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Musas Eternas...
PORQUE O QUE É BOM, É ETERNO...

Helena Ignez

Por Vlademir Lazo Correa


Vivemos em país privilegiado em matéria de mulheres, e mais especificamente em relação às musas do nosso cinema, como pode se perceber nos inventários e levantamentos que a Zingu! vem fazendo nesses anos todos. Mas poucas atrizes brasileiras podem ostentar em seu currículo uma quantidade tão numerosa e invejável de filmes clássicos, cults e importantes quanto a baiana Helena Ignez, verdadeiro patrimônio do cinema nacional e musa de várias gerações sucessivas de cinéfilos, cuja idolatria não tem previsão de esmorecer tão cedo e está muito longe de acabar.

Helena Ignez é tão singular que somente poderia ter sido moldada por relações com homens que viveram o cinema com o corpo e com a alma, no caso alguns dos diretores mais importantes surgidos no país, numa afinidade em que os vínculos da atriz com cada diretor confundem-se e imbrica-se ao ponto de não se saber onde começa a contribuição da musa inspiradora e onde inicia o trabalho de cada um desses cineastas na lenta construção do mito da artista. Até mesmo por que existe um consenso de que Helena não foi descoberta, na verdade ela quem foi incumbida pelos deuses para cruzar os caminhos de Glauber Rocha, Julio Bressane e Rogério Sganzerla.

Provavelmente o povo de Salvador na década de 50 não imaginava que aquela garota oriunda de uma tradicional família de origem portuguesa chegaria tão longe na carreira. Na época, chocava a capital baiana por seu comportamento avançado (como socialite ganhou o título de glamour girl de um clube local) enquanto dividia a sua vida entre o teatro e a faculdade de Direito, onde conheceu o então adolescente Glauber Rocha, já uma figura de proa nas rodas culturais de Salvador, com sua intensa atividade jornalística e intelectual. Do casamento de cinco anos com Glauber nasceu a filha Paloma (hoje produtora cultural e dedicada à luta pela preservação e restauração da obra do pai) e resultou na estréia no cinema tanto do diretor quanto de Helena, o curta-metragem O Pátio (1959), um filme-poema sem palavras sobre um homem e uma mulher que se movimentam lentamente num terraço de azulejos em forma de xadrez e em cuja exibição num cinema em Salvador teve todas as suas poltronas rasgadas a gilete pela platéia! Pouco depois ela estrelaria com o ator Geraldo Del Rey A Grande Feira (1961), de Roberto Pires, um dos primeiros longas-metragens rodados na Bahia, e na mesma época Glauber Rocha concebeu o personagem de Rosa (que afinal seria interpretado por Yoná Magalhães) em Deus e o Diabo na Terra do Sol para que fosse representado por Helena, mas àquela altura Salvador estava pequena demais para a atriz, que foi tentar a sorte no Rio de Janeiro, após o fim do casamento com Glauber.

Na capital carioca continuaria dedicando-se intensamente ao teatro (o qual trabalha ainda nos dias atuais) e conseguiu um papel no clássico O Assalto ao Trem Pagador (1962), de Roberto Farias. Somente, porém, tornou-se nacionalmente conhecida quando foi a protagonista feminina de O Padre e a Moça (1966), o primeiro longa de Joaquim Pedro de Andrade, sobre a história de amor contida e reprimida entre uma jovem e um padre católico na roça mineira - uma obra-prima com um rigor narrativo digno de Robert Bresson -, e pelo qual pôde viajar para o Festival de Berlim como representante do filme e agraciada com uma menção honrosa como revelação, e diversos prêmios no Brasil (como o de Festival de Brasília, o qual receberia novamente três anos depois pelo seu trabalho em A Mulher de Todos). A destacar também outro título em que a atriz esteve presente, O Grito da Terra (1964), de Olney São Paulo, um filme que hoje em dia é pouco lembrado e que precisa ser urgentemente resgatado do limbo em que se encontra, mas que conta com admiradores ilustres como o cineasta Carlos Reichenbach, que em mais de uma ocasião o citou com entusiasmo em seu blog pessoal.

A essa altura Helena era uma das musas do Cinema Novo Brasileiro, porém a atriz conta que era uma época de muita solidão, mesmo com namoros mais e outros menos longos, entre os quais com o jovem Julio Bressane, estrelando seu primeiro longa que, o subestimado Cara a Cara (1967), um dos filmes nacionais mais amargos daquele tempo. Foi quando a atriz intensificou o seu trabalho no cinema, protagonizando o segmento Guilherme de O Marginal (1968), longa dividido em dois episódios (o com Helena é dirigido pelo hoje consagrado Carlos Alberto Prates Correia), além de participações em O Engano (1968), de Mario Fiori, e Um Homem e Sua Jaula (1969), da dupla Fernando Coni Campos e Paulo Gil Soares.

Foi quando veio o encontro com Rogério Sganzerla. Um dos talentos mais precoces do cinema brasileiro, conhecido até então como um demônio na crítica cinematográfica com seus textos n’O Estado de S. Paulo, mas nada que pudesse nos preparar para a explosão de criatividade que foi o seu primeiro longa, rodado na Boca do Lixo, O Bandido da Luz Vermelha (1968), cujo impacto até hoje é sentido - e que na estréia traumatizou fortemente o cinema brasileiro, levando à cisão que daria origem ao movimento do Cinema Marginal. Foi no set de filmagem que Helena ─ que no filme interpreta a mulher do bandido, a personagem Janete Jane ─ conheceu Rogério, resolvendo os problemas de sua vida afetiva. Sganzerla seria o seu amor e companheiro dali em diante, resultando no nascimento de duas filhas, Sinai e Djin Sganzerla

A paixão foi fulminante e levou o casal à realização de um segundo filme logo em seguida, o extraordinário A Mulher de Todos (1969), também rodado em São Paulo, e que pode não ter o mesmo impacto que O Bandido da Luz Vermelha, mas ressoa melhor nas revisões. A presença de cena de Helena sempre foi anormal nos filmes em que participou, mas, nesse, ela chega ao auge no papel de Ângela Carne e Osso, “nascida para os boçais”, o veículo mais impressionante para o seu talento. Para além de uma presença esplendorosa, para a qual o diretor se adapta à atriz muito mais do que o contrário, o filme se comporta como uma legítima experimentação de como Helena pode devorar o ambiente a sua volta, e desestabilizar as figuras que a cercam, da forma de como uma personagem pode se impor sobre todo um espaço.

Estava definitivamente deflagrado o Cinema Marginal, inclusive com a adesão de Julio Bressane, com quem, em 1970, Rogério e Helena formariam, no Rio de Janeiro, a Belair (aproveitando a enorme renda angariada com os dois filmes anteriores), uma produtora na qual em um curtíssimo período de seis meses Bressane e Sganzerla resolveram radicalizar os seus cinemas que já eram por demais arrojados, levando a experimentação a um estágio limítrofe, com a realização de seis longas nesse brevíssimo espaço de tempo (todos protagonizados por Helena): Sem Essa Aranha, do Sganzerla; A Família do Barulho; Barão Olavo, o Horrível; Cuidado, Madame (os três dirigidos pelo Bressane); e Copacabana, Mon Amour e o perdido Betty Bomba, a Exibicionista, ambos também do Sganzerla. Sem Essa Aranha é o ponto máximo desse período, mas destaca-se também o Cinemascope na favela Copacabana, Mon Amour e o divertidíssimo e genial A Família do Barulho, com Helena contracenando com Grande Otelo e em instantes de fúria, soltando palavras profanas e ameaçando morder com a sua boca escorrendo sangue de catchup. Ainda em 1970, o trio largaria tudo e partiriam para a Inglaterra, onde Rogério e Helena viveriam por uma época a efervescência de Londres naquele período, muitas vezes em companhia de amigos como Caetano Veloso e Gilberto Gil, que estavam exilados na capital inglesa.

Depois do retorno ao Brasil, a atriz diversificaria a sua carreira trabalhando em filmes de outros diretores, como o ótimo Os Monstros do Babaloo (1971), de Elyseu Visconti, e que acaba de sair em dvd pela Coleção do Cinema Marginal, da distribuidora Lume, e o desconhecido Um Intruso no Parque (1973), dirigido por um tal de Heron D’Ávila, que não dirigiu mais nenhum filme além desse, mas que posteriormente seria assistente e produtor-executivo de diversos filmes de Walter Hugo Khouri, John Doo e Fauzi Mansur. Curioso notar que todos os filmes em que Helena Ignez trabalhou nos anos setenta tiveram escassa distribuição nos cinemas ou sequer foram exibidos, especialmente pelo caráter marginal e irreverente da maioria deles, o que contribuiu para que fossem tão poucos vistos, situação que perdura ainda nos dias de hoje. Em meados da década, com o nascimento das duas filhas, Helena deixaria o cinema de lado, para cuidar da criação das duas meninas ao mesmo tempo em que caiu de cabeça na filosofia taoísta e nos templos hare krishna (também servindo como monja e fazendo leitura de mãos), enquanto que Sganzerla dedicou a maior parte dessa fase à realização de trabalhos menores, como curtas-metragens e documentários. Helena apenas voltaria ao cinema em Nem Tudo É Verdade (1986), uma mistura de documentário com ficção que recria a passagem de Orson Welles pelo Brasil, o que se constituiria numa obsessão para Sganzerla. Nos anos 90, alguns trabalhos na TV Globo, e participações em Perigo Negro (1992), de Sganzerla, O Perfume de Gardênia (1992), de Guilherme de Almeida Prado, e em São Jerônimo (1999), de Julio Bressane.

Foi quando o destino quis que Rogério Sganzerla fosse embora desse mundo, em 2004, devido a um tumor no cérebro, depois de oito meses com Helena ao seu lado enquanto lutava contra o câncer. Mas não sem antes a realização de uma obra-prima derradeira: O Signo do Caos (2003), um canto agônico lançado um ano após a sua morte, e que se constitui num verdadeiro testamento de sua estética e seus ideais cinematográficos. Ficou com Helena a missão de preservar e divulgar a obra do marido, com respectivas de sua filmografia pelos quatro cantos do mundo, e dirigindo a produtora Mercúrio, com as filhas Djin e Sinai, além da ajuda de Paloma, que tem experiência em restauração. É o clã mais importante da história cinematográfica brasileira, e Helena, na condição de musa eterna e perene, agregou também a de matriarca. Além da participação como atriz em alguns filmes recentes, entre os quais Encarnação do Demônio (2008), de José Mojica Marins, também dirigiu os curtas Reinvenção da Rua (2003) e A Miss e o Dinossauro (2005), um documentário que conta a história da Belair, com imagens da época, registradas em Super-8 - incluído nos extras do dvd de Sem Essa Aranha (também lançado pela Lume) -, e fez o seu primeiro longa, o radicalmente autoral Canção de Baal (2008), ao mesmo tempo em que está preparando um filme em que retoma o personagem do bandido da Luz Vermelha: Luz nas Trevas ─ A Revolta de Luz Vermelha (com roteiro antigo de Sganzerla e co-dirigido por Ícaro Martins), aguardado com expectativa por seus fãs e por quem realmente se interessa pelo melhor do cinema nacional. É a musa agora trabalhando por trás das câmeras.



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