas personagens, que ora parecem viver apenas na coletividade de suas companhias, ora para suas íntimas existências. Problemas de relacionamento, filosofias diversas, diálogos curiosos (principalmente os metalingüísticos, que se dirigem inclusive ao cineasta) - tudo aparece numa roupagem estranha, meio amorfa, difícil até o patamar do incômodo, mas que não é de todo desinteressante a quem se interessa por linguagem visual. Retornamos ao problema intrínseco do filme: como esperar de uma cultura que desamarra seus grilhões narrativos uma vontade de entreter a platéia? E como criticar, portanto, uma falta de mobilização no sentido de não entediar com a utilização até abusiva de planos que reforçam a idéia de contracorrente? Não há, naturalmente, solução para o impasse.

O que fica, em casos assim, é a impressão desagradável de que o filme cumpriu seu papel. Que é “válido”, que é até necessário em um contexto rebelde, mas que vale mais como “peça de contexto” do que como arte; porque elogia-se a iniciativa, o empreendimento, a elaboração de algo criativo com recursos mínimos e concessões escassas, e não as qualidades características da obra em si. Porque Caveira, my friend não é um filme de passatempo e nem tenta sê-lo, mas ao mesmo tempo não é contemplativo como uma obra plástica eloqüente, ele precisa de um suporte que consiste na resposta do espectador, de “comprar” a idéia, entender a profundidade da experiência (no sentido mesmo de experimentação), porém não resiste à própria ousadia e fracassa na tentativa de aproximação. Caveira, my friend é tão marginal que até nisso é radical: expulsa a aclamação por causa do próprio teor agressivo.



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