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Lançamentos
Por Vlademir Lazo Correa

Amantes
Direção: James Gray
Two Lovers, EUA, 2008.

O sucesso do anterior Os Donos da Noite fez com que James Gray finalmente começasse a ser descoberto pelo público e até por parte da crítica que ainda não havia tomado conhecimento ou não se recordava de sua existência. O filme em especial o ligou fortemente a uma tradição de filme policial como se Gray fosse um representante do gênero, com a maioria dos seus admiradores esperando por uma nova investida do diretor nessa mesma linha, o que poderá ter decepcionado muita gente diante da sinopse desse novo trabalho. Uma visão conjunta de todos os seus filmes, entretanto, revela que a incursão de Gray ao universo do crime em Os Donos da Noite foi apenas circunstancial, pois o seu verdadeiro estilo é o de uma profunda entrega ao drama e a toda intensidade que dali se pode extrair, geralmente em torno de questões como família, fidelidade e o peso da herança cultural, o que vai de encontro a um classicismo que é predominante em sua obra, mas que o torna à margem de quase tudo que vêm fazendo no cinema contemporâneo.

Assistir Amantes é constatar que Gray é o mais consistente diretor americano surgido em muito tempo. Talvez outros cineastas de sua geração tenham filmes melhores no currículo, mas nenhum deles possui uma filmografia tão irretocável como a de Gray, que desde que estreou no cinema aos 24 anos de idade com Fuga Para Odessa (1994) vem regularmente se dedicando a contar histórias de gente, algo que descrito assim deve parecer comum, mas que pode ser considerado raro hoje em dia ─ porém, mais raro ainda é a competência com que o cineasta nos coloca em sintonia com as experiências de seus personagens e de como conduz cada um dos seus trabalhos em sua magra (em número de filmes, apenas quatro até o momento) e parruda (em qualidade) filmografia, com uma forma exemplar que não nos cansa de surpreender, e que é possível que tenha alcançado o ápice com esse seu mais recente longa-metragem.

É um filme enganosamente simples, que começa com uma frustrada tentativa de suicídio de Leonard (Joaquim Phoenix, impressionante), um sujeito cujo passado nos é apresentado em doses homeopáticas, mas profundamente abalado por eventos anteriores, e que se limita a circular pelos arredores da vizinhança no bairro em que reside com seus pais. É através deles que conhece Sandra (Vinessa Shaw), filha de um rico empresário com quem o pai de Leonard deve se tornar sócio. Foi Sandra quem primeiro se apaixonou e buscou uma aproximação com Leonard, e, de fato, ela pode ser a salvação da vida sentimental do rapaz, e até de sua estabilidade financeira. Sandra é bela, meiga, sincera, carinhosa. Não pressiona Leonard, nem o força a tomar atitudes, apenas espera que ele se decida. Mas a impressão que nos é transmitida é que Leonard é um estranho a tudo e a todos, até mesmo ao próprio pai e mãe. Uma barreira que Sandra tem dificuldades de superar, porém Leonard vai se deixando levar pelo curso dos acontecimentos, com as duas famílias conjurando para que se ate um namoro entre os dois jovens, o que acaba acontecendo naturalmente em questão de pouco tempo.

Mas o que faz com que Leonard saiba finalmente o que quer da vida é o encontro com a nova vizinha do bairro - que acaba de se mudar e mora na janela do prédio alto em frente ao seu quarto -, Michelle (Gwyneth Paltrow), na qual ele projeta os seus desejos, e que surge da luz de um corredor como uma visão, e que assim permanece o tempo todo, como uma aparição, um anjo (ou demônio) em forma de uma mulher tentadora. Leonard se dedica a fotografá-la de sua janela e vai adentrando na intimidade de sua nova amiga, da qual descobre ser mais problemática e confusa do que ele próprio, com pai sofrendo de doenças mentais, uso corriqueiro de drogas e noitadas na rua e em discotecas, numa das quais novamente transcorre outra das grandes cenas dentro da obra do diretor (como ocorrera em Os Donos da Noite). Michelle só o quer como amigo, pois já está envolvida em outras complicadas situações amorosas da qual espera o desenlace, porém o que Leonard deseja é estar ao seu lado, nem que seja apenas na condição de amigo, mas sempre apaixonado e prestativo. O filme trabalha com uma idéia de responsabilidade, porque sejam quais forem as conseqüências em sofrer, Leonard jamais poderá ser visto como vítima, pois ele é completamente responsável pelos seus atos.

A grande maestria do trabalho de direção de James Gray vem justamente ao compor e pontuar todos esses retalhos de vida de forma bastante sutil, em que, com o excesso de humanização dos personagens, o cineasta estabelece um olhar e um diálogo inteligente com a platéia. E o filme não se sustenta apenas de boas idéias e por um ótimo roteiro, porque há todo um trabalho narrativo e visual feito com muito apuro. O diretor vai tecendo os anseios e vontades dos personagens de modo hábil, com detalhes que habitam nas entrelinhas, em cenas por vezes longas que exprimem os desejos contidos por meio de vívidas trocas de olhares ou de intercâmbios de palavras de amor ou declarações de desespero. É pouco comum a forma como o diretor consegue em certos pontos do filme, em mais de um determinado momento, injetar aquela aflição diretamente no íntimo, com um tom dilacerado que ecoa durante todo o tempo, o bom senso sendo substituído pelo coração, na verdade com os dois travando uma batalha épica que obviamente terá um final devastador. Mas tudo de um modo admiravelmente sereno todo o tempo, com uma serenidade que antecipa o trágico e o inesperado, a fatalidade e o imprevisto.

Eis uma pequena obra-prima, no sentido mais sincero da palavra. Tido como o mais francês dos cineastas americanos atuais, James Gray captura atmosferas distintas e capta a alma dos seus personagens (todos como se fossem absolutamente de carne e osso) e constrói e destrói relações passionais e inseguras com uma singeleza impecável, descrevendo existências incertas e vidas sem rumo, numa incisiva radiografia das emoções humanas e dos sentimentos amorosos e desordenados. No desfecho, o que nos resta é um falso final feliz, que nos deixa tão atônitos e surpreendidos quanto o seu protagonista, e que termina como um conto moral, de queda e ressurgimento, e que torna concreta a busca de um mundo que seja digno de crença e adesão, apesar de tudo. Uma fuga desesperada pela sobrevivência e sobre as escolhas que alguém faz quando posto sob pressão, diante da constatação da total impossibilidade de tocar a própria vida como se quer e se planeja. Um filme para ver e rever.



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