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Fragmentos Literários
Por Stefanie Gaspar

Noite sem Fim
, e Agatha Christie


(Contém spoilers)

Já escrevi sobre Agatha Christie nesta coluna, falando sobre o livro que encerra a fase das histórias do detetive Hercule Poirot, Cai o Pano. Na resenha, eu descrevia como o estilo de Agatha Christie, normalmente dominado por clichês e delimitações inegáveis, conseguia se superar ao criar um personagem único em toda a carreira da escritora – o assassino perfeito, Norton. Quando escrevi esse texto, tinha certeza que aquela seria a única vez que falaria sobre um livro realmente significativo da escritora britânica. E, meses depois, sou obrigada a confessar que estava completamente enganada.

Continuo encontrando os mesmos problemas de sempre nos livros de Christie. Linguagem pobre, preconceitos, clichês, frases batidas e situações inverossímeis são características recorrentes em grande parte dos livros da autora. Mas a questão é: esses defeitos tornam sua obra menos divertida? Nem sempre. Um trabalho que mostra muito bem como Christie é capaz de criar enredos marcantes é Noite Sem Fim, lançado em 1967.

O livro conta a história de Michael Rogers, um jovem ambicioso e de temperamento instável, que se apaixona por uma herdeira imensamente rica. O storyline básico da história é esse, mas o que realmente importa na trama tecida pela escritora é a criação de uma personalidade intrigante – mesmo motivo pelo qual o livro Cai o Pano é tão instigante.

Michael Rogers é um homem misterioso. Agatha Christie o apresenta ao leitor como um jovem irresponsável em relação a seu futuro, mas só desenvolve o lado sombrio de sua personalidade no final do livro - que tem um desfecho espetacular e que supera facilmente outros trabalhos mais famosos da escritora, como O Caso dos Dez Negrinhos e Assassinato no Expresso Oriente.

Não há mistério em entender porque o final de Noite sem Fim é tão cativante – aqui, Christie vai além da mera resolução de um crime e propõe ao leitor a dissolução de um personagem. Ela não soluciona o mistério final: a personalidade de Rogers e o que aconteceu com ele ao final. Esse homem, um assassino, entrou, de acordo com Christie, voluntariamente no que a escritora batizou de “noite sem fim”, baseada nos versos de William Blake em Auguries Of Innocence: “Every night and every Morn / Some to Misery are born / Every Morn and every Night / Some are borne to Sweet Delight / Some are born to Sweet Delight / Some are born to Endless Night” (“Toda noite e toda manhã / alguns nascem para a miséria / toda manhã e toda noite / alguns nascem para a alegria / alguns nascem para a alegria / alguns nascem para a noite sem fim”).

Ao colocar Michael Rogers no panteão de personagens engolidos pelo mal, Christie inverte o que normalmente se interpretaria ao final do livro. Rogers assassinou sua esposa, Ellie. À luz desse fato, o poema de Blake poderia ser interpretado da seguinte maneira: Ellie, que foi privada da vida, teve como desfecho a noite sem fim, a morte. Rogers, o assassino, ficou com todo o dinheiro e conseguiu a outra mulher que queria, a melhor amiga da esposa. Logo, é o que teve o final feliz e foi condecorado pela vida, embora por linhas tortas. Agatha Christie inverteu essa equação: Ellie, que na verdade conhecia o temperamento do marido, entrou no pacto da morte voluntariamente, porque nada tinha a temer. Ela, com sua doçura e candura, era a alegria. Michael, que conseguiu tudo o que queria manipulando Ellie e a própria vida, entrou por conta própria na noite sem fim. No romance, essa noite sem fim é entrar em um caminho para o qual não há retorno – Michael tinha visões de Ellie, mas percebia que a esposa não era capaz de vê-lo. Michael havia entrado em um vácuo, não estava nem vivo nem morto. Estava na noite sem fim.

Brincar com a morte e com os mistérios da vida não é exclusividade de Christie – com certeza, outros autores tratam o tema com maior competência. Entretanto, o final de Noite Sem Fim é tão perfeito dentro do contexto da trama que o livro obriga todo leitor cético a prestar mais atenção na capacidade da autora de criar enredos capazes de prender a atenção.



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